TRANSCRIÇÕES

Leia, veja e constate todas as respostas, pausas e hesitações da realização do documentário “Xamego, a Primeira Palhaça Negra do Brasil”. Sem tirar nem por.

Vagner Assunção

VAGNER ASSUNÇÃO
DIA 13 / SONY 100 

Rui: Pode soltar.


Mariana: Pode soltar.

Rui: Vai.

Mariana: Sonora, Vagner Assunção, take um. (Claquete).

Caio: Pode começar.

Daise: Vagner, quando você conheceu o Aristeu, você sabia que a família dele era de circo?

Vagner: Não, quando eu conheci o Aristeu, eu não sabia que a família era de circo, isso eu fiquei sabendo depois de começar a frequentar a sua casa, a casa do Aristeu.

Daise: E aí, como é que foi pra você?

Vagner: Ele me falou que nunca, que não estava mais trabalhando né, trabalhava em circo, mas não estava trabalhando naquela época.

Daise: E a mãe dele, você sabia que ela era Palhaço de circo?

Vagner: Fiquei sabendo depois de começar a frequentar a casa do Aristeu.

Daise: E você viu a mãe dele como Xamego?

Vagner: Eu vi uma vez ela atuar na TV Paulista, canal cinco, e vi de longe, nem escutava o que ela falava né, e só eu e o Aristeu que estávamos lá, nós íamos tocar lá num almoço que tinha na, na televisão, nessa TV Paulista, e nós fomos lá pra tratar do assunto, e vimos a sua mãe trabalhar lá.

Daise: E como é que foi? Do que você se lembra? Fala pra gente. Ela de Palhaço, o que que você lembra?

Vagner: Eu lembro que ela falava as coisas, ela dava cambalhota, e era bem ágil apesar da idade que ela já tinha né? Isso faz, cinquenta anos ou mais, mais de cinquenta anos, ela já tinha uma certa idade, mas era bem ágil.

Daise: Ela tava pintada?                                            

Vagner: Tava.

Daise: Você lembra da roupa dela?

Vagner: Não me lembro. Da roupa eu não lembro.

Daise: Parecia um homem?

Vagner: Parecia um homem.

Daise: Você achou ela engraçada?

Vagner: Achei, achei bem engraçada.

Daise: Quanto tempo durou o numero que ela fez?

Vagner: Acho que uns cinco a dez minutos.

Daise: Tinha plateia?

Vagner: Não, não tinha, não tinha.

Daise: Era a câmera e ela?

Vagner: Era.

Daise: E sobre o Aristeu, como é que foi a coisa do conjunto, da guitarra, que você foi durante um tempo o base do conjunto do Aristeu.

Vagner: Isso.

Daise: Como é que foi?

Vagner: Bom, nós estudávamos no mesmo ginásio, mas eu não tinha amizade com o Aristeu, então eu comecei a construir uma guitarra e levei lá pro ginásio uma parte, o corpo da guitarra cortada já, aí o Aristeu veio lá, começou a conversar comigo, eu falei, ‘ah, eu tô fazendo essa guitarra, não sei se vai dar certo’, aí ele me deu um endereço que era na rua do nosso ginásio mesmo, e falou, ‘vai lá em casa, eu toco alguma coisa né?’, aí marcamos um dia, eu fui lá na casa do Aristeu, chegando lá ele punha o, os discos numa pickup que ele tinha, e solava perfeitamente, como o solista do disco solava, solava música dos Ventures [The Ventures], e do Shadows [The Shadows]. O conjunto Shadows era inglês, se eu não me engano, e os Ventures americanos; e ele tocava perfeitamente, com um violão o que os solistas tocavam lá, nas guitarras. Aí quando ficou pronta a minha guitarra, deu certo, eu fiz uma pro Aristeu também, e nós começamos a tocar em baile, em baile e televisão. Tocávamos na, a maior parte das apresentações na televisão foram na TV Excelsior, canal nove.

Mariana: Essa apresentação que você viu a minha avó, era da TV, era, vocês estavam tocando?

Vagner: Não, nós íamos tratar na TV Paulista, um almoço que nós íamos tocar, inclusive nós não aparecíamos nesse almoço, ficávamos no fundo tocando música só, e o pessoal ali na frente das câmeras almoçando, conversando, tipo uma imitação daquele [Programa] Almoço com as Estrelas, que era da TV Tupi.

Daise: E quanto tempo você tocou guitarra com o Aristeu?

Vagner: Bom, em baile foram dois anos, baile e televisão, e depois nós passamos pra, pra tocar em boate, foram mais quatro anos em boate, aí eu resolvi parar, e quando eu falei pro Aristeu que eu ia parar, ele falou, ‘bom, eu recebi um convite pra tocar nos Tremendões’, o conjunto do [cantor] Erasmo Carlos [Erasmo Esteves], e ele foi com os Tremendões, depois eu não vi mais o Aristeu, passaram muitos anos sem ver, aí eu soube que ele tinha passado pro RC7, que naquele tempo eram sete músicos acompanhando o [cantor] Roberto Carlos [Braga], e ele entrou lá como solista, no lugar do Gato [José Provetti], que é um ex-solista do [The] Jet Black´s, um conjunto dos mais famosos do Brasil, e ele entrou no lugar do Gato, e tocou anos e anos com o Roberto Carlos.

Daise: E você lembra...

Vagner: Mais de quarenta anos né?

Daise: Você lembra da minha mãe Maria Eliza, sem ser o Xamego?

Vagner: Lembro.

Daise: Como é que era? Você... O que você lembra dela?

Vagner: Eu lembro que ela era uma dona de casa normal né, a gente ia lá ela conversava, quando eu ia na, no Aristeu escutar disco, ver ele tocar, ele me ensinar a tocar, porque eu tava fazendo guitarra e não sabia tocar, o Aristeu que me ensinou. E a sua mãe, no começo ele nem falava que sua mãe era de circo, depois com a amizade já  de alguns meses é que ele me falou, e aí eu vi, depois que ele me falou, eu vi a sua mãe trabalhando no, na TV Paulista, canal cinco.

Daise: E ela, quando você ia em casa, ela falava do circo? O meu pai falava? Como é que era a conversa? O que você lembra?

Vagner: Depois, depois de um certo tempo, depois de alguns meses.

Daise: Isso. O que que eles falavam?

Vagner: Falavam que trabalharam no circo, gostavam, era de família de circo mesmo, mas tinha parado né? Aí eu fui ver a sua mãe trabalhando na televisão alguns meses depois.

Daise: Quantos anos você tinha?

Vagner: Ah, tinha dezesseis ou dezessete anos, a mesma idade do Aristeu né? Nós temos, acho que dois meses de diferença de idade só.

Mariana: E ela deu cambalhota, essa apresentação, minha mãe comentou...

Vagner: Cambalhota. Isso eu lembro. (Risos). Eu até me admirei, eu falei, ‘como é que pode?’. (Risos). Ela dar aquelas cambalhotas, mas eu não podia escutar o que ela falava né, porque eu tava bem longe dela.

Mariana: Era engraçada a minha avó senhor Vagner?

Vagner: Era, era, era bem engraçada.

Mariana: Parecia, dava pra ver que era mulher?

Vagner: Não, não parecia, tanto que ela trabalhava com nome de homem né? E ninguém sabia que ela era mulher.

Daise: Tá ok, tá ótimo.

Rui: É isso aí.

Daise: Né? Tá bom? Tá bom.

Caio: Cortou?

Rui: Cortou.

(Fim da entrevista).


Erminia Silva


ERMINIA SILVA
DIA 8 / PANASONIC AC-AG160

Mariana: Meninas, vamos lá? Eu vou só colocar aqui, podemos? Aqui no rosto dela, licença Erminia. Erminia Silva take um. (Claquete). Só um minutinho, já começa. Podemos... Podemos.

Daise: Erminia, você como pesquisadora, de aspectos históricos das atividades circenses, com dois trabalhos né que você, concluídos, você acha comum ou incomum um negro ter sido proprietário de um grande circo na, no início da década de, do século dezenove, aliás, no início do século vinte?

Erminia: Antes de mais nada eu queria registrar aqui, é... Com vocês, porque é... Quando as pessoas vêm me entrevistar, como eu sou historiadora, sou. Tenho um diploma de historiadora, sou, é... E como eu tenho, sou, é eu nasci em circo, é... As pessoas acham que assim, você como né, pesquisador e historiador... Não, nós todos somos. Vocês também estão fazendo história. Vocês também são pesquisadores de história. É... E nessa relação de entrevista, quando vocês vêm me entrevistar é quando a gente aprende né? Eu aprendo com vocês porque vocês me trouxeram pessoas, vivências e experiências que eu não conheço. Não faz parte da minha pesquisa. Então eu estou falando para pesquisadores, para historiadores também, que não precisa ter diploma né? É... E também, então, é, uma questão antes de eu colocar, que é uma questão muito importante, qual o significado de um negro, no início do século vinte, ser proprietário... Ou na primeira década, eu acho que nas duas primeiras décadas do século vinte, ser proprietário de um circo grande, o grande circo? Mas antes de entrar nisso, seria importante falar, contextualizar um pouquinho a questão de história do circo. É... Porque é óbvio que o circo no Brasil ele tem uma presença de formação histórica grande europeia. Brasil, tirando os nossos índios, ele é um país, como vários outros países, o nosso continente todo, é... Nós somos países que foram colonizados, regidos, é, por imigrantes europeus né? Os Estados Unidos, o Brasil, a Argentina, enfim né? Tirando os nossos índios da América do Sul toda, que já eram nativos, os outros, inclusive os negros africanos, eram imigrantes. Então, é um país invadido, colonizado, criado, produzido, construído com relações da imigração. O circo que se conhece hoje, o circo que se produziu, que se construiu, que é o que a gente, a partir do qual a gente toma como base pra falar assim, o circo que se conhece hoje tem uma origem no século dezoito, porquê? O circo grego tem características que o circo do século dezoito não vai ter, da competição, dos jogos olímpicos. O circo dos, o circo romano, ele tem então características que o circo do século dezoito não tem mesmo. O circo do século, do circo romano é um projeto político. Não é um projeto de lazer e diversão. Você tem lazer e diversão, mas é um projeto político no qual inclusive intermediado e como ah... É testa de ferro deste projeto político, é a disputa com morte. Então, é são chamados de circos? Tá certo? São! Mas o círculo, o circo que... O projeto de espetáculo circense que vai se constitui, se construir a partir do final do século dezoito por volta de mil setecentos e sessenta, mil setecentos e setenta, é um projeto de lazer, de artistas. Não é um projeto de disputa, não é um projeto político, ao contrário, é um projeto de empreendimento empresarial, é... E quem são os artistas que vão fazer parte deste, do que vai se chamar de espetáculo circense? É a diversidade do que havia já de artistas na época. E quem são os artistas da época? São europeus, em geral, em geral brancos. Mas também com uma mistura de outras nacionalidades, já na Europa. A Europa já é habitada por várias das nacionalidades que o próprio povo europeu colonizou. Então, uma parte da África, uma parte... Então você tem outras nacionalidades, mas a maioria é branca. É europeia branca. Mas estes artistas europeus brancos também tem uma mistura muito grande com asiáticos, mulçumanos, africanos, todos oriundos de suas colônias né? Então há uma mistura em Portugal, há uma mistura na França, há uma mistura na Inglaterra de seus, das suas colônias. Que são artistas também e que ocupam as ruas, as praças, os teatros. Quem eram esses artistas? O que eles faziam? De tudo. Ser artistas neste período do século dezoito não era ser especialista de nenhuma área em particular. Então o ser artista era dominar as linguagens artísticas que existia na época. Então se as linguagens artísticas era o teatro, a dança, a música, a acrobacia, os artista, eles que trabalhavam na rua, nas praças, nas feiras, nos teatros, na sua maioria, é claro que você tem às vezes só o Ator, só o Dançarino, ou só o Cantor, mas na sua maioria, o artista do século dezoito, do final do século dezoito, é o artista da multiplicidade. Ele é um artista que ele cospe fogo, faz salto, é Ator, é Cantor, é Músico, é gerenciador da sua própria produção, tem que ser Arquiteto. Se bem que não tem essas denominações na época, mas ele que construía o seu próprio espaço de trabalho, ele que construía o seu próprio número de trabalho, seja qual for a frente que ele estivesse. Quando no final do dezoito, na Inglaterra, [Philip] Astley e mais vários outros estão se juntando e vão construir um espetáculo que só depois no século dezenove vai se denominar circo, ou espetáculo circense, quem vai compor esses espetáculos são estes ex-cavaleiros com estes, estes, essa maioria de multiplicidade de corpos artísticos que faziam, que faziam um monte de coisa. Então o circo na sua origem, o espetáculo circense é um espetáculo tanto da diversidade da linguagem artística como da diversidade de nacionalidade. Claro com uma maioria branca. É essa composição, esta composição que vai migrar pro mundo inteiro, pro mundo que existia no século dezoito, dezenove. É essa mistura de nacionalidade, é esta mistura de linguagem artística que vai viajar pro mundo inteiro. Tem uma característica muito importante destes grupos que vão se formando, é que eles têm uma sintonia muito grande com as produções artísticas locais. Então, vamos falar de Brasil, vamos fala de quando estes artistas, estes artistas já se constituídos como artistas circenses que faziam espetáculo chamado circo, quando chega num país como o Brasil escravocrata, por exemplo, né? Mas quem eram os escravos? Os escravos não é o que uma certa história oficial da escravidão quer contar que só fala do escravo como coisa, do escravo como um objeto de troca. Você tem uma produção sobre a escravidão que mostra um escravo ativo, um escravo artista, um escravo, um escravo dono de escravo. Mesmo escravo ele era dono de escravo e negociava escravo. Então você tem uma diversidade também deste escravo. Você tem o escravo urbano que é diferente do escravo da plantação né? Só que todos estes escravos... Você tem uma questão artística, claro, nada muito, nada podia ser muito, é, claramente feito, claramente realizado, claramente exposto, mas você sempre tem a presença do negro, ou escravo, ou alforriado, liberto é... Na produção artística brasileira. Não dá pra contar a história da produção artística brasileira, seja qual frente for sem falar da produção negra. E não dá pra você falar nenhuma frente artística brasileira, eu coloco da América Latina, mas eu vou falar do Brasil. É... Brasileira, sem falar de circo. Portanto, se eu não posso falar de produção artística brasileira sem falar do negro, como eu não posso falar da produção artística brasileira sem falar de circo, então é por que tem muito negro no circo. 

Mariana: A gente vai cortar e bater outra claquete aqui tá? Licença, vamos lá. Tá gravando Thy?

Thyago: Tô.

Mariana: Erminia take dois. (Claquete).

Erminia: E aí é... Tem uma questão também que quando esses imigrantes artistas que já se denominavam, já era constituído como o circo chegam no Brasil, você tem uma produção, por exemplo, dos chamados mulatos, no interior do Brasil que eram os que faziam os teatros. Por que... E é muito interessante que eu acho que se você tem uma bibliografia que trata disso, eu não vou me estender disso, mas, por exemplo, a Regina Horta Duarte, no livro dela Noites Circenses trata dessa produção que eram artistas, era tão desconsiderado no interior do Brasil essa produção teatral, que quem fazia eram os mulatos. Então, independente de ampliar, de mergulhar ou não nesse tema agora, o que mostra é que há uma produção artística dos negros importante. Então, por exemplo, você vê a partir do século dezenove no Brasil, da metade do século dezenove, a maior parte da composição das bandas no Brasil, que era uma frente musical importante na maioria das cidades, ela perde importância, mas a banda, a banda das cidades era, era, eram as principais divulgadoras dos ritmos e gêneros musicais. Certo? As bandas eram compostas por muitos negros. Então você tem na música, no teatro, você tem o negro dançando. Então veja, e você tem na literatura. É só você remexer um pouquinho que você vai ver muita produção de negros dos chamados mulatos, entre aspas né? Por que é um conceito muito complicado. Eu não gosto. Mas é porque é assim que a bibliografia faz referência. Há uma produção muito grande. E além de, quando eu falo da música, eu não falo só da música cantada. A música tocada. Você tem importantes instrumentistas negros. Que não era só de banda. Então nessa história do Brasil não oficial, se você mexer um pouco nisso, você vai encontrar uma produção artística negra muito importante. Quando esses grupos europeus chegam na, composto por famílias, chegam no Brasil, também com uma diversidade de nacionalidade, mas europeus brancos, você tem, há uma característica do circo que é a mistura. É trazer para dentro do circo aquilo que tá sendo expresso artisticamente fora do circo. Então se tá na rua, se tá na praça, se o povo tá cantando, não importa quem tá cantando, vai estar no circo. Então a presença negra, nos palcos picadeiros circense sempre esteve presente. E é interessante porque quando você pega a história é, mesmo dita oficial do circo, só fala da família branca europeia tá? É tanto que é um assunto pra depois que a gente conversa, mas só pra antecipar, tanto que de repente essa importância de pontuar sempre que Benjamim de Oliveira foi o primeiro Palhaço negro no Brasil. Não foi! Não foi! Nós temos registro de artistas negros escravos, trabalhando... Foram comprados como escravos pelos grupos circenses. É isso que é interessante. É muito interessante isso porque a história não fala sobre isso. E mesmo os dicionários da música brasileira, mesmos os dicionários do teatro, da dança, tal, não fala sobre isso. Então você vê que coisa interessante, fala do escravo na zona rural, fala do escravo no urbano, fala do escravo na banda, fala do escravo do teatro, mas não fala dos vários circenses europeus que compram escravos, só que na hora que esses escravos, esses escravos mulheres e homens, não são só homens, eu tô colocando escravo no gênero masculino como uma coisa indefinida, mas são homens e mulheres. Quando esses homens e mulheres escravos, escravos são comprados pelos donos de circo, tá certo? Eles entram no modo de organização do trabalho circense nesse período que ninguém podia não ser artista, nem escravo. É interessante porque enquanto você tem a escravidão, mas o momento em que estes negros são incorporados pra dentro do circo eles viram artistas imediatamente. Imediatamente. O Benjamim de Oliveira foge em mil oitocentos e oitenta e dois, na época da escravidão, três meses depois ele já está estreando como artista. Ele diz que ele é tratado como escravo. Claro! É escravidão. Ele é tido como escravo, só que não é desculpa no circo ele ser negro escravo, ele deixar de ser artista. Ele tem que ser artista. E é interessante porque todos vão ser artistas. Não tem negro dentro do circo que não seja artista. Então, por exemplo, o Circo Chiarini quando chega em mil oitocentos e sessenta, setenta no Brasil, as principais artistas deles de algumas temporadas dele no Brasil, são artistas africanas que eles trazem, e duas artistas cubanas, que também são de origem negra. Então é, ao mesmo tempo em que uma certa história oficial fala, mas também que havia um cotidiano de preconceito de resistência, o público que vai ao circo não é só o público pobre, que também vai, mas é o público de qualquer classe social que existia. Então é uma mistura, o circo não é uma mistura só do espetáculo, é uma mistura do público também, porque o circo sempre teve cadeira, camarote, e geral, tá certo? Então a mistura de público... E o circo quando chegava era, era um sucesso tão grande porque era a única coisa que chegava na cidade, até hoje, mas imagina no século dezenove né? Então todo mundo, essa música ‘que todo mundo ia ao circo’ é verdade, que ‘todo mundo vai ao circo’, é verdade. No século dezenove, não tem um momento que o circo chega, que a população, do Prefeito, do Médico a Empregada Doméstica, e ao escravo, não ia ao circo. Todos iam ao circo. Então você vê... Que quem que eles estão vendo no picadeiro? A mistura. Se eles estão vendo também negros, que alguns são alforriados, outros são escravos, mas são artistas e tão assistindo essas pessoas serem. Então não dá pra dizer que Benjamin foi o primeiro Palhaço negro no Brasil. Não dá pra dizer que Benjamim foi que inventou o teatro, o circo teatro, porque isso já havia. Circo e teatro e música sempre; nasceram juntos. Eram os mesmos artistas. Estas famílias; são poucos os estudos que você tem sobre essas famílias, então, por exemplo, é... Poucos é... Sempre se falou do Benjamim de Oliveira né? Mas sempre como o primeiro Palhaço negro no Brasil. Eu trabalho com Benjamim de Oliveira, mas eu digo, não, ele não é o primeiro Palhaço negro. Falo de outros negros, mas essa é uma história a ser contada ainda, como o João Alves, ou toda a família de vocês. Então é uma história ainda a ser contada. Eu conto uma parte dessa história. Nossa! É infinitamente pequena né?

Mariana: Então Erminia, não, só concluindo em cima do que você tá dizendo então também não é tão surpreendente encontrar um né, um filho de escravas, empresário, dono de circo dessa época? Dentro do que você tá dizendo.

Erminia: O que não é surpreendente você encontrar artistas negros no, como, se apresentando nos espetáculos circenses. O que se precisa ainda pesquisar é o quanto destes pelo Brasil se tornaram donos de circo no século dezenove, porque eu acredito que até mil oitocentos e oitenta e oito, o fato, a presença deles como empresário não deveria, não era, não deve ser comum. Agora a história do Brasil é tão recheada de surpresas que eu não me surpreenderia de achar, mas não deve ser um número muito grande, mas deve ter. Agora a partir de oitenta e oito para o início do século vinte, o número de negros envolvidos em pequenos comércios, em comércios ou fábricas de fundo de quintal, pequenos empresários aumenta significativamente. O próprio Benjamim, por exemplo, ele foi dono de circo, e ele faz sociedade, por exemplo, num período com Zeca Floriano [José Floriano Peixoto], filho do Marechal Floriano [Vieira] Peixoto. Eles chegam a ser proprietários de um circo. Ele é proprietário de um circo. Mesmo que ele não seja proprietário antes ou depois, que depois ele não vai ser ele é... Ele é... É o Circo do Spinelli, ou circo e o nome, mas é o circo do Benjamim.

Mariana: Deu doze minutos...

Erminia: Então já vou entrar nos negros, mas eu já tô entrando né?

Mariana: Já tá. Já tá.

Mariana: Vamos lá. Licença. Erminia Silva, take três. (Claquete). Peraí deixa só eu chegar. Pronto.

Daise: Então Erminia, posso, só pra colocar, você também não se surpreenderia de saber que no caso a minha mãe que nasceu no Circo Guarani, em mil novecentos e nove, contar pra mim que sou filha dela, que a infância dela foi uma infância muito confortável e que algumas destas famílias que vieram do estrangeiro, vamos dizer assim, respeitavam o meu avô João Alves, proprietário do Circo Guarani, como se respeitavam entre si? Então ela sempre comentou muito da família Stankowich, Stevanovich, Temperani, Garcia, que respeitavam a família Alves, que era a família do meu pai.

Erminia: E com certeza, porque a nossa família é casada com steva... Nós somos primos de Stevanovich, primo de Stankowich, casada com Temperanis e provavelmente a nossa família também esteve com vocês Alves. Não tenho dúvida. É pena que meu pai é falecido e ele não tá aqui pra contar sobre isso, mas a gente ainda vai descobrir. De qualquer forma, uma coisa é importante que é o seguinte, como eu coloquei, a presença negra no circo é presença, entendeu? Então o que não dá é para subestimar que não existissem diferenças e preconceitos, tá certo? Isso em todos os lugares. E o preconceito não era... Em relação a negro com certeza, não dá pra subestimar isso, senão a gente vai criar um mundo que não existiu. Agora as diferenças e competições que eles chamavam de competência, que é uma palavra espanhola, que eles usam até hoje, a competência que o circo fulano de tal fez com o circo tal, que é de competição, é... Isso existiu entre os branquinhos de olho azul. Tá certo? Quando eles queriam falar mal de alguém, não era porque era branco, preto, azul, amarelo. Falava mal. A disputa sempre existiu. Tá certo? Agora, o respeito pelo artista empresário, podia ser branco, amarelo, azul. Teve um número menor de negros e descendentes, donos de circo? Provavelmente. Eu não sei por que não é estudado. Por exemplo, a quantidade de circos que eu vou trabalhando cada vez que eu vou... Eu vou no Pará, descubro não sei quem a história de circo, e vejo um negro e vejo descendentes, vejo não sei quem. Então é, isso, sabe o que é que é? Não foi estudado sob esse foco, tá certo? Acontece que é... Eu não trabalho o Benjamim sob o foco escravo negro. Mas eu trabalho o tempo inteiro porque eu mostro ‘olha, um Brasil escravocrata, você tem um negro na escravidão que é sucesso absoluto’, que adquiri a primeira página da mídia, pós-escravidão, mas já tava com sucesso antes. Então se, ele não é o único exemplo. Ele não é uma ave rara. Já existia, existiam outros. Agora, as famílias, você tem de tudo, você tem família branca europeia que passou muita fome, como da minha família, tá certo? Você tem família morena que passou muita fome, você tem família de negros que passou muita fome com o circo. Agora você também tem grupos circenses que, que é muito assim olha (Erminia faz um movimento de sobe e desce com a mão), num momento tá dando super certo, num outro, vai uma praça lá mal desce, de repente a praça é boa, de repente pega um temporal na praça, demora pra levantar. Circo é assim, tá certo? E não havia acumulo de capital, então essa coisa da reserva de... Tudo que se ganhava se investia no circo, tá certo? Então as famílias não tinham muita reserva financeira. Então dava um temporal no circo, as famílias ficavam sem nada. Agora a questão do circo até a televisão, com certeza, mas eu não considero a televisão vilã, pra mim eu vejo a televisão de outra forma, mas é que até a televisão, o circo foi um espaço divulgador de todas as expressões artísticas que existiam no Brasil. O rádio foi, mas não dava visibilidade, o disco foi, mas não dava visibilidade, o teatro não andava que nem o circo, a televisão, o cinema, não era todo lugar que tinha eletricidade. O circo chegava em qualquer lugar, e o circo levava tudo isso, levava acrobacia, o animal, o palhaço, a música, a dança. Então o circo chegava no interior do Piauí, tava levando coisa que tinha trazido do Rio de Janeiro. Quando ele volta pro Rio de Janeiro, ele leva ritmo que tinha ouvido e cantado no Piauí. Então o Rio de Janeiro começa, conhece também. Então o circo é o espaço da visibilidade e da divulgação principal até a televisão. A televisão vai ter esse papel importante. Então, até isso é, todos eram, o circo era um sucesso total. Então falam assim, ‘o grande auge do circo em trinta’. O grande auge do circo foi em mil setecentos e oitenta, o grande auge do circo foi mil oitocentos e noventa, o grande auge, o grande auge do circo foi o período todo que o circo viveu até hoje. Até hoje. Se você considerar a quantidade de pesquisa de envolvimento acadêmico, a divulgação, as escolas de circo, projeto social, é um grande auge. Pra mim é um grande auge. Diminuiu lona de circo? Diminuiu, mas não morreu. Ele mudou, ele transformou, muda o jeito de produção dele né? Que eu chamo de rizoma. Mas esse é outro momento. Veja, as famílias, se você pega as famílias, há uma questão muito importante das famílias circenses, que era chegar na cidade... Isso muda... Em alguma... A maioria dos circos, hoje pequeno não tem tanto isso, é uma pena. Parece fútil, parece brega, mas eles chegavam como eles eram o outro, o outro que chega o outro que é diferente, o outro que é mal visto porque é nômade e que é aquela coisa daquele artista que... Porque artista não é trabalhador, tá certo? Então é aí não importa a cor, hein? É o artista que chega de fora, esse nômade que chega de fora, esse outro que chega de fora, mas que me encanta. É essa relação que ao mesmo tempo é algo que me dá medo, mas que me encanta porque ele me traz a noite algo que não vejo que eu vejo uma vez por ano. Então, ao mesmo tempo em que a cidade é encantada com o circo, ao mesmo tempo a cidade olha pra esses grupos como vagabundos, as mulheres, todo mundo dorme junto, as mulheres são prostitutas, as crianças não tem educação, enfim. Então a maioria das famílias circenses até setenta, oitenta, e você ainda tem hoje algumas que são assim, a maioria chegava na cidade com muita estirpe. A Regina Horta Duarte tem uma parte do livro dela que diz que as mulheres circenses eram civilizatórias, porque elas traziam do Rio de Janeiro a última moda do chapéu, do sapato, do vestido. Aí ela entrava pelo interior de São Paulo, pelo interior de Minas [Gerais] desfilando. Elas saiam pouco de casa, as mulheres. Daqui a pouco eu vou entrar nesse tema por conta da Palhaça, mas elas saiam pouco da cerca, até porque pra se protegerem, tá certo? E eu falo isso no meu trabalho. Mas até pra se protegerem. Mas mesmo assim elas eram elegantérrimas. Sempre muito elegantes. Os homens sempre muito elegantes. Os homens faziam uma coisa em todo começo, todo dia, toda noite de espetáculo, toda matinê, ou toda noite, eles faziam, é uma coisa patriarcalista, alguns tem o conceito de machista, eu, eu, eu acho que é patriarcalista, que é um conceito que vale pra zona rural, vale pra... É do período, e eles não eram diferentes. Eles faziam, eles ficavam na frente do circo, antes de começar o espetáculo, só os homens de terno. Meu avô, antes dos homens formarem a barreira ele passava em revista pra ver se os sapatos estavam limpos. Hoje em dia não há esse critério. Alguns circos, mas não é a maioria e eu tenho muito vergonha de entrar num circo que não tem este critério, de que eles são sempre. E não eram ricos, mas eram elegantes. Essa questão era uma questão de disputa com a cidade.

Mariana: Licença. Erminia take quatro. (Claquete).

Erminia: Se você pegar, por exemplo, o Eduardo das Neves, que é um grande Cantor negro, que foi um dos primeiros a gravar disco no Brasil, aliás, os Palhaços Cantores, na sua maioria negros, são os primeiros a gravar disco no Brasil. Quem são os Palhaços Cantores? É interessante porque no circo você tem os Palhaços Cantores. Você tem os artistas que são Palhaços e que são Cantores, mas nas grandes cidades, por exemplo, no Rio de Janeiro, São Paulo, os Palhaços Cantores são os artistas locais. E quem é no Rio de Janeiro, que você pega no meu livro a genealogia, a biografia de quem tá cantando? Pai do Pixinguinha [Alfredo da Rocha Vianna], Pixinguinha [Alfredo da Rocha Vianna Filho], Catulo da Paixão Cearense, é... Paulinho Sacramento, flautista negro de revista, principal Músico de revista do Arthur [Nabantino Gonçalves] de Azevedo, negro. A maioria dos Palhaços Cantores e que trabalham no circo com Benjamim, mas vários outros circos, são de origem negra. Mas não é, não são todos, porque a hora que o circo viaja, os próprios artistas que aprenderam com eles, vão cantar. E são Palhaços Cantores. E estes mesmos Palhaços Cantores, o que eles estão tocando no circo? Eles estão tocando, primeiro o violão, que é o instrumento que é da ralé, tá certo? Super desrespeitado. Mas no circo as mocinhas branquinhas vão ouvir, estes Palhaços negros Cantores tocando violão. E o que, que ritmo que eles estão tocando? Lundu, que era desprezado, maxixe que era desprezado, mas também tão tocando modinha, tango, enfim... Todos os gêneros musicais. Então, mas aí o Eduardo das Neves, por exemplo, se você vê foto do Eduardo das Neves, ele está de smoking. O Benjamim nessa foto que ele tem do jornal, que é a capa do meu livro, de mil novecentos e um é uma casaca cheio de medalhas, porque é uma honraria, todos eles eram homenageados com medalha. Bom, o que são esses artistas? Como que é a formação destes artistas? Até pra entrar na questão da Palhaça. Todos eram artistas. Era impensável alguém se incorporar ao circo, branco, negro, escravo ou livre, era impensável, como eu já disse antes, alguém se incorporar a este modo de organização do trabalho que eu chamo de circo família, não ser artista. Todos tinham que aprender tudo. Homens e mulheres, meninas e meninos, todos começaram a aprender tudo. O que, tinha duas coisas que as mulheres não faziam, até mais ou menos quarenta, cinquenta? Duas coisas, elas não eram elas não faziam a secretaria, que a gente chama de fazer a praça, que esta relação pra fora da cerca, de entrar num primeiro contato com a cidade tal, elas não faziam. E o feminino de Palhaço não existia. Você tinha vários personagens que as mulheres representavam no circo, as caricatas, as caipiras e não sei o que, como a Nhá Barbina [Conceição Joana da Fonseca], e vários que representavam sempre, mas não era considerado Palhaço. Palhaço era coisa de homem por várias razões. Não vai dar agora pra entrar nos detalhes até porque o Palhaço tem uma relação com o público que o Trapezista não tem. Ele mexe com o público, ele é olho no olho com o público, que o Trapezista não tem. Que a, o circo teatro não tem, que o Saltador não tem, que o globo da morte não tem, que o Domador não tem. O Palhaço tem. Então é esta relação é uma relação que as sociedades até determinado momento não permitiam entre homens e mulheres. O circo não vai ser diferente.

Daise: Te surpreende o Palhaço Xamego?

Erminia: Me surpreende sim. Me surpreende mais do que ter negro no circo. Um Palhaço Xamego é... Então vamos entender isso, tá certo. Por exemplo, é... Eu considero que várias mulheres caricatas ou algumas mulheres que nem a Iracema [Pires] Cavalcante de Sorocaba, que várias na história do circo fizeram papéis de caipira, cômicas, e o mesmo papel, o mesmo personagem, elas desenvolvem uma comicidade, só que não são consideradas Palhaças. Não existia o feminino de Palhaça. O feminino de Palhaça só vai existir após o surgimento das escolas de circo. Por que é, quando é que surgem as escolas de circo? No final da década de setenta, começo de oitenta. A composição societária, relação homem mulher mudou muito. Então estas meninas e meninos que vão fazer escola de circo já entram pra, não tem a proteção da lona, não tem a proteção da família circense. Eles vão ter que buscar o seu modo de ser artista circense no urbano. E eles já entram com muita dificuldade, não é tão tranquilo. É só você vê a entrevista da Verônica [Tamaoki] pra Sarah [Monteath dos Santos], as várias entrevistas que a Sarah fez. Mas eles já entram porque as relações societárias são outras, na relação homem mulher. As conquistas dos dois lados, não é só conquista feminina, é conquista masculina também, tá? Então eu acho que... Mas na época do Xamego, da sua mãe (Erminia aponta para Daise), da sua avó (Erminia aponta para Mariana) isso não existia. Então, ou não sei se existia. Quantos Xamegos nós não sabemos, tá certo? Então, ao mesmo que ela surpreende ao mesmo tempo ela é uma potência de descoberta de outras visibilidades.

Daise: Você acha que a luta dela foi maior como mulher do que como negra?

Erminia: Não sei. Eu não a conheci. Aí eu teria que conhece-la. Você é que pode me dizer. Esta é uma resposta que eu quero. É... Eu acho que ela acumulou diversas dificuldades. Eu acho que ela acumulou diversas dificuldades. Ter que esconder a questão do gênero é... Mas será que ela escondia por dificuldade, ou ela escondia também porque ela acreditava que não podia se revelar enquanto Palhaço mulher? Porque tem uma questão que eu digo que é o seguinte, a mulher também acreditava que não deveria haver Palhaça. A mulher do circo, do circo família, desse circo itinerante, até hoje. Até hoje é isso. Tem muita mulher que fala, ‘não existe Palhaça’. Não é o homem só que diz que não existe Palhaça, o homem do circo itinerante, que uns chamam de tradicional, eu chamo de itinerante. Tá certo? Então veja, é... Então não é só o homem que diz ou dizia, ‘não existe Palhaça, a mulher não pode ser Palhaça’. O homem dizia, mas a mulher também acreditava nisso. Então eu não sei o quanto o Xamego, ou a sua mãe mais do que o Xamego, porque Xamego é um personagem, quanto a sua mãe também não acreditava que ela também não podia se revelar enquanto mulher. Porque ela ia sofrer sim, outros tipos de barreiras, de preconceito. A chegada do homem em mil novecentos e quarenta na... Qual o nome dela? Desculpe eu esqueci.

Daise: Maria Eliza.

Erminia: Maria Eliza. A chegada no Xamego, se soubesse que era a Maria Eliza, de uma plateia masculina no circo, ou feminina, como é que seria em mil novecentos e quarenta? Muito difícil. Se você considerar ainda as dificuldades que é relação de homem mulher ainda de exposição, apesar de todas as conquistas que já tem em quarenta, mas ainda mulher não pode ser desquitada, pela lei, pela lei a separação ainda, existe toda uma normatização que a mulher perde tudo. Ela não pode ter conta bancária sozinha ainda. Então você imagina, eu tô hipoteticamente hein, você imagina o quanto ela pra ela também era difícil. Ela também não queria que fosse revelado. Porque ela ia ter que trabalhar com outras barreiras, com outros preconceitos que era o preconceito do gênero. Não só o fato de ser negra.

Mariana: Nossa! Cortou aqui. Erminia take cinco. (Claquete).

Erminia: Não, então... Eu fico imaginando, porque é o seguinte, é interessante retomar como é que se dava a produção, o que significava ser artista? Significava dominar todas as linguagens artísticas. Então meninas e meninos aprendiam salto, subiam no trapézio, minha tia fez globo da morte, tinha Domadora, tinha atiradora de faca, tinha de força, então assim tudo que o homem fazia a mulher fazia. É claro que na hora da gravidez a mulher muda, mas até então tudo que o homem fazia a mulher fazia. Aí os meus alunos perguntam assim, ‘mas tinha Domador e Domadora?’, ‘tinha’, ‘tinha não sei o que?’, ‘tinha’, ‘tinha não sei o que?’, ‘tinha’, ‘o que que não tinha?’, ‘Palhaça’. Então assim, é interessante porque ao mesmo tempo em que é uma produção artística que os gêneros estão aprendendo tudo, neste momento naquilo que exige uma produção de Ator, de Atriz, e relacional do artista, ou da artista, ela não pode se relacionar porque a sociedade da época, as relações societárias da época não permitiam, e eles faziam parte da relação societária. Não é que o circo tá aqui, e a sociedade tá aqui. (Erminia mostra com as mãos os lados opostos). Eles são sociedades também, eles são patriarcalistas, eles acreditam nisso, tá entendendo? Não é que assim eles faziam porque a sociedade... Não. Não porque eles também achavam que não era possível. Tem até hoje, vários donos de circo Palhaços que não admitem Palhaças. Eu acho que é um pouco de disputa de espaço, de não quero disputar, porque Palhaço tem que ter um só mesmo, não pode ter outro homem Palhaço disputando aquele cargo. Em geral são os chamados, escadas. Tá certo? Imagina você ter outra Palhaça disputando? É complicado, mas veja então eu acho que é o seguinte, enquanto se aprendia tudo, ela tem que se esconder enquanto Palhaço, mais porque eles acreditavam que tinha que ser assim também, não é por que... E porque eles sabiam também que haveria outras barreiras que ela ia ter que enfrentar, que não era só o fato de ser negra e mulher, mas era o fato de ser negra, mulher e Palhaça. Que exige uma outra chegada. É relacional. Ser Palhaço é relacional. Os Palhaços que nós não gostamos, não são, perderam essa chegada. Perderam esse olho no olho, perderam esse contato e essa conversa com o público. O Palhaço que a gente gosta tem isso. Tá certo? E imagina naquele tempo? Ela devia cantar, ela devia dançar, ela devia fazer piada de duplo, triplo, quinto sentidos, primeiros sentidos, certo? Porque era chegada de Palhaço, num foi inventado agora, tá certo? A chegada de Palhaço não era só bonzinho pra criança, a noite tinha coisa que, chamada picante, tá certo? Parece que descobriu hoje. Sempre foi assim! Desde a commedia dell'arte, esse pessoal acha que tudo foi inventado ontem. Mas enfim, o que eu acho é que... E depois tem essa questão do, da força que tem o Palhaço no espetáculo né? Então, por exemplo, esse período que eu tô falando até cinquenta, mil novecentos e cinquenta, sessenta que eu falo que tem uma produção do circo família, ninguém podia ser especialista. Meu pai era Palhaço, mas era Trapezista, Globista, Ator e Empresário, tá certo? Ninguém era só Palhaço. Havia os grandes Palhaços, havia aquele, mas é um período que vai se especializando. Tanto é que tem a ideia de que pra ser Palhaço você não pode ser só Palhaço, você tem que ser Acrobata, você tem que aprender a cair. Para ser Palhaço você tinha que aprender a cantar, a tocar um instrumento musical né? Então... E havia uma diversidade grande de Palhaços. Você tem o Palhaço da entrada, o Palhaço do reprise, o Palhaço da comédia, o Palhaço do melodrama. Às vezes é o mesmo Palhaço, às vezes não é. O Palhaço do reprise não é o Palhaço do melodrama.  Há um Palhaço em cada Companhia, de chamariz importante? É claro, sempre houve, sempre houve, mas ele também tá diluído em ser artista de outras coisas. Família...

Daise: E a minha mãe fazia tudo isso como Xamego.

Erminia: Então, isso que eu...

Daise: Ela se apresentava como Domadora no caso, com os animais né, cachorros, gatos, enfim...

Erminia: Se vestindo de Xamego. É um personagem...

Daise: A indumentária não era, mas o rosto, cabeleira, voz, tanto que ela tinha uma trilha sonora né, que a gente comentou até aquele dia a gente apresentou pra você...

Erminia: Certo, certo, certo.

Daise: Que era o Xamego, e eu acho até que escolheram por isso, não que a música tenha sido feita pra ela, mas encaixou né?

Erminia: Muito, até parece que foi né?

Mariana: É, a gente tá vendo, porque ele tocava no circo da minha avó né?

Erminia: O...

Daise: O Luiz Gonzaga [do Nascimento].

Erminia: É o Luiz Gonzaga tocou em vários circos né? Agora, quem disse que não? Não sei.

Daise: Pois é.

Mariana: Vamos lá? Erminia take seis. (Claquete).

Erminia: E é interessante porque de quarenta, cinquenta, sessenta, quarenta e cinquenta são períodos ainda muito complicados né? Eu lembro de uma, de vários livros, e séries de pesquisas das mulheres desquitadas dos anos cinquenta, um horror, tinha que tirar da escola, porque era filho de desquitada. Agora você imagina para uma mulher de cinquenta, por mais respeitada, por mais nãnãnã, dizer que é Palhaça? Neste sentido que eu tô falando pra mim, do que deveria ser a Maria Eliza representando esse personagem Xamego, que fazia de tudo, tá certo? Então, você imagina o quanto ela mexia com as pessoas, o quanto ela brincava com as pessoas, o quanto ela se relacionava, tá certo? Era relacionar o tempo inteiro, era em ato o tempo inteiro a produção dela, então... E como a produção de um bom Palhaço, seja um homem, mulher, transexual, homossexual, porque eu não tenho essa coisa desse gênero, desse jeito né? Então seja qual for o gênero certo? Que ele assuma. Mas você imagina o que significava nesse período. Agora é, o interessante de qualquer forma, porque que um Xamego surpreende? Porque a fala do circense faz silêncio. E esse silêncio diz muito. Porque veja, eu não falo de Palhaça nos meus livros, ou nas minhas pesquisas porque os circenses não falam. As minhas fontes não falam. A fonte histórica do século dezenove, eu pesquiso jornal do século dezenove inteiro. Eu entrevisto um monte de gente de circo do século vinte, e é um silêncio sobre isso, sobre a Palhaça neste modo de organização do circo que eu chamo de circo família que vai até mais ou menos mil novecentos e cinquenta, cinquenta, sessenta depois isso muda, tá certo? Então... E há um silêncio em muitos circenses itinerantes de lona até hoje. Então quando você vê a Sarah indo entrevistar a Hud [da Rocha Camargo], ou a Guará [Guaraciaba Malhone Cavalcanti], ou a Iracema, aí que o tema vem. A Guará na entrevista diz, ‘eu fiz mesmo a palhacinha lá de criança’, mas é algo que na vida dela já passou. Mas mais do que passou, há silêncio sobre os Xamegos, eu não sei quantos Xamegos vocês vão descobrir. Eu por exemplo, tem uma menina no Pará que é um Xamego de hoje. Olha que interessante! Quando eu descobri o Xamego eu falei ‘ cara, essa menina!’, que acho até que defendeu mestrado já, eu tô pra, eu tô doida pra ver esse trabalho dela. Eu fui o ano passado, retrasado, eu já nem sei mais, ano passado, na banca da [Maria] Virginia [Abasto de Sousa] lá no Pará, em Belém né, de mestrado, e essa menina tava, e a gente falando de Palhaça. Ela não era de circo, foi viver no circo, olha, tudo né, e aí ela, num circo do interior do Pará, e ela, não sei o que acontece, eu já não sei mais contar o causo direito, mas o Palhaço oficial do circo tem algum problema, e ela substitui o Palhaço como Palhaço. Como homem, e ninguém sabia que ela era mulher. Até aquele dia que a gente que a gente tava conversando, e provavelmente até hoje, então veja, há silêncios até hoje. Então, eu acho que falar da história do Xamego é revelar histórias de Xamegos. Então por isso que me surpreende, mais do que negro trabalhando, pra mim pelo menos, na minha pesquisa. Então você vê, a partir de setenta, começo de oitenta, você tem algo novo na história do circo, que são as escolas de circo fora da lona, porque eu considero que a primeira escola do circo é a lona. Foram trezentos anos, duzentos e tantos anos de história, formando gente, e formando gente, profissionais exímios, virtuosos, capacitados, profissionais para exercer, que domina todo o processo da produção do circo como espetáculo. A partir de cinquenta, sessenta, há mudanças significativas neste modo de organização do espetáculo, que a geração seguinte não é mais a portadora do saber, por exemplo, a minha geração, a sua geração. A nossa geração vai pra escola. Todo grupo nômade quando pára há mudanças significativas dentro do modo de organização dele, seja social, seja do trabalho. E o circo não fugiu a regra. Não é a televisão que vem destruir o circo, é o circense é que vai produzindo outros modos de organização do circo. Na minha família somos quatorze primos, só tem uma prima que é artista, mas mesmo assim a formação dela de base, ela pára com o circo e vai ser Fisioterapeuta, e depois se torna artista. Ela trabalhou no circo como artista mais do que nós, eu não trabalhei nada de artista, não sei nem dar cambalhota. Ela fez vários números com os pais dela, minha tia, meu tio que eram ciclistas, faziam um número de bicicleta, Temperani, é da família Temperani, a Rosicler [Temperani]. Ela é artista, mas o resto, treze primos, e nenhum é de circo. Era impensável na história do circo até então. Isso não fica sem consequências pra dentro do circo, tá certo? E foram várias famílias que aconteceu isso. Isso não é uma história brasileira. Se você conversa com a história argentina você vê isso, com a história europeia você vê isso, não é privilégio do Brasil, mas eu tô falando do Brasil. Há uma diminuição significativa do circo itinerante de lona por várias razões. Entre elas porque várias famílias param pros filhos estudarem, mas também porque o urbano muda, a exploração imobiliária muda, encarece toda vida do urbano, não há mais uma questão de que o circense, ser artista significava aprender tudo, você contrata o número, não mais a família que dava conta do espetáculo, você tem a especialidade, você tem o especialista, você contrata o especialista, enfim, não há mais o saber coletivo transmitido oralmente. Veja, há uma diminuição significativa do número de circos itinerantes de lona, mas a linguagem circense ela nunca para de se produzir, qualquer linguagem artística é assim. A circense em particular, tem uma característica em particular, ela, estes mesmos artistas que param no urbano vão ser os primeiros a montar a escola de circo no Brasil. Em setenta e oito a Academia Piolin de Artes Circenses em São Paulo e em oitenta, na década de oitenta, concomitante a São Paulo, no Rio de Janeiro também tá tendo debate de formação de escola de circo. As relações societárias são outras, relação homem mulher estão diferentes, muda em alguns lugares. Na maioria das relações muda, tá certo? Mas ainda você tem o exemplo do Pará que ninguém sabe que ela é Palhaço, tá certo? Ainda nos circos itinerantes de lona você tem só homem Palhaço. E pra eles é impensável, pra eles não existe Palhaça. Alguns... A maioria... Não. Não existe essa coisa de Palhaça, não existe. Mas há uma produção pra fora deles, que são as escolas e os projetos sociais que a gente chama de circo social, projetos de grupos autônomos que vão se produzindo a partir de oitenta, e que isso vai tomando um volume, um volume que vai, e se enraizando no urbano, como o meu pai, até a geração do meu pai não se fazia, o circo chegava e ia embora. Esses meninos e meninas, esses artistas e artistas vão, estão em todos os lugares, todos. Há uma capilarização da produção da linguagem circense hoje no urbano que você não tem um urbano hoje que você não vê alguém jogando uma bolinha. Ah, isso é circo? Não, pode não ser, mas é uma técnica circense, no mínimo você tem que dizer isso, tá certo? Então, esses artistas que vão se produzindo a partir de oitenta, chegam com outra carga política, cultural, outra militância no urbano, outra chegada dessa visão homem mulher. Já tem o... Nós já tivemos conquistas, nós, a nossa geração anterior, que homens e mulheres vieram conquistando questões de gênero, as mulheres com posições bem fortes no seu período feminista, mas os homens também tiveram conquistas em relação a isso, tá certo? Não é uma luta só feminista, ou feminina, mas é uma luta... A feminina é uma luta forte, forte! Mas quando chega, chegam já herdeiros de conquistas históricas de gênero, mas que vão produzir outras conquistas. E a partir daí eu vou encerrar.

Mariana: Eu só vou ajeitar aqui.

Daise: Impressionante né?

Erminia: Ela era ela era.

Daise: Você chegou a ver o vídeo...

Erminia: Vi.

Daise: Dela dançando.

Erminia: É impressionante.

Daise: Ela tinha ali noventa e quatro anos, noventa e três.

Erminia: Impressionante, impressionante.

Daise: Era uma graça.

Mariana: Vamos lá meninas. Erminia Silva, take sete. (Claquete).

Erminia: Então eu acho que a partir das escolas é outra chegada, é outra chegada. Elas já chegam com várias conquistas históricas né? Das gerações anteriores, e vão fazendo outras conquistas. São herdeiras ao mesmo tempo em que são inovadoras. Isso é artista. Artista é sempre herdeiro e ao mesmo tempo em que é inovador. Fazer arte é isso. Então eu acho que essas... Mas eu não tô querendo me ater ao gênero feminino de mulherzinha entendeu? Porque hoje em dia você tem vários, várias opções [orientações]  sexuais. Podendo desempenhar o papel do Palhaço que também não era permitido. Você tem gênero transexual fazendo Palhaço. Você tem gênero homossexual fazendo Palhaço, então é claro que num primeiro momento é o gênero mulher, mulher no sentido que a biologia oficial define tá certo? Mas depois a partir da década de noventa, anos dois mil, isso é uma mistura, tanto você vê hoje pelos alunos de escola de circo de projeto social. Não dá pra você definir gênero, entendeu? Homem mulher, papai mamãe, essas coisas, porque essa questão de gênero hoje tá mais, ainda bem, tá mais complexa, tá certo? Tá mais diversificada. Então, mas veja, nesse começo ainda era homem mulher no sentido biológico oficial tá? Héteros né? No sentido mais menino e menina. É claro que essas meninas ao mesmo tempo... Me espanta algumas que são entrevistadas que falam, ‘eu não senti problema nenhum’, eu fico... Eu estranho, eu estranho, mas tudo bem, não sentiu porque estava num outro momento também. Agora tem várias que sentiram e que sentem até hoje. Acho que ainda é um processo novo, a ser vencido dentro da produção da linguagem circense do Palhaço, da palhaçaria, tá certo? Porque ainda você tem grupos que não são os itinerantes de lona, que são os chamados tradicionais, mas você tem grupos formados fora disso que são mais tradicionais e conservadores que às vezes o próprio tradicional. E que tem uma visão, um debate a questão da produção feminina estranha no mínimo, no sentido de... Eu tenho problemas com debates que ficam só no feminismo ou só no masculino falando do feminismo. Então às vezes fala assim, ‘ah elas só escolhem temas de mulheres’, como se os homens não escolhessem temas machistas. Eles não ficam falando o tempo inteiro da potencia, da impotência sexual, do entendeu, é só temas ligado aos homens. Da conquista de homens pra mulher. Esse é o tema dos homens, dos Palhaços homens também. Eles não são até hoje, não usam até hoje uma forma cômica de palhaçaria, muitos deles, eu não tô falando a maioria, mas muitos deles ainda, não usam o tema da mulher como objeto sexual? Aí a mulher não pode usar temas femininos. É complicado esse debate. Eu acho estéril. Sabe assim? É estéril. Imagina! Porque assim, cada um vai escolher aquilo, pra fazer graça, daquilo que ele acha que ele consegue fazer a graça, daquilo que é dele né? Se não é o tema que eu gosto, bom, mas tem gente que gosta. Eu acho estéril, eu acho uma coisa complicada, como se Palhaço, então as mulheres não podem, tem que mudar o tema. Bom, qual? Então é o universo do que? Do cachorro? Então não é o universo dela mulher, no mundo. Porque ele pode escolher dele homem no mundo. Ele homem, biologicamente oficial. Ela biologicamente oficial não pode escolher os temas dela no mundo? Enfim... É estéril. É estéril, é um debate de luta de sexos que eu não gosto, nem entro. Por outro lado, acho que ainda há grupos pra fora do circo itinerante, grupos de Palhaços que ainda as Palhaças são, não são as carro chefe. Você tem grupos que ainda são assim. Ou seja, você tem de tudo, tá certo? Eu acho que você tem de tudo. Mas ainda é um processo novo. Eu não acho que elas têm que conquistar, tem que ir lá, disputar... Eu acho que disputar espaço a gente disputa o tempo inteiro. Disputa de saberes e poderes, você tem dentro da sua família, imagina pra fora no seu local de trabalho, na sua produção artística? O tempo inteiro né?  Mais eu acho que ainda é novo. É por isso que ainda é surpreendente. Agora no período histórico do Xamego, é surpreendente mesmo. E é uma história que precisa ser contada. É uma história que precisa ser contada, até pra gente ver se aparecem outros Xamegos. Até pra não pra gente assim, foi um dos únicos? Ou teve tantos outros? Agora de qualquer forma eu acho que os Xamegos revelam o silêncio no meio circense, tanto do chamado tradicional, quanto do chamado contemporâneo. Que acham que é bobagem discutir isto. Eu não discuto isso pra disputar espaço entre homem mulher. Eu discuto isso porque é um processo novo, diferente que tá sendo produzido que foi diferente do que foi o dos nossos pais. E que aí você tem um Xamego pra mostrar que foi diferente, mas foi igual, porque ele tem, ela tem que se mostrar homem, tá certo? Agora você tem um monte de Palhaças que se vestem de homem por opção, por opção cômica, porque é a partir daí que ela se sente cômica. Uai, e aí não é problema? Enfim, é uma confusão. Mas o que eu acho que quando eu discuto a questão do feminino do Palhaço é até pra mostrar do silêncio que havia nisso. Não é nem silêncio, é um silêncio, mas pra dizer assim, não, não existia porque não era pra existir. Né? Então é um silêncio não porque quer esconder. É engraçado né, não é? Porque, por exemplo, quando a gente fala da quantidade de produção artística dos negros da história do Brasil, você tem o silêncio da produção oficial disso. Então você tem o silêncio na história oficial do teatro, história oficial da música, história do... Entendeu? Das várias frentes. Então, da literatura. Você tem um silêncio que não quer revelar. Esse não é o silêncio que não quer revelar, é um silêncio porque não tinha. Mas é o silêncio importante de ser estudado, tá certo? Porque na hora que você mexe um pouquinho, ‘não, até que eu fiz palhacinha’ que nem a Guaraciaba fala, tá certo? ‘Também era palhacinha né? Mas meu pai, a gente achou que, meu pai não queria, eu também achei... ’ ela fala. Então porque não tem né? Não tinha. E não é o momento de eu Guaraciaba, ou eu Maria de qualquer coisa, não é o momento naquele período em que ela é menina, romper barreiras. A Xamego não rompe barreiras. Ela rompe e não rompe. Ela é uma história atípica, porque ela também assume que tem que ser homem, pra não enfrentar outras barreiras. É que nem eu falei uma barreira de cada vez né? (Risos). Já era nômade, circense, todo mundo dormia junto, negra, ‘caramba, deixa eu fingir que eu sou homem? Uma coisa de cada vez’. E mulher lá dentro né, porque ela era mulher circense, os de fora a viam como mulher né? E durante muito tempo, ainda como prostituta. Em trinta, quarenta ainda é vista assim, tá certo? Só ver o meu trabalho do Respeitável Público, ainda é visto assim. Enfim, mas eu acho que muita coisa mudou, muita coisa mudou. Acho que várias das Palhaças hoje que estão aí no mundo, não tem noção das dificuldades que é enfrentar ser Palhaça. Elas têm frente à produção masculina ainda do Palhaço, engraçado né? Seja que lugar for, seja de origem itinerante, seja de origem de grupos, mas é algo que historicamente tem que ser trabalhado, historicizado, apontado. E os Xamegos da vida da gente é o que vão revelar muita coisa, ou não. Mas não é revelar no sentido que tá coberto e vai, é que vão dar visibilidade pra coisas que as pessoas não conhecem. Eu não conhecia o Xamego, e olha que vocês me dizem que eu sou historiadora, e me olham como aquela que sabe. Não, não sei. Eu sei uma parte né? E por isso que nas entrevistas a gente acaba trocando figurinha né? Então eu não sabia do Xamego. Eu fui descobrir o Xamego com a Sarah, que descobre a Mariana e que chega com o Xamego pra mim. Eu falei, ‘gente, que história é essa?’

Mariana: Nossa! Que demais.

Erminia: Então acabou né? (Risos).
                           
Daise: (Risos). Muito bom. Que delicia.

Erminia: Faltou alguma coisa que você queria?

Daise: Não.

(Fim da entrevista).

TIA VERA

TIA VERA
DIA 07 / CANON 60D 02

Mariana: Tia Vera, eu só vou pedir pra senhora responder sempre pra minha mãe, olhando pra minha mãe, tá bom?
Vera: Ah! Lá?
Mariana: É. Cuidado só aqui com a claquete, com licença tá? Tia Vera take um. (Claquete).
Vera: Daise, depois de velha a gente fica... O que que é isso mesmo?
Daise: Isso é um documentário sobre o Palhaço Xamego.
Vera: (Risos).
Daise: Já lembrou. Tia Vera...
Vera: Hã?
Daise: Conta pra nós como foi que você conheceu a minha mãe e o que ela contava pra você, da vida dela, das coisinhas dela...
Vera: Ela não falava nada da vida dela, eu não falei lá na cozinha? Ela era muito reservada, nunca, nunca ela falou isto da vida dela, só sabia que ela trabalhava no circo, e às vezes eu via ela chegar muito tarde coitada! Foi uma trabalhadora, foi uma lutadora pra criar vocês.
Daise: E ela chegou a contar pra senhora sobre o Palhaço Xamego que ela fazia no circo?
Vera: Não, eu sabia que ela fazia esse trabalho.
Daise: E o que você sabia?
Vera: Mas ela nunca me falou particularidade, nunca. Eu sabia só que ela trabalhava no circo, fazia o papel de um Palhaço, mas eu não sabia como que era, nem como deixava de ser. Porque ela era muito reservada a sua mãe.
Daise: E naquela época ela tinha perdido umas crianças, sofrido...
Vera: Tinha.
Daise: O que que ela contou pra senhora?
Vera: Eu cheguei a visita-la, eu sabia, ela perdeu os primeiros, que eram dois, depois ela perdeu os outros segundos, que eram dois também, depois parece que ela não teve mais, ficou uns anos sem nada, e depois quando ela acertou a vida dela, teve esse menino que é o Aristeu, e depois você, depois ela não teve mais. Não sei se ela não quis, ou ela não teve mesmo, porque eu depois da minha filha eu não tive mais mesmo.
Daise: E ela era assim uma mulher de muita atividade...
Vera: Era. Trabalhadeira.
Daise: O que que você lembra do jeitinho dela? Porque a gente...
Vera: Era uma mulher caseira, muito caseira, muito trabalhadeira, ela saia pra trabalhar voltava tarde da noite, sempre sozinha, sempre quieta, sempre... Ela não deu vergonha pra família não.
Daise: E essa coisa dela ter sido Palhaço? A senhora acha que ela era uma pessoa bem humorada?
Vera: Não era tanto não. Ela talvez ela fosse bem humorada no trabalho dela, mas fora disso ela era uma mulher muito séria, muito idônea, muito correta. Eu conheci ela muito bem porque ela morou nos fundos da casa do avô, do sogro, e ela era uma mulher muito séria, muito séria.
Daise: E dos filhos dela, o que que a senhora lembra? No caso eu e o Aristeu.
Vera: É são os dois que viveram.
Daise: Isso.
Vera: Porque os outros morreram antes de ficar grande, e eu adorei vocês dois principalmente o Aristeu, o Aristeu frequentava muito a minha casa, você se dava muito com a Mirtes, e a Mirtes não era de vir na minha casa, era difícil ela vir na minha casa, mas o Aristeu vinha muito em casa, eu sempre adorei esse menino, mas adorava de verdade, como se ele fosse meu filho mesmo, eu gostava muito dele, gostava e gosto, apesar de estar com a carranca agora, mas eu gosto dele assim mesmo. (Risos). Assim mesmo, carrancudo. (Risos).
Daise: E o violão como é que foi a história do violão tia Vera?
Vera: Ah, o violão ele queria, doido pra comprar um violão, e eu tinha um violão pendurado no quartinho onde passava roupa, onde era uma dispensa de roupa suja, e eu falei pra ele, ‘pega aquele violão’, mas era sujo, quebrado, ele, ‘posso pegar tia Vera?’, ‘pode’, aí ele limpou, tava sujo, empoeirado, ele limpou bem e tudo, deixou ele novo, comprou o que faltava que eram as cordas, arrumou o violão e foi aprender a tocar.
Daise: E aí, o que que deu?
Vera: Uma vez eu estive no Roberto [Carlos], fui ver um... Ele e a sua mãe, ele e mãe dele veio me buscar pra assistir aqui perto de casa um show do Roberto, e como eu era muito vidrada no Roberto, e nele, então eles me levaram pra ver, e não sei como que saiu o assunto quando ele me apresentou pro Roberto, ele disse, ‘se ele está aqui hoje, ele deve a mim’ porque, ele quis saber por que, ‘porque eu tinha um violão quebrado, sujo, e ele consertou o violão, aprendeu a tocar e hoje tá aqui’. Não foi? Não foi?
Mariana: Deixa eu perguntar uma coisinhas.
Daise: (Risos).
Mariana: Tia Vera, a senhora falou que via a minha mãe, a minha avó chegando do né, chegando, voltando do circo...
Vera: Tarde da noite.
Mariana: A senhora chegou a ver ela vestida, ela...
Vera: Não, nunca tive a oportunidade, porque como eles vinham muito pra minha casa, os dois, ele mais do que ela, e eu atendia muito os meninos que eram conhecidos dos dois, do meu filho e da minha filha, então ficávamos ali, em conversa, tocando disco, fazia uma jarra, não me lembro do que...
Daise: Suco?
Mariana: Suco né?
Vera: Não era suco não...
Eliana: Cuba Libre?
Vera: Ah, Cuba Libre! Fazia bem fraquinho com bastante gelo e eles iam tomando, iam conversando, tocavam os discos, a gente via eles dançando de vez em quando, aí começou a vir mais meninas, e mais meninos, amigos deles, amigas da minha filha, amigas das meninas, então se ajuntavam no sábado, domingo, e dançavam no quintal, era um bailinho mesmo, ficou um bailinho, ficou um salãozinho de baile, a hora de vê.
Mariana: Que barato! Tia Vera eu queria perguntar também, a senhora falou essa coisa da, era uma né, que a senhora falou, a minha avó era uma pessoa que toda a família respeitava né, então essa coisa, existia preconceito com artista de circo?
Vera: Eu pelo menos nunca tive, se houve de alguém eu não sei.
Mariana: Mas existia assim uma coisa da época?
Vera: Eu acho que não, acho que não, só se era nos vizinhos, alguma pessoa que é meia, meia cheia de história né? Porque eu não, eu nunca percebi nada, eu mesmo nunca percebi, se falassem pra mim, levavam o troco né? Tá ganhando honestamente.
Mariana: Ou também com essa questão dela ser uma mulher fazendo um Palhaço né?
Vera: Eu nunca soube do trabalho dela como era, sabia que ela trabalhava num circo honradamente, vinha pra casa tarde da noite, às vezes pegava eles ainda saindo da minha casa. Eu sempre respeitei o serviço dela e ela, e o marido dela.
Mariana: E eles também trabalharam no circo quando eram pequenos né?
Vera: Não sei, não cheguei, porque quando eles foram morar lá perto de mim, eles já eram grandinhos. (Vera pergunta para Daise). Acho que vocês tinham uns dez, doze anos né?
Daise: É.
Vera: Mais ou menos isso.
Mariana: E a senhora sabe alguma coisa dessas, do fato, a partir do momento quando eles tiveram que vender o circo?
Vera: Não soube não, não soube nada disso, mesmo porque eu nunca perguntei o que se passa na sua casa, eu sabendo da minha casa já era muito, nunca especulei ninguém, nunca nem a mãe deles, nem o Aristeu, o Aristeu frequentava muito a minha casa, ele se dava muito com o meu filho, e eu adorava muito o Aristeu, que era um menino que não tinha boca, não tinha boca esse menino, ele entrava, fazia o que tinha que fazer, pegou o violão, pegou um violão velho que tava pendurado em uma lavanderia, arrumou o violão, deixou o violão novo, aprendeu a tocar naquele violão, e quando eles me vieram buscar, ele e a mãe dele, vieram me buscar pra assistir um show do Roberto [Carlos] que era aqui pertinho de casa, no Corinthians se eu não me engano era. E ele falou pro Roberto, ele me apresentou pro Roberto, ‘essa é minha tia, ela é responsável por eu estar aqui hoje’, e o Roberto quis saber por que, eu expliquei, ‘porque eu tinha um violão velho, estragado na lavanderia, e ele pediu, e consertou o violão, e aprendeu a tocar’. (Vera pergunta para Aristeu). E foi verdade não foi?
Aristeu: Foi.
Vera: (Vera pergunta para Aristeu). Você sabe que eu te amo né?
Aristeu: É.
Daise: (Risos).
Mariana: Tá certo. Não sei se tem alguma coisa em relação a minha avó né, porque o documentário é sobre ela, se tem alguma coisa...
Vera: Eu quase que não via essa senhora, porque ela trabalhava muito, quando ela estava em casa ela tinha coisas da casa pra cuidar, quando ela ia trabalhar, ela ia trabalhar, só via... Uma vez eu vi ela chegando que os meninos iam saindo da minha casa, que eles ficavam lá brincando, às vezes tinha bailinho, dançavam no quintal, e eles iam saindo e a mãe ia chegando coitada, tarde da noite. Eu nunca, nunca cogitei o que ela ia fazer ou que deixava de fazer, sabia que ela ia trabalhar.
Daise: Muito bom.
Vera: Porque eu tenho uma natureza assim, a vida particular da pessoa não me interessa, não me prejudicando a mim, não estando naquele meio dela, já não me interessa, fosse o que fosse, e era um trabalho honrado o dela, e ela era uma mulher muito correta, muito boa, os meninos gostavam muito dela, o Ronaldo ia muito lá, o meu filho, ia muito lá, brincar com o Aristeu, conversar com o tio, porque o pai deles era meu cunhado, e o Ronaldo gostava muito de lá, e eles moravam em uma casa que era pertinho do meu sogro, então ele dizia, ‘mãe, eu vou no vovô Didito’, e ele ia falar com o Aristeu, e com o pai do Aristeu também.
Mariana: E meu avô, como era o meu avô?
Vera: (Risos). Sovina.
Daise: (Risos).
Mariana: Sério? (Risos).
Vera: Sério, senão eu não falava não.
Daise: Ela tá falando do vô Eurico, que é o meu pai.
Vera: Ah! Me desculpe, eu pensei que era o meu sogro. (Risos).
Daise: Imagina. (Risos).
Vera: Meu sogro era muito sovina. O Eurico não. O Eurico era muito bom, era o mais novo dos irmãos, e ele respeitava muito a família, quando ele ia lá em casa ele se sentava num lugar e não levantava mais, até a hora de ir embora, e pouco era de conversar também, pouco de falar, mas eu gostava muito dele, e tinha outro cunhado, eram em três irmãos, era o pai deles, um cunhado que viveu mais sozinho coitado, do que junto, e meu marido, e esse cunhado que vivia muito sozinho às vezes ele vinha pra minha casa e coitado, dormia em uma cadeira de preguiça. Eu ficava com dó dele, eu levantava de manhã ele tava dormindo na cadeira de preguiça. Eu tinha muita pena dele.
Daise: É. Histórias né?
Mariana: É.
Vera: Ele chamava Nenê, o nome dele era, eu não sei se era apelido ou nome, eu conheci por Nenê...
Mariana: Ele trabalhou no circo também? Não né?
Daise: Não, mas quando o meu pai conheceu...
Vera: Visitar tua mãe e o irmão dele, ele era casado lá, eu acho que era bem longe, eu nem me lembrava, mas era bem longe daqui, e fomos lá na casa da tua mãe, e casada com o irmão do meu marido né, do Eurico, então depois nós fomos, a noite, eles iam trabalhar e nós fomos também pra assistir, mas acabou muito tarde, nós viemos pra casa muito tarde, viemos quase de madrugada pra casa.
Mariana: É só pra testar né, a gente vai fazer... Tia Vera, take dois. (Claquete). Tia Vera, a senhora conheceu o Circo Guarani?
Vera: Conheci. Uma vez só eu fui.
Mariana: Onde a senhora foi?
Vera: Ah, era longe, acho que era na Vila Guarani mesmo, era bem longe da minha casa, não era nesses bairros conhecidos por aqui não, tinha que atravessar a cidade, mas não lembro o nome do bairro. Ficamos lá o dia todo, na casa da sua mãe, com o seu tio, que era irmão do meu marido. Depois a noite fomos conhecer o circo, o seu avô ainda trabalhou, o João Alves, lembro dele ainda.
Mariana: O que ele fez?
Vera: Não lembro.
Mariana: O que ele apresentava?
Vera: Falar o que ele fez eu não me lembro, eu sei que ele trabalhou, não sei se ele apresentou logo no inicio, não me lembro o que que houve. Não me lembro também sua mãe, vendo sua mãe trabalhar, não lembro, mas eu vi que ela trabalhou, aí quando eles começaram já, já tinham se apresentado e entraram, aí meu marido foi lá, se despediu e viemos embora porque já tava muito tarde. Depois não tinha mais condução pra vir.
Mariana: Era bonito o Circo Guarani?
Vera: Era como todo circo. Não era pequeno não, era bom.
Mariana: Tinha animais?
Vera: Não me lembro, não lembro filha, fazem muitos anos isso. Eu casei em quarenta em dois, eu ainda não tinha filho nenhum, devia ser quarenta e três ou quarenta e quatro, o Ronaldo nasceu em quarenta e seis.
Mariana: E naquela época, a senhora falou, existia um preconceito das pessoas em relação aos artistas de circo?
Vera: Não.
Mariana: Tinha alguma coisa assim?
Vera: O nome dele?
Daise: Toninho.
Vera: Toninho era?
Mariana: Tio Toninho.
Eliana: Tio Toninho, conheceu também.
Vera: Conheci lá. Era um rapaz muito simpático também.
Eliana: Aí depois ele parou de trabalhar?
Vera: Eu não sei o que aconteceu com as pernas, eu não lembro direito, eu não sei explicar, parece que ele perdeu uma perna, e não pode mais trabalhar.
Eliana: E parou né?
Vera: Mas ele era muito bom, uma pessoa muito boa.
Mariana: Ele era o Palhaço do circo né, antes da minha avó?
Vera: Mas aqui ele não trabalhou acho, não me lembro, não me lembro, faz muitos anos, eu casei em quarenta e dois, esse ano devia ser quarenta e três ou quarenta e quatro. Hoje eu estou com noventa e dois pra noventa e três, tem coisas que já foram.
Eliana: Foi antes de a tia Eliza ter os filhos né? Foi antes de ela ter os filhos né?
Vera: Não, ela já tinha perdido os filhos...
Eliana: Ela já tinha tido perdas...
Vera: Só que ela não tinha o Aristeu ainda.
Eliana: Certo.
Vera: O Aristeu foi quem abriu a fabrica depois, você vê que ela fez algum tratamento né, que ela perdeu dois, dois partos ela perdeu.
Mariana: É isso mesmo. É isso mesmo.
Daise: É isso.
Vera: Tá certo?
Mariana: Tá certo, tá certo. (Risos). Obrigada.
(Fim da entrevista).

TABAJARA PIMENTA - O HOMEM FOCA


TABAJARA PIMENTA
DIA 14 / SONY 100

Rui: Já disparei aqui.

Mariana: Tá. Aquela de lá não tá enquadrada ainda.

Rui: Põe as câmeras pra rodar que aí a gente...

Mariana: Já bate claquete né?

Rui: Já bate claquete.

Mariana: É senhor Tabajara Pimenta...?

Tabajara: Pimenta.

(Breve silêncio).

Rui: Três câmeras rodando.

Mariana: Três câmeras rodando? Acho que aqui já tá no quadro né?

Rui: É.

Mariana: Dá uma olhada aí no quadro Fê, se tá enquadrada, tá? Sonora, seu Tabajara Pimenta, take um. (Claquete). Só um minutinho, antes de começar. Ui. Pronto? Podemos?

Rui: Podemos.

Daise: Seu Tabajara, o senhor nasceu no circo?

Tabajara: Nasci no circo, sou a terceira ou quarta geração da família Pimenta, nasci no Circo Teatro Universal.

Daise: E como foi que o senhor conheceu o senhor João Alves?

Tabajara: Eu quando eu vim em cinquenta e quatro para São Paulo, pra trabalhar em circos, avulsos, naquela época nos chamávamos cachê, e vinha na, no Café dos Artistas, aí o Francisco Rodrigues, o Chiquinho me apresentou o João Alves, falou ‘olha Taba, esse aqui é uma empresa séria, ele faz as periferias, os bairros aqui de São Paulo, e ele tá procurando um número de salão’, número sem estacas, sem grande bagagem, e eu e meu irmão, eu fazia número de Homem Foca, número de bola, e meu irmão fazia laços e chicote, aí acertamos o cachê com o senhor João Alves, e fomos, se eu não me engano, na Vila Remédio, se eu não me engano, e fomos trabalhar a primeira vez em um espetáculo do Circo Guarani. E o que eu me lembro muito bem, eu adorei o espetáculo, a parte cômica, aquela coisa, o começo da apresentação que entrava alguns vestidos de índios, e aquela, eu achei muito bonitinho, muito bem elaborado o espetáculo. O circo, um circo médio, e me chamou a atenção na parte cômica, o primeiro show no sábado, no domingo é que eu fiquei sabendo atrás da cortina que o Palhaço Xamego era uma mulher. (Risos). Aí eu falei, ‘Reis... ’, o clown dela que era o esposo dela, eu falei, ‘quem é esse Palhaço e tal?’, ele falou, ‘é a minha esposa’. (Risos). Aí eu não me esqueço muito disso, aí me chamou muito a atenção porque ela era meio o espetáculo viu, agradava demais, ficava aquela moçada do lado da cortina querendo conhecer o Xamego. (Risos). E isso me chamou muito a atenção. E o estilo, porque a voz ela mudava o timbre de voz, mudava tudo, aquela voz meia rouca, ‘oh Reis’, e não sei  o quê, aquilo me chamava muito a atenção. E eu adorei trabalhar com o senhor João Alves porque foi... Outra que me chamou a atenção na época, se me der licença, eu vou... (Risos). Ele terminava o meu número, eu entrava no camarim, daqui a pouco eu via, ‘Tabajara’, a mão por cima do camarim, um envelope, porque eu ia pegar coletivo, o ônibus, ‘olha, isso é pra adiantar o seu lado, então até amanhã na hora do espetáculo’, e eu, ‘sim senhor’, porque todos pagavam direitinho, as outras empresas que eu trabalhei, mas uns tinha que esperar eles terminarem o espetáculo, ia lá na gerencia, outros tinha que esperar fechar as bilheterias, aí me chamavam, e a gente perdia quarenta, cinquenta minutos, até uma hora aguardando pra ir embora, e o senhor João Alves não. (Risos). Era, terminou ele, ‘pá’ (Tabajara bate uma mão na outra), contadinho, isso foi o que me marcou muito do senhor João Alves, a simplicidade dele, e ele era tudo ali, ele era o Secretario, ele era o Gerente, ele era o dono. (Risos). O inicio do espetáculo, as primeiras vezes até era ele quem fazia, depois passou o Reis, no outro ano já tirou aquela parte dos índios e tal, simplificou por causa da folha [de pagamento], por uma série de problemas, dificuldades que existiam... Nos bairros né, era uma época de muita chuva, e ele muito cuidadoso com as suas, mas era corretíssimo.

Daise: E o senhor, na época que o senhor conheceu a minha mãe, o senhor se chocou por ser uma mulher que fazia um Palhaço, que tipo de Palhaço ela fazia? O senhor acha que era um Palhaço... Como eram as duplas na época? As outras duplas...

Tabajara: Não, não, ela era diferente pelo seguinte, primeiro que foi uma novidade pra mim uma Palhaço mulher, segundo porque não era o tony de reprise, que não exige muito, o tony de reprise pode ser bom, é tudo montado, terminou de armar a rede de voos, ou tirar um pranchão do picadeiro, ou desarmar a jaula, o galope toca, ele corre pra dentro. Era uma dupla cômica, era um número, anunciava, ‘e com vocês... ’, entrava um prefixo que eu não tô lembrado, senão ia solfejar, porque era uma música praticamente deles né? Essa música tocava, e a plateia batendo palma e entrava, ‘com vocês Xamego e Reis, a dupla cômica do momento’, era aquele aplauso, ela era meio espetáculo, e era mesmo, a gente reconhecia, falava, ‘olha, danado o Reis, acertou na loteria’. (Risos).

Daise: E o senhor acredita que ela tenha sido a primeira Palhaça do Brasil?

Tabajara: Bom, eu tenho setenta e oito anos, e a primeira pra mim foi ela, não tem outra não, porque eu viajava, viajei em circo naquela época, fui pra, sai excursionando, nasci no circo, eu não conhecia não. Depois de muitos anos já em oitenta, as duas filhas do Tuta [Antônio Giglio], do Circo Giglio, faziam, era o Baião e a esposa dele [Maria Gatti Giglio], fazia dupla, mas era de reprise né? Bossa Nova, a esposa dele, entrava, mas era de reprise. Agora excêntrico só o Xamego. E tive agora, foi uma honra conhecer vocês, e pude, nossa... Quando me perguntou se eu tinha trabalhado no Circo Guarani, eu fiz, eu fiquei até emocionado porque lembrei de uma fase da minha vida, porque faz parte da minha história né?

Daise: E o senhor lembra de algum, alguma entrada especifica, alguma coisa que ela falava, algum gesto, como era o Xamego quando o senhor viu? O senhor deve ter visto mais de uma vez né?

Tabajara: Ah eu, assim, porque faz sessenta anos né, eu lembro muito do, ‘ai, ai, Reis, ai, ai, Reis’, né? E naquela reprise, morrer pra ganhar dinheiro, então a gente ia na cortina olhar. (Risos). Porque ela de fato nasceu praquilo né? E agora eu tô tendo a oportunidade, eu assisti aqui alguns dias aqui... (Risos). O Xameguinho, que eu vou te contar viu? (Risos). Me impressionou a desenvoltura, tá no sangue viu? (Risos). Desembaraçada e desinibida né? Olha tá de parabéns.

Daise: E do meu pai, que é o Reis, o que que o senhor lembra dele? Porque o senhor sabe que ele não era de circo né?

Tabajara: Olha; sinceramente eu, o Reis, ele era um braço direito do senhor João Alves na época né? Não só genro, como ele tava ali atrás da cortina, colaborando com um, colaborando com o outro, durante o espetáculo ele passava a mão no microfone, e ele anunciava também, ele era daqueles que quando o senhor João Alves tava ocupado, ele ia na luz, ele ia na água, ele ia acertar isso, eu tenho a melhor impressão dele.

Daise: E eles dois trabalhando, dava pra desconfiar que eram marido e mulher?

Tabajara: Não porque pra plateia, e pra mim que só via atrás das, eram dois cômicos, masculinos. (Risos). A voz do Xamego mudava, ela fazia uma voz meio rouca, mais forte do que a dele ainda. (Risos). Ela mudava completamente, parece que se transformava ao entrar na pista né?

Daise: É então...

Tabajara: Ela não explorava aquele lado de querer mostrar que ela era mulher, de forma nenhuma, era um Palhaço que entrava né?

Mariana: O senhor falou até que o pessoal se apaixonava por ele, é isso, tinha isso?

Tabajara: Xamego? (Risos). Tinha um monte de fã clube querendo saber... (Risos). Queriam ver ele sem pintura, ‘porque o Xamego é isso, o Xamego é aquilo’, e a gente oh, (Tabajara faz um movimento com as mãos de fechar a boca), não podia falar nada. (Risos).

Mariana: Tinha esse mistério?

Tabajara: Ah porque era, era ela que fazia questão de não divulgar né? Penso eu né, porque ninguém falava né? O próprio Reis não comentava, mas não explorava esse lado, hoje seria muito explorado, já pensou? Era outra cabeça naquela época né, sei lá, eu não sei por quê.

Mariana: O senhor acha que tinha muito preconceito na época?

Tabajara: Não sei, não sei, são épocas, não é o preconceito em si não, não, são épocas né? Hoje exploram esse lado da, a Palhacinha feminina né? Naquele tempo não, mesmo nos circos que eu trabalhei depois no Circo Moscou, no Circo de Roma, e tinha a dupla cômica, mas ninguém falava que era, entravam caracterizados, de peruca né, fazia reprise, só que na reprise não fala, são mímicas né, então não dá, mas o Reis não né, Xamego e Reis ela falava mais que, a gente brincava até, ela tomava conta do show né? Eu tô querendo lembrar um chiste dela que me fugiu da memória agora, e ela, pegava na praça né?

Daise: Então, eu acho que é isso né?

Mariana: Como é que é o número do Homem Foca?

Tabajara: É um número que, eu até tenho uma foto aí, girando cinco bolas, é malabarismo com bolas de vôlei né, e uma faca, joga, a plateia joga, a gente, porque a foca equilibra né? Eu equilibrava a bola na faca, na plateia, no fundo da faca, girava três bolas, cinco bolas, pulava corda, dava cabeceada de bola, uma cordinha pequena, pulando corda né? Eu fazia número de salão que chamava, porque os circos, como o Guarani, preferiam aqueles que não tinham muita bagagem, que precisava caminhão buscar a cama elástica, nada disso, nós trabalhávamos, em caso de aniversário a gente levava duas sacolas com as bolas, com tudo aquilo, e meu irmão laços e chicote, melhor ainda, que era, dá pra fazer dublê, às vezes eu falava, ‘seu João Alves, eu vou fazer dublê, eu vou abrir com senhor e vou fechar no outro bairro, com... ’, ‘ah não, tudo bem’, aí ele mudava o programa, era um, ele era dez né?

Daise: O senhor disse pra gente que teve em dois momentos o senhor trabalhou no Circo Guarani, no momento que tinha aquela apresentação.

Tabajara: Foi no começo, cinquenta e quatro...

Daise: Cinquenta e quatro.

Mariana: Só um minutinho, desculpa, é que vai... Eu acho que acabar, aqui vai dar doze minutos.

Rui: Vai.

Mariana: Mas aí acho que só essa, aí eu vou bater um segundo, uma segunda...

Tabajara: Em cinquenta e cinco sim...

Daise: Cinquenta e quatro, cinquenta e cinco, aí depois eu queria que o senhor...

Tabajara: Eu queria lembrar o chiste dele. No me lo diga Reis! Putz! Eu chegava em casa ia lembrar, ia ficar muito...
(Risos).

Mariana: Vou bater mais uma então aqui, só... Licença, seu Tabajara Pimenta, take dois. (Claquete).

Daise: Eu vou perguntar de novo tá? Então qual era a característica dela como Palhaço, que ela falava com aquele jogo com o Reis?

Tabajara: Aquela jocosidade dela, aquele chiste, ela tinha uma que pegava muito na praça, ‘No me lo diga Reis, no me lo diga’, aí o povo, até nós, é o jeito dela falar, é que eu não sei imitar ela, que ela era uma artista né? (Risos).

Daise: Então, o senhor trabalhou então no Circo Guarani...

Tabajara: Fiz cachês.

Daise: Em duas épocas...

Tabajara: Cinquenta e quatro, foi quando eu cheguei em São Paulo, e fiquei até cinquenta e cinco, cinquenta e cinco, ele já mudou mais o espetáculo, trabalhava mais com shows, trazia na época shows do Luiz Gonzaga [do Nascimento], e aquele, eu me lembro o nome do, do... Era umas outras... Cantores...

Daise: Cascatinha [Francisco dos Santos] e Inhana [Ana Eufrosina da Silva].

Tabajara: Cascatinha e Inhana, aquilo tudo era lotação, ele passou a trabalhar com mais shows, porque os shows eram menos onerosos, levava cinquenta por cento, mas se levasse muito é porque fez bastante, não é verdade? E ele tinha que driblar a época né, não podia ter um elenco né?

Daise: Mais ou menos que data que o senhor lembra disso, que a coisa já tava um pouquinho diferente.

Tabajara: Comecinho de cinquenta e cinco, quando começou janeiro, fevereiro, aquela chuvarada, tanto que eu saí de São Paulo, e fui para o Circo Hamburgo, lá para Cuiabá, Mato Grosso, e aí fiquei girando esse Brasil né?

Mariana: Isso tem haver com a época do rádio, a época de televisão, por isso que foi mudando?

Tabajara: Não, não, não foi não, não foi não, tinha aquela época o Walter Stuart [Walter Canales] né, que fazia o [Programa] Circo Bombril, a gente trabalhava no circo, tinha o Fuzarca [Albano Pereira] e o Torresmo [Brasil José Carlos Queirolo] né? Então tinha essa época assim, mas não foi não...

Mariana: Não foi a televisão que acabou com o circo, tem gente que fala isso...

Tabajara: Não, não, não, não acabou nada não, é que foi ficando, São Paulo foi explodindo, foi acabando os terrenos, o preço do terreno para o circo pequeno, e para o circo grande era o mesmo, só que o pequeno, o poder aquisitivo é menor né, então, e a folha de pagamento, e foi surgindo outras, que é difícil pra sobreviver em qualquer ramo né, o menor paga, paga por isso né?

Daise: O senhor soube como ficou o circo depois que o meu avô morreu? Porque a minha mãe ainda ficou um tempo.

Tabajara: Eu sei; não, não sei por que eu estava longe no nordeste né?

Daise: O senhor atuou no circo até quando mais ou menos?

Tabajara: Eu?

Daise: É o senhor.

Tabajara: Eu viajei quarenta e oito anos em circo, e depois passei para, não como artista, eu vim aqui em São Paulo, fiz alguns cachês ainda, aí passei a ser Gerente, administrar a secretaria do Circo de Roma, do [The] New American Circus, do circo dos Bartholo, aí numa junção dos Bartholo em Recife, com a Fionda, o pessoal de parque me conheceu, e eu fiquei até o ano passado viajando em parques de diversão, só na administração.

Daise: E hoje o senhor vai ser homenageado aqui no Centro de Memória [do Circo] né?

Tabajara: Exato. É uma felicidade, e mais ainda vocês estarem presentes aqui né, isso aí, foi bom a gente se conhecer né?

Daise: E como é que você está se sentindo com essa homenagem?

Tabajara: Ah, é uma satisfação imensa né, não tem... Mais algo a acrescentar na minha história porque eu já pensei até que tinham me esquecido né? Porque trinta anos fora do ramo de circo né? E diminuiu muito os circos né, aqui em São Paulo tinha sessenta circos nos bairros, era um troca, que nem um jogo de damas né, saia um circo entrava outro né? Agora com essas dificuldades todas, uma cobertura é caríssima né, tudo dificultou né?

Daise: Agora eu ia pedir, eu ia pedir, ele fez uma imitação da minha mãe agora pouco, eu falei, ‘será que o senhor faz?’

Tabajara: Qual?

Daise: A que o senhor fez na hora que a gente estava conversando, e o senhor falou, ‘ah, ela falava, não me lo digas Reis’, você consegue, será?

Tabajara: Consigo lógico.

Daise: Faz de conta que o senhor tá imitando o Xamego.

Tabajara: (Risos).

Daise: Não é? Eu achei gozado...

Tabajara: É mesmo?

Daise: Não tinha ninguém que fizesse isso, se o senhor quiser fazer um pouquinho, o senhor faz?

Tabajara: Faço, faço.

Daise: Então tá.

Rui: Vamos reposicionar?

Mariana: É só vamos...

Tabajara: Claro que faço.

Daise: (Risos). Quem é de circo é de circo não é? Eu achei muito engraçadinho o senhor fazer, porque aí prova que o senhor viu mesmo né?

Tabajara: Lógico que eu vi.

Daise: Eu sei que o senhor viu. (Risos). Eu achei muito engraçadinho.

Tabajara: Você já pensou se é numa época de tanta máquina fotográfica como existe hoje, todo...

Daise: Eu tento lembrar, mas eu não consigo...

Mariana: Vou só bater, só pra todo mundo ficar junto aqui...

Daise: Né?

Tabajara: Ah, você tinha uns seis anos naquela época.

Mariana: Take três, sonora seu Tabajara Pimenta. (Claquete).

Tabajara: Pode perguntar aí.

Daise: Seu Tabajara, o senhor consegue imitir aquele chiste que o Xamego fazia, com o corpo, com a voz, e tudo mais? O senhor faz pra gente?

Tabajara: Eu vou tentar né, porque eu não... (Risos). Eu tô muito longe de chegar no Xamego, mas quando o Reis falava qualquer coisa, o Reis falava o Xamego falava, ‘ai Reis, no me lo diga Reis, no me lo diga’, aí a plateia caia na... (Risos).

Daise: (Risos).

Mariana: Eu vou pedir só, se o senhor puder fazer só mais uma vez, mãe só fica em pé porque ele olha pra você, pra cima.

Tabajara: Entendi.

Mariana: Assim ele tá olhando pra baixo.

Tabajara: Pra baixo, isso.

Daise: Aqui onde eu tô?

Tabajara: Não, mas se quiser agora pode ficar sentada que eu já sei que é pra olhar...

Mariana: É pra frente assim oh.

Tabajara: Vou olhar pra cima.

Daise: Aqui?

Tabajara: É porque realmente.

Mariana: Atrapalha o se braço, só cuidado com o seu braço.

Tabajara: Pode sentar, pode sentar que eu vou olhar pra ela.

Mariana: Aí, aí.

Daise: Isso, aí o senhor olha pra cima.

Tabajara: É aí ela explora os dois, o que ficar melhor né?
(Risos).

Mariana: Beleza.

Daise: Falo de novo?

Mariana: Não, pode ir.

Daise: Pode ir então...

Tabajara: Aí ela falava, quando o Reis falava, ‘Xamego, você vai ter que morrer Xamego’, o Xamego falava, ‘No me lo digas Reis, ai, ai, ai, no me lo diga’, aí a plateia caia no...

Mariana: Nossa, que demais.

Tabajara: E é ‘no me lo digas’ mesmo, eu lembrei, eu lembrei ali.
(Risos).

Mariana: O senhor tem alguma mensagem, alguma coisa que o senhor queira que a gente registre, ou da sua história, dessa conversa, eu não sei.

Tabajara: Pode ser dessa conversa né?

Mariana: Então vai.

Daise: Pode sentar né?

Mariana: Então peraí, deixa só eu baixar aqui. Pode sentar, eu só vou ajeitar aqui...

(Breve silêncio).

Daise: O senhor fica a vontade. Estamos no tempo né Fê?
Fernanda: Estamos.

(Breve silêncio).

Mariana: Pronto.

Tabajara: Pronto?

Daise: Pode falar o que o senhor quiser.

Tabajara: Olha; não, pra encerrar, primeiro eu agradeço vocês, e tenho certeza absoluta, que a Xamego está rindo de mim lá em cima. (Risos). Falando, ‘olha, aquele menino lembra de mim’, agora eu já tô velho, mas ela lembra, tenho certeza, ela tá rindo lá em cima, me abençoando. E agradeço muito a oportunidade que vocês estão me dando de falar aquilo que eu falo de coração, e muito obrigado, e foi um prazer imenso conhecer vocês, agora, ela era pequenininha, tinha uns sete anos. (Risos).

Daise: E o senhor tinha quanto mesmo?

Tabajara: Naquela época? Dezoito, por aí, dezessete, dezoito, dezoito anos mais ou menos, já fiz dezoito anos né? (Risos).

(Risos).

Mariana: Nossa!

Tabajara: Valeu!

Daise: Muito obrigada.

Mariana: Muito, muito, muito, muito obrigada. (Mariana da um abraço em Tabajara).

Daise: Ah o senhor não sabe, que preciosidade. (Daise se levanta e dá um abraço em Tabajara). A parte mais... (Daise dá um beijo no rosto de Tabajara). Nossa! Obrigada viu? E parabéns pela homenagem.

Mariana: Um presente conhecer o senhor. Muito obrigada viu?

Tabajara: Não, mas valeu, nossa!

Daise: Que maravilha!

Tabajara: Isso eu fiz de coração mesmo, vocês é que me deram o favor de botar pra fora aqui...

Daise: Imagina. Que maravilha!


(Fim da entrevista).

JOAQUIM ANTONIO


JOAQUIM ANTÔNIO
DIA 1 / CANON 60D 01

Daise: Quincas, fala pra nós aqui o que que você lembra quando você ia na minha casa, se com o meu irmão que você era um grande, é um grande amigo dele até hoje, como eram os assuntos sobre o circo, sobre a minha mãe ser Palhaço, enfim, eu e meu irmão acrobatas, conta pra gente.

Quincas: Em sessenta e dois foi o ano que eu conheci o Aristeu, que a gente ia montar uma banda, naquela época chamava-se conjunto, e aí eu fui na casa do Aristeu pra conhecer a família, pra ver os instrumentos que ele tinha, o que ele tinha pra oferecer, fui eu, o Leonardo [Diniz]. E eu fui conhecendo a dona Eliza, o seu Eurico gente muito boa, muito hospitaleira. E aí, aquilo animou a gente de montar o conjunto, e começamos a ensaiar, e participava muito. E sempre depois dos ensaios, a gente ficava horas e horas jogando conversa fora, falando da vida, o seu Eurico falava muito de circo, a dona Eliza, da época que eles trabalhavam que eles faziam os shows, e aquilo pra mim era assim, uma coisa tão interessante porque nunca tinha assim, acompanhado alguém que tivesse uma vida assim, de circo, eu achava aquilo maravilhoso. Então foi assim uma experiência assim de conhecimento né? Foi uma época muito boa, aquela amizade que a gente formou com a família, com a Daise e a gente tem muita saudade dessa época. Uma saudade muito, muito grande, era uma época muito rica de amizades.

Daise: E aí, por exemplo, você lembra de alguma coisa específica que minha mãe falava sobre o circo, ou mesmo o meu pai contava pra você, porque ele se apresentava junto com a minha mãe.

Quincas: É eles faziam assim, o papel de Palhaços né, do circo, eram... Eu não participei, mas eu imaginava, conforme ele contava eu imaginava como que deveria ser. Que deveria ser uma coisa assim muito, muito legal.

Daise: E você acha que a minha mãe, mesmo ela não estando vestida de Palhaço, você conseguia imaginar ela...

Quincas: Ela tinha um jeitinho peculiar né, assim de quem já trabalhou dessa maneira, era muito interessante, os dois juntos conversando, pareciam que eles estavam vivendo aquele momento, e a gente participava disso né?

Daise: E aí, a partir de um momento você começou a tocar com meu irmão né?

Quincas: Isso, e aí nós montamos, montamos um conjunto né, chamado Snakes, que era eu, o Aristeu, o Leonardo na bateria, e o Vagner [Assunção] né, no acompanhamento. O Aristeu era uma pessoa assim muito evoluída, inclusive o seu Eurico também tocava violão, e dava assim muita orientação pro Aristeu. E o Aristeu desenvolveu assim, um conhecimento muito grande com guitarra né? Tanto é que depois quando a gente desmontou o conjunto, e cada um continuou a sua vida, o Aristeu foi tocar no [conjunto] RC7 [do cantor Roberto Carlos], teve muito sucesso, né?  Mas foi uma época muito boa.

Daise: E me fala uma coisa, você tocava que instrumento?

Quincas: Eu tocava contrabaixo. Eu já tocava o contrabaixo quando tocava nos Castores, mas não tinha muita experiência, e com o Aristeu é que eu aprendi mesmo a tocar contrabaixo.

Daise: Quanto tempo foi, Quincas, que vocês tocaram?

Quincas: Mais ou menos, no conjunto Snakes, uns dois anos nós ficamos juntos.

Daise: Dois anos?

Quincas: Dois anos.

Daise: E aí depois disso, a sua vida tomou outro rumo?

Quincas: Tomou, aí tomou outro rumo, eu gostava do conjunto, mas ao mesmo tempo eu achava que a gente não tinha divertimento, a gente tocava pra divertir as pessoas. Então, foi esse o motivo que fez com que eu me afastasse.

Daise: E você passou a se ocupar com o quê?

Quincas: Aí eu fui continuar meus estudos, e o meu trabalho, e fui tocando a vida.

Daise: Sempre lá naquele bairro?

Quincas: Não, eu mais ou menos uns dez anos depois eu saí do bairro, fui pro Tatuapé, outro bairro né, aonde eu desenvolvi toda a minha vida, e hoje a gente de vez em quando se encontra né, nas amizades.

Daise: O que você acha desses encontros?

Quincas: Olha, eu, eu gosto demais, eu acho muito interessante, a gente deve preservar, enquanto a gente tem condições, a gente deve continuar com esses encontros, é muito bom você rever os amigos, lembrar da época,  isso é muito interessante.

Daise: Nós vivemos bons tempos né?

Quincas: Muito bom; muitos bons tempos, realmente foram bons tempos demais.

Mariana: Posso fazer uma pergunta de neta?

Quincas: Pode.

Mariana: Porque eu fico curiosa, têm duas coisas que eu fico muito curiosa, uma que você falou que a minha avó tinha uma coisa peculiar, você tem alguma lembrança, tem alguma coisa, alguma situação?

Quincas: Eu não me recordo bem, mas ela assim conversando, ela fazia gestos, sabe? Da maneira que trabalhava, e até o seu Eurico falava, ‘pô, você está pensando que você está no circo?’ (Risos). Era interessante isso...

Mariana: O movimento do corpo.

Quincas: Isso, exatamente.

Mariana: E essa coisa também de... Você não chegou a ver ela vestida?

Quincas: Não, não cheguei, nessa época... Porque quando eu me aproximei assim, ela já praticamente, eles já não estavam mais exercendo essa, essa profissão né, de trabalho em circo, mas conversando com os dois, como nós conversávamos, era interessante, porque parecia que eles estavam vivendo aquilo ainda, sabe? Era muito recente, a gente via por foto e tudo, mas era muito recente.

Mariana: Ela era uma pessoa muito alegre né?

Quincas: Muito, os dois muito alegres.  O seu Eurico então, ele, a gente estava ensaiando, ele estava no meio, se tivesse um instrumento pra ele pegar e tocar também ele queria, ele era muito, muito ligado no violão.

Daise: Tem alguma coisa que você queira falar pra gente, daquela época, da sua vida, ou dessa nossa, desses encontros, alguma coisa pra acrescentar, ou você acha que...

Quincas: Olha, é o que eu falo pra você, eu tenho muita saudade daquela época né, e eu procuro preservar todas essas amizades que eu ainda tenho que dá pra gente curtir ainda por muitos anos.

Daise: Mas o contrabaixo...?

Quincas: O contrabaixo talvez, se com, junto com o Aristeu, eu conseguiria tocar novamente. Porque o Aristeu, ele continuou, ele tem todo o conhecimento, toda a técnica, e eu sei que se eu pegasse um contrabaixo ao lado dele, eu conseguiria tocar.

Daise: (Risos).

Quincas: Mas só com ele, com outra pessoa talvez não.

Daise: (Risos). Obrigada querido.

Quincas: Nada.

Daise: Obrigada. É uma delicia né, a gente relembra e se emociona né?

Quincas: Verdade.

(Fim da entrevista).

ELIANA


ELIANA                                              
DIA 07 / CANON 60D 02

Mariana: Vai, eu tô gravando aqui, vocês estão gravando aí?
Minehira: Tá sem foco.
Thyago: Tá sem?
Minehira: Tá sem foco.
Mariana: Peraí, peraí. Soltei aqui. Licença. Eliana take um. (Claquete).
Thyago: Espera a moto passar primeiro.
Mariana: É, vamos depois da moto então. (Risos). Depois da moto.
(Barulho de moto).
Thyago: Vai lá.
Mariana: Vamos lá.
Daise: Eliana, conta pra gente, parece que teve uma ocasião que a minha mãe reuniu você quando era criança, outras crianças do nosso pedaço ali, pra se apresentar, pra tocar, do que que você se lembra? Pode ir contando pra nós, vamos ver...
Eliana: Então, em uma ocasião a tia Eliza reuniu uma série de crianças né, era eu, meu irmão, vizinhos, e ela fez uma apresentação do Palhaço Xamego né, e nós ficamos maravilhados porque a gente nunca tinha visto a gente... Eu até teria visto na televisão, alguns circos que faziam, mas era muito raro a gente ver assim ao vivo, a cores né, nós ficamos muito contentes né, muito alegres de ver aquela apresentação, ela era muito boa no que ela fazia né, então nós ficamos muito contentes, todas as crianças, ficamos assim, pasmos né?
Mariana: Quantos anos você tinha?
Eliana: Eu devia ter uns seis anos mais ou menos, sete anos. O Ronaldo devia ter uns dez, onze, o meu irmão né? E toda a vizinhança ali, ela reuniu né, e fez uma apresentação só, pra todos nós, porque todo mundo tinha muita curiosidade em saber, porque ela, ali ela não era o Palhaço Xamego, ali era a dona de casa, ela era a mãe, esposa, a tia né, e ela ia trabalhar, e a gente nunca viu, nunca tínhamos visto, o que ela fazia realmente, a gente não tinha nem ideia né, porque naquele tempo era todo mundo muito simples, a gente quase não saia de casa a gente brincava no meio da rua, a gente brincava de pega-pega né, corda, a gente quase não saia de casa, então a gente não tinha ideia de que o circo era uma coisa boa né, era raro a gente sair de casa, a gente não ia mesmo né, então aquilo foi pra nós uma coisa inédita né? (Barulho de moto ao fundo que se sobressai à voz da entrevistada). Ver a cores e ao vivo um Palhaço fazendo uma apresentação. Ela fazia uma apresentação com guizos né?
Mariana: Vamos fazer de novo, só porque essa moto tá matando a gente, peraí... Sai moto. Passa carro... Porque você disse, ela ali naquele espaço ela era dona de casa...
Eliana: É, ela era uma pessoa normal, ela não era uma artista, ela era uma dona de casa, mãe né, trabalhadora, a gente sabia que ela trabalhava, a gente não sabia, não tinha ideia do que ela fazia né? A gente muito inocente mesmo né? E aí naquele dia não, ela fez a apresentação como ela trabalhava, então nós pudemos ter uma ideia, que não era só um Palhaço, ela era um musico né, porque ela fazia música com os guizos, com sons né, ela tirava música né, ela ia batendo a mão, a perna, batendo e tal, ela ia fazendo música.
Mariana: Como é que era essa história dos guizos, como é que era esse numero você lembra?
Eliana: Daquilo que eu me lembro né, era um tipo de um sobretudo, um paletó, um terno, grandão assim, cheio de bolsos me parece, do que eu me lembre era isso né, cheio de bolsos, e aí ela ia tirando os sons né, ela ia batendo o pé, ela tinha guizos presos né, na perna, nos braços, então ela ia tirando um som, fazendo música né? É isso que eu me lembro dela.
Daise: E ela tava pintada Eliana? Como é que tava o rosto?
Eliana: Então nesse dia não tava tão pintada, tão caracterizada não, mas ela tinha sim, ela se vestiu mais ou menos pra gente ver o que ela fazia, foi muito interessante.
Mariana: E tinha essa coisa da voz, da mudança da voz?
Eliana: Ah, ela fazia um pouco de palhaçada assim, mas não era só um Palhaço não, ela tinha, ela fazia todo um show mesmo, era um show que ela fazia né? Era muito legal.
Mariana: E você acha que dava pra perceber na minha avó essa coisa dela ser Palhaço, mesmo quando ela não tava vestida?
Eliana: Não, ela era completamente diferente, ela era uma pessoa centrada, ela era assim, ela tinha um... Ela era espirituosa vamos dizer assim, ela fazia muita brincadeira, ela tinha muitas tiradas engraçadas, mas longe do que ela fazia, ela era muito espirituosa, ela era, mas não assim, não fazia palhaçada, não era uma pessoa né, se ela vivia fazendo palhaçada? Não! Ela era uma pessoa normal, tanto que eu te falo que a gente não tinha nem ideia do que ela fazia profissionalmente né?
Mariana: E vocês chegaram você chegou a ir ao Circo Guarani?
Eliana: Nunca, eu nunca fui a minha mãe foi, mas eu nunca fui eu não cheguei a ir... Porque eu acho que também já tinha, tava... Acho que naquela fase já tava terminando né, já estavam, já tava terminando mesmo né, o circo né, já não era, não sei se era dela mais naquela altura, eu não sei se eles já tinham vendido o circo então nós não chegamos a ir não.
Daise: E onde vocês estavam Eliana...
Thyago: Espera, espera, espera.
(Barulho de caminhão ao fundo).
Daise: Onde vocês estavam quando ela se apresentou? Lá na minha casa?
Eliana: Foi na sua casa.
Daise: Foi na minha casa?
Eliana: Foi na sua casa que ela fez.
Daise: Lá na casa que era do meu avô?
Eliana: Isso, na casa do meu avô.
Daise: No terreno do avô.
Eliana: É ali naquele lugarzinho aqui, aquele jardinzinho que tinha ali, foi ali mesmo que ela fez né? Foi muito gostoso, foi uma tarde muito gostosa. Ela era uma pessoa assim... O que eu me lembro da minha tia? Era uma pessoa forte né, lutadora, ela era uma pessoa, pra época, eu sinto assim, pra época ela era uma pessoa diferente, uma mulher diferente, porque as mulheres eram muito submissas, elas não saiam de casa, quase não trabalhavam, eram só donas de casa, e ela não, ela era uma pessoa batalhadora. O que eu lembro dela é isso, o que eu mais lembro dela é a batalha que ela fazia de cuidar da casa, cuidar dos filhos, eles estudaram, estudavam, era uma vida normal, fora isso ela ia a noite, ela trabalhava a noite, então era uma coisa diferente, as mulheres não saiam à noite, então ela deve ter tido muitos percalços durante a vida, muitos problemas porque era uma coisa diferente, não se fazia isso naquela ocasião, então ela era uma mulher além do tempo, ela foi uma mulher muito né, mais moderna vamos dizer assim né, naquela visão dela ela saia, ela batalhava, ela ia a noite trabalhar, vinha sozinha, eu me lembro muitas vezes ela vinha sozinha, aquela rua escura, não tinha iluminação não, não tinha condução, era ônibus, e olha lá, bonde e ônibus, não tinha metrô, era uma coisa bem né, bem precária, e ela não trabalhava perto, eu não sei nem o lugar que ela ia, talvez muito longe, minha mãe disse que era um lugar muito distante de onde a gente morava né, a gente morava aqui na zona leste né, eu não sei nem aonde que ela ia, onde era esse circo, e ela ia e vinha sozinha, sozinha ela vinha, eu me lembro dela entrando naquela rua escura, e sozinha, e caminhando, e pegando os filhos que estavam ali brincando ainda com a gente, levando pra casa né, eles estavam sempre esperando por ela no portão, sempre esperando por ela né, e ir pra casa dormir, então ela foi uma pessoa iluminada sabe? Ela viveu muito, muito bem, mas não foi fácil a vida dela não, foi bem difícil, pelo o que eu lembro, foi bem difícil.
Mariana: É a tia Vera falou um pouco essa coisa da, ela falou dessa coisa de que ninguém, ela não tinha muito que dar satisfação pra ninguém porque ela era uma pessoa ela era uma pessoa que trabalhava muito, eu imaginei, a minha pergunta que vinha na cabeça né, existia um preconceito com o artista?
Eliana: Ah eu acho que todo mundo tinha um pouco de preconceito sim, principalmente porque ela saia e vinha a noite, sabe lá o que se passava pela cabeça, hoje eu entendo, naquele tempo não, a gente era tudo criança, era tudo tão gostoso, era tudo, valia tudo né? Mas hoje, hoje eu estou eu sou uma mulher né, de idade, eu entendo e eu acho que sim, eu acho que ela deve ter sofrido muita discriminação sim, pela cor, pela profissão, por ser assim uma pessoa decidida, ela não esperava por ninguém, ela ia atrás né? E as mulheres não eram assim naquele tempo, então eu acho que ela deve ter sofrido muito sim, ela só não falava porque ela não era uma pessoa que ficava chorando, ou ficava reclamando da vida não, eu nunca vi ela reclamar de nada, nunca vi, eu nunca vi a minha tia Eliza chorar, eu não vi, eu tinha muito pouco contato com ela, entende? Eu não tive muito contato, quem teve mais foi o meu irmão, ele ia muito com o Aristeu, tava sempre lá, iam na escola juntos, voltavam juntos, eu era mais nova, a Daise também tinha uma turminha, a minha prima tinha uma turminha um pouco mais velha, então ela tinha a turma dela, eu era a mais nova, então eu não tinha assim tanta ligação né, era o meu irmão que tinha mais, mas o que eu vi dela é isso, que eu posso falar, e o que eu, posso prestar esse depoimento é sobre ela, é, sobre esse ponto de vista tá? Porque hoje, amadurecida, eu sinto que ela era uma mulher totalmente fora da época tá? Fora da época mesmo, todo mundo dizia amém as coisas, ao marido, a rotina, ela não, ela foi à luta. (Eliana se emociona). Isso me emociona um pouco. (Risos).
Mariana: Muito legal. Muito legal.
Daise: Nossa! Maravilha. A gente não convive há tanto tempo né? (Daise levanta-se e abraça a prima Eliana).
Eliana: Pois é. Não tinha né? Esse convívio né? A visão era essa... Posso te contar...
Daise: Era isso mesmo.
Eliana: É só isso que eu tenho pra falar.
Daise: Nossa! Vou te falar viu, é uma emoção...
Eliana: Eu espero que dê certo.
Daise: Tá ok aqui, vocês querem?
Mariana: Não, foi incrível.
(Fim da entrevista).

RONALDO

RONALDO
DIA 07 / CANON 60D 02

Daise: Pra mim viu Ronaldo, pra eles poderem fazer as...
Mariana: Licença aqui. Vamos lá?
Thyago: Peraí.
Minehira: Vou deixar aqui por causa da bateria...
Mariana: Pode ser? Ronaldo take um. (Claquete).
Thyago: Vai lá, pode ir.
Mariana: Pode ir.
Daise: Ronaldo, diz pra mim como é que foi, acho que deve ter sido a única vez que você viu minha mãe de Palhaço, conta pra nós como é que foi, onde estava como ela estava, e o que você sentiu no momento? e quem tava com você né?
Ronaldo: Tava eu, os amigos que estavam mais próximos ao Aristeu, que era o Mariovaldo, a minha irmã, não lembro mais quem tava conosco, só lembro dessas três pessoas mais próximas que estavam sempre comigo né? E ela tava de Palhaço, não pintado o rosto, só com a peruca assim, em cima da cabeça, cobrindo o cabelo dela, com a roupa preta, com os guizos...
(Barulho de helicóptero ao fundo).
Minehira: Cortou.
Mariana: Cortou porque não tá valendo por causa do helicóptero. (Risos).
Ronaldo: (Ronaldo olha pra cima e abre os braços). (Risos)
Mariana: (Risos).
Daise: Cadê o fuzil?
Ronaldo: Derruba. (Risos).
Daise: Chega!
Mariana: Vamos lá então, vamos lá.
Daise: Pergunto de novo?
Mariana: Vamos lá.
Daise: Já pode entrar falando.
Thyago: Vai lá, vai lá, pode mandar bala.
Daise: Vai lá.
Ronaldo: Então, eu lembro que a pessoa mais próxima da minha casa, era a minha irmã, Mariovaldo tava sempre com a gente, sempre comigo né, e o teu logicamente o Aristeu né? O Aristeu era muito chegado a minha pessoa, a mim e a minha irmã, então ela pôs lá a peruca na cabeça, pra por no cabelo, não tava com pintura no rosto, e pôs a roupa preta com os guizos tudo prateados assim, e começou a dançar pra gente ver como é que ela procedia no circo. É, fica muito difícil falar as coisas pra pessoa que a gente gostava muito né, da tia, da irmã dela a Efigênia, e meu tio, principalmente a dona Efigênia era muito maravilhosa também comigo né, me chamava de loiro, ‘oh meu loiro, chegou meu loiro’, e eu ficava todo feliz né, ficava envaidecido né, envaidecido, ficava envaidecido mesmo com isso, e foi isso que aconteceu aquele dia, eu vi ela tocando, batia perna, batia o braço, fazia assim...
Mariana: Foi a primeira vez que você viu minha avó como Palhaço?
Ronaldo: Primeira vez. Que eu lembro, tinha uns dezesseis, dezessete anos, dezesseis, dezessete anos, e eu lembro disso aí muito bem. Se eu fui alguma vez ao circo da tua avó, eu nunca, eu não recordo mais, eu era muito pequeno, meu pai vira e mexe ia no circo, meu pai gostava do circo, também gostava de circo, o tio Nuno tocava violão, então era uma família de circense né, era muito bacana, muito bonito.
Mariana: Como é que era isso, como é que era né, ser parente de uma família que era de circo, como que era isso pra você?
Ronaldo: Olha, eu... O Aristeu fazia pirueta, salto mortal, flip flaps, essas coisas todas, a minha prima Daise fazia contorcionismo né? Então é... Eu me sentia envaidecido, tinha um pouco de atleta, o Aristeu tinha um pouco de atleta maravilhoso né, e eu jogava só futebol. (Risos). Eu era do futebol e bicicleta, eu sempre andei de bicicleta, quando vocês chegaram lá do Piqueri né, eu tava na rua andando de bicicleta, chapéu na cabeça virado pra trás o chapeuzinho.
Daise: Você lembra disso?
Ronaldo: Lembro, aí teu pai chegou engessado, meu pai falou, ‘vamos lá ver seu tio’, fui lá no, pegado a janela, a janela da sala né, tava lá barbudo, é fogo, eu lembro exatamente como foi, e marcou, marquei, marcou meu tio, ele falava assim pra mim, ‘esse moleque chapéu na cabeça ao contrario e tal e tudo’, sempre na gozação né? E a minha tia sempre maravilhosa, a tia, a tia Efigênia, que eu chamo de tia Efigênia também, que era sua tia, era muito maravilhosa também.
Mariana: Esse, esse, essa história do meu avô que tava com a perna engessada, foi quando eles tiveram que vender o circo, não foi? Foi a história da...
Ronaldo: É, foi.
Daise: Você lembra disso?
Mariana: O que que foi que aconteceu você lembra?
Ronaldo: Não lembro. Eu fiquei sabendo assim, depois mais velho, que tinha sido, tomou um tombo no circo né, tomou um chapéu no circo lá, não sei quem foi que deu o chapéu nele, eu não sei o que aconteceu com ele, a família Alves, o senhor João Alves, e o seu tio Toninho e... Era bom, tava bom, o Toninho tava bem, perfeito ainda, mas só isso aí, eu não sei o que aconteceu. Eu não sei mais...
Mariana: Tá chovendo né?
Minehira: O que puder esticar...
Mariana: Tá, vamos lá... É, Ronaldo, a minha avó como Palhaça, você acha que dava pra perceber que ela era Palhaça independente dela estar vestida de... Tinha alguma coisa que dava pra identificar que ela era Palhaço, no jeitinho dela ser...
Ronaldo: Ah sim.
Mariana: Por exemplo...
Ronaldo: Ah, o modo dela falar, o modo dela dar, dar, o sorriso sempre no rosto né? Então, ela se sentia bem com isso, se sentia bem, ela sentia muito bem fazendo esse tipo de papel, e era uma moça, uma mulher muito, muito, ela era muito de labuta. Ela chegava tarde a noite do circo, às vezes eu ia com o Aristeu encontrar com ela no fim da rua, por volta de um quilômetro onde ela descia do ônibus e vinha até a casa onde eles moravam no Aricanduva, então foi muito bacana, ia o Aristeu, toda vez que ela vinha lá, o Aristeu estava lá, o Mariovaldo ia, eu ia, às vezes algum outro amigo ia com o Aristeu, acompanhando o Aristeu pra vir junto, as vezes ia em dois, três amigos, quatro amigos, ia tudo junto né, a gente ia conversando, ele vinha com a mãe na frente, e era muito bacana isso aí, foi uma coisa que marcou na minha vida.
Thyago: Tem alguma história que ele lembra...
Mariana: Tem mais alguma história Ronaldo, que você lembra assim da minha...?
Ronaldo: Tua mãe tava sempre com um sorriso nos lábios, e a dona Efigênia também né? (Risos). Eu chegava na janela, ‘o Aristeu tá aí?’, eu sempre com a bola, sempre com a bola pra jogar futebol, e ela, ‘oh loiro, entra aí, entra aí’ e tal, e na escola, que às vezes a gente saia junto pra ir pra escola também, a noitezinha, saia da saia da minha casa, subia a rua, passava no Aristeu, chamava o Aristeu, às vezes a Daise ia também, quando ia, ia eu e o Aristeu, Mariovaldo sempre sozinho, e era muito bacana. Tinha um avental azul que era, parecia São Paulo Alpargatas, o avental... (Risos). O avental azul parecia São Paulo Alpargatas. (Risos). Não era bem um avental, era um vestido azul...
Daise: Isso.
Ronaldo: Botou ele na frente, uma coisa horrível, o uniforme da escola. (Risos). Uma vez eu briguei com o Inspetor de Aluno, ele não gostava de mim, e eu também não gostava do Inspetor de Aluno, porque ele deu um susto na minha prima, ele tava meio bêbado, e a minha prima caiu da escadaria na entrada da escola, e ela caiu um tombo né, ele assustou ela, eu não sei, ele assustou ela e ela caiu, ah, fiquei louco com ele, briguei com o homem né, quase sai na porrada com ele, o seu Martim. Você lembra disso?
Daise: Era eu a prima. (Risos).
Ronaldo: (Risos).
Daise: O seu Martim era o terror né?
Ronaldo: É.
Daise: Ele veio brigar comigo, eu cai né?
Ronaldo: Caiu né?
Daise: Ele brigou com ele. (Risos).
Ronaldo: Você caiu da escada, eu briguei com o cara. Palhaço, sem vergonha!
Daise: Era.
Mariana: Você acha que existia um preconceito na época pelo fato deles serem de circo? Tinha uma coisa assim ou não?
Ronaldo: Eu nunca tive esse preconceito, mas eu sei que as outras pessoas podiam ser, podiam ter, eu nunca tive preconceito nenhum, eu nunca tive preconceito de nada, na minha vida sempre foi o que eu fiz, sempre foi um livro aberto a minha vida, pra todo mundo, o que eu fiz eu fiz, está feito, não volto atrás, se tivesse que vir novamente, faria tudo novamente, mas eu não tive esse problema, eu nunca tive preconceito de nada na vida, nada.
Mariana: Mas você acha que as pessoas tinham?
Ronaldo: Outras pessoas pode ser que tivesse.
Thyago: Como que eles encaravam assim, como que eles viam?
Ronaldo: Não, é que, pra eles eu não, Deus que me perdoe se falar alguma coisa pra mim ia dar problema né, porque eu era meio pavio curto né, e eu não admitia esse tipo de coisa, não admitia. Minha mãe, minha mãe era uma pessoa que gostava demais da sua mãe, da minha tia né, gostava demais da tia Eliza, e eles sentiam um pouco, porque eles tinham uma vida mais sacrificada né, foi uma vida com sacrifício né, isso tudo, vocês estão aqui hoje, todo mundo bem, estamos no final da nossa vida também, era graças a tua mãe, tua mãe e tua tia, é fogo... (Ronaldo se emociona).
Mariana: Você lembra Ronaldo que esse momento na verdade que meus, que a minha mãe, meu tio, enfim, minha avó... Moraram por aqui foi a época acho que mais difícil deles né, de vida né?
Ronaldo: Foi.
Mariana: Porque foi quando a minha avó teve que vender o circo né?
Ronaldo: Ela vendeu o circo, ela foi trabalhar no circo outro, foi trabalhar num outro circo né, eu não sei, ela trabalhava, ela trabalhou, depois disso aí, que foi, que chegou lá, uns quinze anos, depois trabalhou quinze, dezoito anos lá no circo, fazia de Palhaça, eu sabia que ela fazia isso, nunca tive preconceito nenhum dela, o Aristeu também parou de trabalhar no circo, a Daise também parou, foram estudar, cada um foi pro seu caminho, pra seguir, e ela continuou sozinha no circo.
Mariana: Você chegou a ver a minha mãe e o meu tio no circo, trabalhando?
Ronaldo: Não, o Aristeu fazia sempre um pouco, o Aristeu ia sempre no campo de jogar bola e fazia uma ginastica pra mim né? E a Daise uma vez fez também. (Risos). Muito bacana. (Ronaldo se emociona).
(Breve silêncio).
Ronaldo: Eu fico meio emocionado de falar assim que... Vem as lagrimas nos olhos, lembrando das coisas boas da nossa vida, pode ter sido ruim a situação deles, mas pra mim, a minha vida era muito boa com eles, junto com eles, entendeu? Sempre fizemos de tudo que nós tivemos, que nós pudemos ser na vida.
Mariana: Se fosse dizer alguma coisa... Quer zerar e já?
Minehira: Não, então, esse cartão acabou agora está gravando direto, o cartão acabou...
Thyago: Quer...?
Mariana: Vamos lá mais um?
Thyago: Tem três minutos aqui. Vai lá.
Daise: Três minutos hein?
Mariana: Ronaldo take dois. (Claquete).
Daise: Então Ronaldo, nesse, nesse finalzinho então fala um pouco assim, você conheceu a minha mãe, o meu pai, a minha tia Efigênia, a chegada deles no bairro, como pessoas de circo, você acha que teve um impacto na criançada, nas famílias, nos vizinhos?
Ronaldo: Eu imagino que alguém talvez tivesse um pouco de preconceito né, eu na minha época de infância, fui criado sem preconceito nenhum, que nem eu te falei, eu adorava vocês né, eu tinha tudo na vida, tinha a minha irmã, tinha a minha prima, o meu primo, sempre ao meu lado, pô, fiquei feliz pra burro, tinha um parceiro pra jogar futebol, parceiro pra andar de bicicleta, parceiro pra tudo eu tinha né, parceiro pra ir na escola, parceiro pra tudo, então era muito bom.
Mariana: Você tem lembrança assim do meu avô, meu avô Eurico, porque o pessoal falou muito né, da relação da minha avó com meu vô, porque eles, em cenas eles faziam números juntos né?
Ronaldo: É.
Mariana: Então os meninos né, o Leonardo, o pessoal comentou que tinha uma coisa...
Ronaldo: Então eu não... O Eurico chegou com a perna quebrada, ele não fazia mais... Não fez mais... Como é que se diz?
Mariana: Número?
Ronaldo: Não tinha mais número nenhum com a tua mãe né?
Daise: A minha mãe.
Ronaldo: Não trabalhou mais, aí depois de um certo tempo, que ele tirou o gesso, ele ficou seis meses, seis meses engessado, seis, sete meses, sete, oito meses aleijado, aí meu pai conseguiu arrumar um emprego pra ele na CAIO [Companhia Americana Industrial de Ônibus], meu pai tinha amizade com o avô do Felipe Massa, corredor de, corredor de corrida, ele era dono da CAIO, e alguns, alguns outros, algumas outras pessoas que estavam lá, que trabalhavam lá na CAIO, eram amigos do meu pai, de bairro, de conhecimento, meu pai era policial, então tinha muita amizade, então conseguiu arrumar pro meu avô, meu tio, meu pai arrumou pro meu tio pra trabalhar na CAIO, de Segurança na CAIO né? E nunca mais trabalhou com a sua mãe. Eu fiquei sabendo que ele trabalhava com a sua mãe, por N motivos, o Aristeu falava, a tia falou uma vez, mas só isso.
Mariana: Ah tá, mas não tinha uma coisa entre eles assim que dava pra perceber que eles se apresentavam juntos, alguma coisa assim?
Ronaldo: Falaram, mas nunca vi eles trabalhando juntos né? O Eurico também era meio fechado né? Meu tio com perna quebrada só tocando violão, de vez em quando tocava um violão, até que o Aristeu aprendeu a tocar violão. (Risos). Meu pai tocava bem violão, meu tio tocava bem violão, e o Aristeu foi o expert da família, maior solista que tem aqui no Brasil. Aprendeu a tocar com um violãozinho velho. Minha mãe pegou do meu pai e deu pro Aristeu escondido, o violão tava pendurado lá no quartinho, aí...
Thyago: O cartão e a bateria.
Mariana: Sério? Tem alguma coisa além?
Minehira: Mas não tem microfone.
Thyago: É que aqui vai dar a bateria e o cartão cheio.
Mariana: Vixe!
Thyago: Quer trocar o microfone?
Mariana: Vamos por ali? É.
Daise: É um barato como a gente vai lembrando né?
Ronaldo: É, vai conversando vai lembrando.
Daise: Você vê, eu não sabia desse lance que foi seu pai que arrumou emprego pro meu pai na CAIO.
Ronaldo: É. E aconteceu o seguinte...
Thyago: Vocês pegaram a caixinha que estava aqui em cima...
Ronaldo: O papo é o seguinte, o Aristeu, minha mãe pegou o violão escondido do meu pai...
Mariana: Ronaldo take três. (Claquete). Foi.
Daise: Conta então pra nós de novo essa coisa da CAIO, e dos tempos que foram realmente difíceis...
Ronaldo: Difíceis mesmo, com certeza pra vocês foi mais difícil do que pra mim, pra nós todos né? O que acontece é o seguinte, aí meu pai conseguiu arrumar, com o pai do Felipe, o avô do Felipe Massa, pra trabalhar na CAIO, Companhia Americana Industrial de Ônibus, que era na Rua Guaiaúna, trabalhou de Porteiro, Porteiro fardado e tal, bonito, e aí começou a pôr a vidinha dele em ordem né, um pouco em ordem, e esse papo da, que nem você falou da, da tua mãe trabalhar com o teu pai, só de ouvir dizer, só falei, nunca vi ele trabalhando porque ele nunca mais trabalhou depois que tirou o gesso, foi arrumar emprego na Companhia Americana Industrial de Ônibus. É isso aí.
Mariana: É, porque foi justamente né, o que a gente tá batendo um pouco na tecla, mas é porque foi justamente o momento que minha avó teve que vender o circo, e meu avô parou de trabalhar, então foi um momento super...
Ronaldo: É o teu pai, o teu pai, o teu avô ficou uns oito meses sem trabalhar.
Daise: E quem sustentou a família foi a minha mãe né? Costurava né? Você lembra que a minha mãe costurava pra fora? Isso eu acho que a gente não contou...
Ronaldo: Uma vez eu fui na sua casa esperar o Aristeu acabar de jantar, o Aristeu comeu um prato de arroz e feijão puro, eu fiquei horrorizado, cheguei em casa e falei pro meu pai. (Ronaldo se emociona). Pro meu pai e pra minha mãe, primeiro pra minha mãe, aí meu pai, a minha mãe falou pro meu pai, e o meu pai começou a comprar mistura, alguma coisa que, pra levar pra vocês, ela fazia uma sacolinha e eu levava pra vocês, você lembra disso?
Daise: Lembro.
Ronaldo: Então, pra ajudar. Fazia de coração né? Eu que falei pra minha mãe, ‘olha mãe precisa fazer isso daí pro Aristeu, o Aristeu e a Daise comem arroz e feijão puro’, e eu sei que foi difícil aquilo lá, difícil até de eu falar é difícil eu falar essas coisas, porque eu punha arroz e feijão no bolso do paletó e jogava pro, e jogava assim no, na lata do cachorro, pra não comer arroz e feijão, eu comia só mistura, fazia só rococó né, e eu fiquei chateado aquele dia lá, então eu fazia de coração isso aí, fazia e faria, faço e faria novamente se fosse o caso, então... E voltando ao Aristeu, o Aristeu pegou o violão da minha mãe, a minha mãe pegou o violão do meu pai, e levou, deu pro Aristeu tocar, pra ele tocar. (Risos). O Aristeu sumiu com o violão de casa, ele foi lá e aprendeu sozinho, ele aprendeu a tocar tudo sozinho, eu fiz um... Chegou um dia ele foi em casa mostrar pra minha mãe, pra tia né, ‘olha como eu tô tocando tia’, meu pai chegou, meu pai chegou, olhou pro violão que tava na mão dele, olhou pra minha mãe, ninguém entendeu nada, a gente só sabia que o meu pai ia dar bronca né, o violão dele não podia por a mão. (Risos). Aí ele falou ‘olha tio, tô aprendendo a tocar, a tia me emprestou o violão seu’, purururu, começou a tocar violão, meu pai ficou escutando ele tocar, tocar e tocar, o Aristeu foi dar o violão pro meu pai, meu pai, ‘não, pode ficar pra você’. (Ronaldo se emociona). Bonito pra chuchu isso aí.
(Breve silêncio).
Ronaldo: O que mais você quer perguntar pra mim?
Mariana: É isso mesmo, não, é isso mesmo.
Ronaldo: Dali vocês começaram a ficar tudo bem, cada um foi seguindo o seu caminho, o Aristeu seguiu o caminho dele.
Daise: E estamos aqui recordando.
Ronaldo: Recordando. (Ronaldo se emociona). Meio alegre e no triste. (Risos). Alegre, alegre porque nós estamos juntos, mas tristes de lembrar coisas, que não é bom, não é triste, é meio emocionado né? Emocionado eu fico, mas triste eu não fico não, porque eu ajudei, eu, meu pai, minha mãe ajudamos quem precisava, eu tenho orgulho disso aí, e eu hoje eu continuo fazendo essa ajuda, no meu bairro uma mulher precisa de, um amigo tá desempregado, eu vou lá e compro uma lata de azeite, uma lata de óleo, uma, sabe? Sempre ajudando, sempre ajudando alguém, sempre ajudando alguém, e isso eu nunca perdi na minha vida, é questão de solidariedade com os outros né? Então...
Daise: Valeu né?
Ronaldo: É.
Daise: Valeu a pena, pra nós valeu a pena, a gente reconhece.
Ronaldo: Valeu mesmo. (Ronaldo emocionado manda um beijo a distancia para Daise).
Mariana: Valeu!
Ronaldo: Valeu.
Daise: É isso. Nossa! Quantos anos depois né? (Risos). (Daise se levanta, abraça e beija o primo Ronaldo).
Ronaldo: Ainda bem que o teu marido não tá aqui. (Risos).
Daise: (Risos).
Ronaldo: Ia ficar enciumado. (Risos).
Daise: Maravilha.
Mariana: Se quiser...
Daise: Ah é, vamos olhar aqui...
Mariana: Tá bem perto.
Daise: (Risos). Tá muito perto? Vê se o Aristeu vem.
Ronaldo: Aristeu!
Daise: É, vamos nós três daqui a pouco.
(Ronaldo e Daise posam para fotos).
(Aristeu se junta a dupla e posa para fotos).
Ronaldo: Saiu a foto?
Mariana: Valeu!
Ronaldo: Ficou bonita?
Mariana: Ficou bonita.
Ronaldo: Então tá bom!
(Fim da entrevista).

Genésio Arruda Junior


GENESIO ARRUDA JUNIOR
DIA 16 / SONY 100

Mariana: Licença. Vamos lá. Sonora Genésio Arruda Junior, take um. (Claquete).

(Breve silêncio).

Mariana: Pronto.

Daise: Genésio Arruda, você é o filho primogênito do Genésio Arruda.

Genésio: Sou, sou, o primeiro que nasceu. (Risos).

Daise: Então diz pra mim qual a lembrança mais marcante que você tem do seu pai?

Genésio: Ah são várias né, por exemplo, meu pai, eu sou fã dele desde que eu era criança né? Aprendi a gostar dele porque o meu pai nunca brigava com a gente, e nem batia, ele fingia que batia, minha mãe era mais brava, mas meu pai não, então a lembrança só pode ser boa do meu pai né? (Risos).

Daise: Conta uma.

Genésio: Ah, quando a gente aprontava umas artes, eu e meu irmão, a gente corria na sala de jantar, tinha a sala de jantar, na [Rua] Conselheiro Furtado, ali na Aclimação, ele tirava a cinta, gritava, batia na mesa, mas ficava escondido embaixo da mesa e gritando que tivesse apanhando. (Risos). Então é uma das lembranças que a gente tem dele assim, e tudo né, por exemplo, responsabilidade, horário, entendeu? Até quinze minutos não é atraso, passou de quinze já é atraso, dos compromissos de shows pra trabalhar né, eu aprendi a subir no palco através dele, eu fazia dublagem do Elvis [Aaron] Presley, e o meu irmão do Chubby Checker [Ernest Evans], a gente fazia shows nos cinemas Peduti [Empresa Teatral Peduti], e depois do filme levava o espetáculo pelo interior, então ele se vestia de Elvis Presley, na época era uma vitrola de setenta e oito rotações, e ligado no aparelho, a gente fazia dublagem, depois entrava os, as variedades com o meu pai, com a minha mãe, com o Sanfoneiro, e com a bandinha né? Mas eu comecei com oito anos de idade, sete pra oito anos.

Daise: E da sua mãe? Como é que são... Quais lembranças mais marcantes, e quais histórias que você gostava que ela contasse?

Genésio: Ah, a minha mãe era uma pessoa assim, uma pessoa boa né, coração mole, mas muito enérgica, muito brava, porque o sangue puxa né, puxou o sangue né, da família aí né, então ela era uma pessoa boa, mas muito enérgica. Eu gostava de ver ela cantando, gostava de ver ela atuando no palco né? E cozinhava muito bem por sinal. (Risos). Tanto é que eu pesava noventa e cinco quilos na época, cem quilos. (Risos).

Daise: Tem alguma das histórias que ela contava pra você que você lembra?

Genésio: Sobre o que?

Daise: Dos tempos, por exemplo, do circo?

Genésio: Ah, por exemplo, ela...

Daise: Da infância dela?

Genésio: É eu vou até assim, do circo ela, ela nasceu do Circo dos Liendos, meu avô Pedro Liendo, e a minha avó Cotinha, certo? E ela foi criada desde os, com sete anos de idade ela já fazia acrobacia, dantes, e número em cima de cavalo com uma lontra amarrada, que fazia o número perto do cavalo correndo né? O meu avô que era o Pedro Liendo... O circo chamava Circo Irmãos Liendo, Pavilhão Irmãos Liendo né? Ele fazia número de salto também, de trapézio né? Então o que ela contava muito era sobre isso, que trabalhou muito. Depois... Eu posso prosseguir né? Eu vou prosseguindo por que... Aí depois desse tempo todo, ainda criança ela conheceu meu pai, naquela época, ela não ia com a cara do meu pai, não sei por que, ela não ia, mas meu pai já achava ela simpática, bonitinha e tal, os meus avós eram vivos ainda certo? Aí depois conheceu, meu pai tinha muita amizade com o meu avô Pedro Liendo né, então meu pai fazia alguns espetáculos de humor no circo deles, e eles iam, e tinha a Companhia de teatro, a Companhia Genésio Arruda, quando o meu pai estava nas praças com a Companhia de teatro né? Tanto é que o meu avô chegou a trabalhar com o meu pai na portaria do teatro, e ele não deixou entrar nenhum Delegado de Polícia porque ele falou, ‘aqui olha, tem que tirar ingresso’, foi aí que o meu pai falou, ‘não, ele é bom, ele segurou um Delegado na porta, ele é bom!’ É honesto né, então era um homem de confiança que o meu pai tinha, e muita amizade todos, mais pra frente a minha avó veio a faleceu, pneumonia né, ela teve e faleceu, e ficou o meu avô, meu avô entristeceu, e em seguida ele teve quase que uma pneumonia também praticamente, porque na época era uma doença muito comum creio eu, e veio a falecer, aí a minha mãe foi criada com o João Alves, com a família do João Alves né? Onde ela conheceu o João Alves, conheceu a... De nome assim eu tenho assim, vocês podem me ajudar né?

Daise: Maria Eliza.

Genésio: Isso, conheceu, conheceu a Eliza, a tia Eliza, conheceu a...

Daise: A Efigênia.

Genésio: A Efigênia né, que eu conheci também, ambas né? E então ela foi criada lá. Quando a minha mãe tava com dezessete anos, aí o meu pai pediu ela em casamento, pra casar, então só saiu, ela só saiu de lá pra casar, aí no dia primeiro de setembro, quando estourou a [Segunda] Guerra [Mundial] em trinta e nove, foi quando ela se casou em Mogi das Cruzes, primeiro de setembro de mil novecentos e trinta e nove.

Mariana: E tem a foto aqui.

Genésio: É.

Daise: E tem a foto ali.

Genésio: Foi aí então nessa época então o meu pai já tava com Companhia de revista, na época trabalhava o pai do Daniel Filho [João Carlos Daniel], o João Daniel [Joan Daniel Ferrer], a esposa [María Irma López] dele fazia um número de bailado espanhol, a Lolita Rodrigues [Sílvia Gonçalves Rodrigues Leite] trabalhava com eles também, que cantava, e a mãe [Izolina Rodrigues] dela também que era espanhola né? Fazia número, tinha também, deixa eu ver se eu me lembro aqui, é, um casal de dançarinos que fazia, tinha ali também um casal de dançarinos que fazia show de danças também né, eu creio, pelas fotos que eu tenho lá que a minha tia Efigênia, e Eliza dançaram na Companhia, chegaram a fazer shows na área de variedades. Porque antigamente o teatro era assim, tinha a peça, a comédia, tinha os cenários que eram chamados de, de, eu vou me lembrar daqui a pouquinho, que é o cenário, mas tinha um outro nome que eles davam, gabinete, os gabinetes, era tudo enrolado né, e depois disso tinha a variedade, aí na variedade a minha mãe cantava e sapateava, e fazia nas peças, nas comédias, ela fazia, fazia como Atriz, as vezes até como caricata né? Ela fazia muitas vezes, porque naquela época, antes disso, o meu pai era casado com uma colega de teatro, antes, quando ela faleceu, ela não era casada, lógico, com o meu pai, ela não teve filhos, dona Açucena, era Atriz de teatro, então depois que ela faleceu, o meu pai ficou sozinho e tal, aí veio, ele já tinha uma simpatia pela minha mãe, e foi lá e foi pedir ela em casamento, aí o João Alves, o avô dela, o avô dela né? Isso. Ele falou, ‘não, se é pra casar com você, com o senhor, tá casada, pode ir’, então tirou dali, ela saiu de lá pra igreja, aí começou a trabalhar na Companhia de teatro, aí participava das peças e depois nas variedades, e fazia esquetes também, fazia escada pro meu pai no humor né? Porque o estilo do meu pai era um caipira do interior, mas o caipira esperto, porque existiam dois caipiras na época, eu vou retornar aqui aquela pergunta, Sebastião Arruda e Genésio Arruda, o [Amancio] Mazzaropi, ele pegou o estilo dos dois, como que ele pegou o estilo dos dois? O jeito calmo de falar do Sebastião Arruda, porque o Sebastião Arruda contava causos, com um cigarrinho de palha, enrolando, contava causos, e o Genésio Arruda, era aquele caipira malandro, da cidade, era um caipira, só que usava uma caricatura, era um caricato né, ele usava aqueles dentes falhados, a sobrancelha, o cabelinho aqui, e o lenço, então o Mazzaropi quando assistiu o filme deles, o que ele fez? Ele criou o caipira do Genésio Arruda em cima do Sebastiao Arruda, isso eu tenho em livros lá em casa, entendeu? Então ele criou o estilo dos dois, e aí começou a trabalhar, só que antes disso, da Companhia, minha mãe, acho que não tinha casado com a minha mãe ainda não, com certeza porque o meu pai tava com dezenove anos, ele fez o primeiro filme falado em português com o Tom Bill, Acabaram-se os Otários, depois ele fez o Campeão de Futebol, que participou na época um Jogador chamado Tuffy [Neugen], que era famoso na época, e depois O Babão. Fez três filmes sonoros, era o primeiro ator a fazer um filme falado no Brasil, o primeiro ator a fazer um filme falado no Brasil. Depois ele continuo na Companhia de teatro, voltou pro teatro, mais tarde, nos anos sessenta, ele foi, o Mazzaropi chamou ele pra fazer três filmes, ele fez o Pedro Jeca Tatu, [As Aventuras de] Pedro Malasartes, e Tristeza do Jeca, é o último, que ele ganhou o Troféu Saci, que era o Oscar da época do Estado de São Paulo, e o diploma como melhor ator coadjuvante do filme né? Ele era o coadjuvante porque o ator principal era Mazzaropi né?

Daise: Você diria que o seu pai, o João Alves, e o Benjamin de Oliveira se frequentavam, eram amigos, conversavam, tinham, vamos dizer, uma relação de circo, de teatro assim?

Genésio: Ah tinham, tinham porque eram homens, pessoas... O Artista naquela época, quando eram artistas de, fora do palco eram pessoas diferentes do palco, eram pessoas sérias, então se atraem né? As amizades se atraem porque a pessoa é correta, você é correto né, o oposto de hoje muitas vezes, mas naquela época era assim. E meu pai, ele sempre foi um cara, uma pessoa que respeitava os outros, ele era muito respeitado né, ele sabia lidar com as pessoas né, ele, antes de começar como, antes de começar como ator, ele era Telegrafista da [Companhia] Paulista [de Estradas de Ferro], ele trabalhava como Telegrafista, que a única pessoa diferente da família era ele, todo mundo trabalhava, entendeu? Então ele era artista, então ele queria ser artista, aí começou em São Carlos, já tive inclusive, há uns dois anos atrás lá em São Carlos, fazendo apresentação em homenagem a ele também. Então o João Alves, Liendo...

Daise: Benjamin...

Genésio: Benjamin, essas pessoas fazem parte da história da minha família né? São pessoas que pertencem à história, é a raiz, é a procedência nossa né, é a raiz. A única coisa, que muitas coisas, os nomes me falham um pouquinho porque faz muito tempo, faz tempo né, eu precisaria olhar conferir, mas tudo isso tá...

Salim: Assim, o que que a sua mãe falava da época do circo né, fazia o numero em um cavalo né, em cima do cavalo e tal...

Genésio: Isso.

Salim: E daí quando ela foi cercada pela dona Brígida e pelo o seu João Alves...

Genésio: Isso.

Salim: Quando ela foi pro Circo Guarani, o que que você tem, que ela contava? Do Circo Guarani?

Genésio: Não, o Circo Guarani que, que ela fazia o mesmo tipo de apresentações pelo o que eu sei né, que ela falava né, como de circo né, porque a minha mãe era circense, família circense, então ela fazia o mesmo tipo de apresentação lá né, só que no decorrer desse tempo todo, aí meu pai já a pediu em casamento né, que foi quando... Que se o meu pai conhecia, por exemplo, o avô, o meu avô Pedro Liendo, a Cotinha conheceu todo mundo, pra, dali pro João Alves, pra ele era pouco espaço de tempo né, era uma questão só de, de dar certo né, e deu certo até que o meu pai faleceu, e minha mãe não quis casar com mais ninguém, a minha mãe tava com quarenta e poucos anos quando o meu pai faleceu, porque o meu pai tinha na época quarenta e dois anos, e minha mãe tinha dezessete.

Salim: Quando eles casaram?

Genésio: Quando eles casaram né? Então ele já era viúvo né, também na época, então ela tem boas lembranças né, que ela gostava e tudo, mas ela levou pro teatro, o teatro naquela época era Fred Astaire [Frederick Austerlitz], os filmes americanos, e Ginger Rogers [Virginia Katherine McMath] né? Que fazia par com ele, então a minha mãe assistia os filmes quinhentas mil vezes, ia e voltava, ficava no cinema, decorando os passos, de sapateado, aí meu pai viu que ela queria sapatear mesmo, aí convidou o Professor Dorsey que ela um inglês Sapateador, aí contratou ele pro teatro, pra ensinar sapateado pra ela, então ela aprendeu, como ela tinha salto do circo, ela dançava e dava flip-flap, e cantando, acabava cantando sem perder a respiração, porque isso ela aprendeu no circo, a controlar a respiração, então ela cantava e sapateava, tem muita gente que falando na rua não consegue, já dá falta de ar, eu sou um deles. (Risos). E ela cantava e sapateava e não perdia o folego, então ela aprendeu diafragma, adquirir né, a segurar melhor né?

Daise: E o que que ela falava Genésio, sobre a minha mãe como Palhaço?

Genésio: Ah, gostava né? Ela gostava.

Daise: Você viu a minha mãe?

Genésio: Cheguei a ver quando era garoto né, mas ela gostava.

Daise: Que lembrança você tem disso? Fala um pouquinho...

Genésio: Ah, da sua mãe eu tenho a lembrança que ela ia visitar, ia muito lá em casa, visitava muito a gente, fazia os shows com, eu creio que fazia até com o meu pai, porque ela fazia uns shows de, meu pai fazia shows infantis, ela ia junto né, só que naquela época, eu como criança, eu não tinha muita noção de entrada cômica, de esquete, tony, a palavra tony, que se usava muito antigamente, não era Palhaço era tony né, então ela fazia tony né, a palavra na época certo né, então são boas lembranças, a gente sente falta né? E como nos havia perguntado antes, ela era a única Palhaça na época realmente era ela.

Daise: Isso você...

Genésio: Isso eu tenho certeza porque eu tô nesse meio artístico desde que eu nasci, fui criado, musicalmente também, trabalhei muito com a Companhia em show de circo né, alias a minha banda começou no show de, fazendo, acompanhando artista de, a única banda jovem na época a acompanhar artista de circo. Eu peguei aquelas musicas todas, mudei e colocava as músicas da época em cima do circo, os rock and roll´s, as, os temas todos e agradou, agradou e eu comecei a viajar, então da sua mãe, a gente tem boas lembranças né, dela né, e como Palhaço também, mas era a única que fazia isso.

Daise: Ela, você lembra como ela fazia? Porque ela se vestia e falava como homem né?

Genésio: É se você vê uma foto de Palhaço da época não parecia que era mulher né? Hoje dá pra você definir, uma mulher de um clown, pra uma mulher né, mas naquela época o clown você não, você não sabia se era homem ou mulher, quer dizer, ela se produzia autentico né? Eu acho que naquela época os Palhaços mais famosos era o Piolin [Abelardo Pinto] creio eu, era o Piolin, Chicharrão [José Carlos Queirolo] né?

Daise: E o nome dela de Palhaço você...

Genésio: Xamego né?

Daise: Xamego.

Genésio: Xamego.

Daise: Ele queria falar sobre o cavalo amarelo né?
Salim: Ah então, mas antes do cavalo amarelo, eu ia te perguntar uma coisa, aí a dona Eliza e a tia Efigênia foram participar também das caravanas né?

Genésio: Exatamente, exatamente.

Salim: Você lembra delas participando como Cantoras assim? Você sabe dessas histórias?

Genésio: É eu me lembro trabalhando né, fazia shows, a gente, meu pai fazia muita campanha politica também na época né, fazia shows, viajava, e elas, antes de eu nascer elas já trabalhavam já também, elas faziam o varieté né? Variedades né? Então elas já tinham um número de variedades com o meu pai né, já fazia. E meu pai gostava muito deles, meu pai gostava muito do João Alves também, do avô dela, se davam muito bem, apesar dele ter sido um homem muito enérgico e bravo né, mas meu pai, ele se dava bem com o meu pai. João Alves e Pedro Liendo eles tinham quase o mesmo estilo de personalidade, eram enérgicos, bravos mesmo, não tinha medo.

Salim: Agora você falou campanha política, o Genésio cruzava o Brasil inteiro né? As apresentações do Genésio eram pelo Brasil inteiro?

Genésio: Direto, direto, meu pai tinha muita amizade com Getúlio [Dornelles] Vargas, com Adhemar [Pereira] de Barros né, fazia muita campanha, meu pai tinha acesso aqui no Palácio, aqui no [bairro] Campos Elíseos [Palácio dos Campos Elíseos] direto, na época do Adhemar de Barros, isso nos anos cinquenta.

Salim: Cinquenta. Sessenta. Inclusive a dona Eliza falava muito do Rio Grande do Sul, que iam muito, agora você falou do Getúlio.

Genésio: É.

Salim: Ela falava que junto com a Caravana né, com o grupo do Genésio Arruda, ela... Levavam sempre pro sul, quer dizer, você falou do Getúlio agora né?

Genésio: Exatamente, exatamente.

Salim: Fecha né, a história né?

Genésio: Fecha a história, porque o meu pai era muito... Ah, o meu pai, ele financiou, ele mandou uma carta pro Getúlio Vargas, ele comprou uma casa na Aclimação, com a autorização do Getúlio Vargas. Acredite quem quiser, mas isso aí eu ouvi e vi né?

Salim: O que que foi? Eu não entendi.

Genésio: A casa que o meu pai comprou na Aclimação, ele mandou uma carta pro Getúlio Vargas, falou, ‘eu sou artista, eu não posso comprar uma casa’, naquela época um artista não ganhava o que ganha hoje.

Salim: Sim.

Genésio: Hoje o cara tem um padrinho, entra na televisão, já sai com um [carro] Camaro né? Naquela época não, tinha que ralar e ser bom, jogar na parede e grudar, se não grudasse não era bom. Então ele mandou uma carta pro Getúlio Vargas pedindo uma casa pra morar, e o Getúlio Vargas mandou uma carta autorizando pelo IAPC [Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários] comprar uma casa na Aclimação, financiar uma casa da Aclimação.

Salim: Inclusive também, parece que foi né, na família, foi uma comoção né, no caso da dona Eliza, quando o...

Daise: O Getúlio Vargas morreu.

Salim: Faleceu, quer dizer, existia todo um envolvimento político de levar a cultura brasileira...

Genésio: Tinha porque o Getúlio Vargas gostava de artista. Getúlio Vargas na parte, dessa parte, ele gostava, ele defendia muito os artistas, ele gostava, pelo o que eu sei, porque lógico, eu não convivi com eles, mas eu escutei ele gostava de artistas né? Ele adorava ajudar os artistas.

Salim: E frequentava muito também né?

Genésio: Frequentava muito também. O Adhemar de Barros gostava de artistas também.

Daise: Meu pai adorava o Adhemar.

Genésio: Então é por isso que...

Mariana: Eu vou bater outra claquete aqui só porque acabou o cartão dela.

Salim: Tá.

Daise: Tem a rua, ele falou pra mim hoje, tem uma Rua Genésio Arruda, em Pirituba né Genésio?

Genésio: Tem, tem uma Rua na Chácara dos Ingleses.

Daise: É. Disse que o sonho da mãe dele era...

Mariana: Licença aqui. Pode bater aqui?

Rui: Pode.

Mariana: Pode? Genésio Arruda Junior, take dois. (Claquete).

Salim: É engraçado né, porque o Benjamin de Oliveira, com o Floriano Peixoto né? Governador, tsc, Presidente do Brasil que foi o cara, o principal incentivador do inicio da carreira do Benjamin de Oliveira, e agora você tá falando né, Genésio Arruda e tá falando do Getúlio Vargas né?

Genésio: Exatamente.

Salim: E também né, a gente acha que o seu João Alves também era um cara influente assim, politicamente, tinha influencia?

Genésio: Tinha influencia.

Salim: Porque o circo era o que é hoje a TV né?

Genésio: É exatamente.

Salim: Os grandes né, os grandes artistas né?

Genésio: É os melhores comediantes de circo, hoje na TV eram de circo.

Salim: Sim.

Genésio: Tá aí Dedé Santana [Manfried Sant'Anna], [Antonio] Renato Aragão né? Walter Stuart [Walter Canales Nascimento] né? Procedência de circo. O circo é hoje o que o teatro é pros atores de novela. Tanto é que tem um ator [Domingos Montagner] na [TV] Globo que é de circo, que tá fazendo a novela aí, Sete Vidas aí, ele é de circo, ele é Trapezista. Palhaço, ele fazia Palhaço também, fazia clown.

Daise: É o Marcos [Magano] Frota?

Salim: Não, tem outro agora.

Genésio: Não, outro, o que faz a Sete Vidas.

Salim: A nova novela né?

Genésio: É Sete Vidas, aquele que tá cheio de esposa, que faz o papel dele de, é da novela das sete, eu esqueci o nome dele.

Daise: Da família Liendo, tem o Simplício não é que a dona Fausta falou?

Genésio: É o Simplício [Francisco Flaviano de Almeida] era casado com a Nair [Liendo], tia Nair né? Que é xará da sua irmã.

Daise: Não, é Maria Eliza. E é mãe da dona Fausta né, que ela me falou.

Genésio: Isso. Perdão, perdão, Eliza.

Daise: E a minha mãe é Maria Eliza...

Genésio: É tia Eliza que é tia da minha mãe.

Daise: Que é xará da Maria Eliza que é casada, que era irmã da dona Fausta.

Genésio: Isso. É eles tinham tudo quase a mesma idade na época né?

Daise: É ela me deu todo um desenhinho aqui...

Genésio: É.

Daise: Depois eu checo com você o que ela me deu né?

Salim: Uma outra coisa também, tinha uma característica né, que a dona Eliza diz que passeou também em um carro amarelo, o cavalo amarelo.

Genésio: É o cavalo, é o...

Salim: Como que é essa história do carro amarelo?

Genésio: O cavalo amarelo nos anos quarenta né, por aí, é porque, no começo dos anos quarenta, meu pai sempre gostou de carro, e teve vários carros né, então ele tinha um, ele viu um carro americano num filme, amarelo, de um piloto americano famoso, e meu pai sempre adorou amarelo, amarelo é a cor predileta do meu pai, então ele falou, ‘ah vou comprar um carro, e vou pintar de amarelo’, aí ele comprou, naquela época em São Paulo, nossa, um carro amarelo era um, chamava atenção demais e tal, todo mundo tinha carro preto, ou bordô, azul, aí ele fez o carro amarelo e colocou atrás a caricatura de caipira dele no carro. Isso foi na época da Guerra inclusive, é, foi durante a Guerra ainda, que eles usavam até gasogênio no carro, porque não tinha gasolina, tinha que ter atrás, então ele, ele fez de amarelo, um Jornalista da Folha, não sei qual o jornal de São Paulo famoso, achou interessante, aí ele criou uma caricatura, Genésio Arruda em cima de um cavalo amarelo, aí ele colocou no cavalo, isso aí eu tenho em imagens né, colocou no cavalo a direção, a buzina, farol, e um cavalo amarelo, e ele de caipira em cima do cavalo, então ficou Genésio Arruda e seu Famoso Cavalo Amarelo, que era o carro, a história do Cavalo Amarelo era o carro amarelo né? E até hoje, até na banda caipira eu uso esse logotipo dele, só que atrás eu acrescentei a bandinha numa caricatura, que é ele puxando a banda né?

Mariana: Falando da bandinha, só tentando entender, como é que era esse lance da bandinha do Genésio Arruda, como que era?

Genésio: No inicio, quando eu comecei a tocar com sete anos de idade, oito anos, a banda, ela foi feita pra meu pai não ficar, não ficar longe da família, então ele queria reunir a família em um mesmo trabalho, então ele colocou a minha mãe no bumbo, zabumba que se fala bumbo, cantando e fazendo esquete com ele, a outra irmã minha, a Nazaré tocando caixa, o meu irmão Geraldo também, fazendo um baixo tuba né, e eu fazia pratos, e a minha irmã Noemi ela cantava Marcelino Pão e Vinho. (Risos). Subia na cadeira né, e cantava Marcelino Pão e Vinho né, e o Sanfoneiro e dois metais, dois trombones, um trombone e um... Como fala? E um trompete. Faziam... E com essa bandinha nós viajamos o Brasil inteiro, foi quando fizemos a Companhia Peduti cinematográfica, Empresas Peduti, nós fazíamos os circuitos dos filmes. Depois do filme, entrava o show no palco. Antigamente os cinemas tinham palco...

Salim: Ah sim!

Daise: É.

Genésio: Né? Então, hoje não tem mais, mas tinha palco, então acabava o filme, a gente fazia o show nos cinemas. E aí a bandinha foi indo, fizemos o Walter Stuart na TV Tupi primeiro, começou aqui no Circo Piolin, aqui na [Avenida] São João, fazia o programa do Stuart, e a bandinha acompanhava os artistas de circo, minha mãe tocando, eu tocando né, Nazaré, minhas irmãs, e depois aí passou pro canal nove, aí fomos pra [TV] Excelsior, fazia a TV Stuart canal zero com a bandinha, era um programa humorístico, e a bandinha fazia o que a banda do Jô [José Eugênio] Soares faz hoje, aquelas vinhetas, entra um, faz uma vinheta, a gente abria o programa com a banda, com o prefixo do Stuart, do Walter Stuart, e depois fazia as vinhetas dos comerciais, entendeu? Aí, era o que fazem hoje, a gente fazia naquela época no canal nove. Depois meu pai veio a falecer, eu continuei com a bandinha mais um pouco, caipira, depois ainda fui, mais pra frente, depois eu chamei um, aí eu montei uma banda sertaneja, com metais e tudo, mais técnico, baixo tuba, cheguei a gravar, aí eu chamei o Ranchinho, o Nhô Pinta que era da dupla [Murilo] Alvarenga e Ranchinho. Era o Ranchinho dois, porque o primeiro era o  Diésis [dos Anjos Gaia], e o Homero [Homero de Souza Campos], que era o Nhô Pinta, aí eu fazia escada pra ele, eu fazia escada e tocava, ele contava as piadas e eu fazia escada, posteriormente a Nhá Barbina [Conceição Joana da Fonseca] veio também junto, aí eu fazia escada pra Nhá Barbina. São pessoas que me ensinaram muito, eu aprendi muita coisa. Alias eu prefiro fazer escada do que fazer humor, assim, como escada eu me sinto melhor, ‘ah porque você não faz piada? Você é engraçado e tal’, meu pai ainda falava assim, ‘você devia ser humorista’, eu era muito gordo, ‘ficar igual o Jô Soares’, já falavam na época né? Gordo ri a toa, todo mundo ri de gordo, mas eu não tinha jeito pra contar piada, até porque a minha dicção era péssima pra fazer piada. Era não, é. Então não podia fazer, então fazia escada, escada é mais fácil. Não, não é mais fácil, é o escada é que levanta o principal, o humorista, se o escada errar derruba o humorista, mas mesmo assim eu preferia fazer o escada né? Então aí fui indo, com a banda. Por ultimo agora, a banda, como foi perguntado da bandinha ainda, eu tenho a banda caipira Genésio Arruda, mas ela está só faz shows assim típicos assim, eventuais porque não existe espaço pra música caipira típica, hoje não tem, e era uma mistura de banda do interior, e aí eu tocava as músicas do meu pai também, Vai Santinha, Pé no Chão que o meu pai gravou.

Salim: Qual foi o grande sucesso dele?

Genésio: Qual deles? Musical?

Salim: É.

Genésio: Vai Santinha e Pé no Chão.

Salim: Como que é?

Genésio: Ai olha, eu pra cantar...

Salim: Só um pedacinho.

Genésio: Eu prefiro mandar o vídeo, porque eu pra cantar, eu sou desafinado até pra tossir. (Risos).

Salim: Canta só um pedacinho, vai lá, só pra ouvir um pedacinho, vai lá.

Genésio: (Risos).

Salim: Só um pouquinho.

Genésio: (Genésio começa a cantar). ‘Namorei uma menina que era uma lindura, mas quando ela falava caia-lhe a dentadura’.

Mariana: (Risos).

Genésio: ‘Vai Santinha, vai’, quando o meu pai falava, ‘vai Santinha’, ele falava que era pra minha mãe, entendeu? Pra mexer com a minha mãe, ‘vai Santinha, se pensas que eu chorava, tu me fizeste um favor’. O Pé no Chão é, ‘a mulher é um busca-pé, que corre como serpente, quanto mais a gente foge dela, mais ela corre atrás da gente’.

(Risos).

Genésio: Então quer dizer, o Mazzaropi pegou... Se você pegar, olha, se você pegar, eu tenho uma música dele cantando, e vê o Mazzaropi cantando, é igual, o estilo, a dicção do caipira, o timbre, é igualzinho do, o Mazzaropi cantava igualzinho a ele. Então foi uma mistura, e essas músicas eu fazia, então contratava um Ator, um Humorista, eu vestia ele de Genésio Arruda, punha o personagem, o personagem nele, ele trabalhava como Genésio Arruda e eu como Genésio Arruda Junior, aí ele fazia as piadas, eu fazia o esquete, a escada pra ele, e música, música, que nem meu, o esquema que o meu pai fazia né?

Daise: Você sabia que o meu pai era o escada da minha mãe? Que a dupla era minha mãe e o meu pai?

Genésio: Isso, a minha mãe falava isso.

Daise: Xamego e Reis. Você sabia disso?

Genésio: Sabia.

Daise: A sua mãe comentou com você?

Genésio: Isso eles comentavam, que ele fazia escada pra ela né?

Daise: É, que o meu pai era o escada da minha mãe.

Genésio: É. Apesar de que a pessoa, pra quem tiver ouvindo escada, a pessoa pensa que escada é subir na escada.

Daise: É. Não. (Risos).

Genésio: Não. O escada é aquele que apara o, é o que faz, é o, aquele o sério, e o alegre, então é aquele que corrige o alegre, mas só leva fora, geralmente o sério só leva fora. Esse é o escada, por isso que chama escada, porque ele apara o comediante né? E um bom escada levanta o comediante.

Mariana: Só tentando entender dentro dessa coisa da bandinha, de que maneira, por exemplo, a participação da minha avó, e da minha tia como Irmãs Alves acontecia dentro da bandinha?

Genésio: Ah, nas caravanas dos shows. Nas caravanas né? Porque , o meu pai não viajava só com a bandinha, ele tinha que, levava a caravana, levava vários artistas entendeu? Na época tinha Cardoni e Romanita que fazia os, que eram os Sapateadores, esse Cardoni e Romanita que era, que eu falei, que era casal de Sapateadores que eu me lembrei agora, entendeu? Tinha o, o próprio Simplício já trabalhou, já trabalhou no Pavilhão do Simplício, porque tinha o Pavilhão do Simplício né? E que mais? Ele fazia, eram vários artistas né? Porque não era só a família né? A família era assim, quando o show não dava só queria aquilo, mas quando o show era maior, por exemplo, realmente campanha política ia mais gente, ia mais gente fazer show em praça pública né?

Mariana: E aí era em praça, era em teatro? Onde era?

Genésio: É em praça pública e teatro. Na época, na minha época era mais em praça pública, o teatro é antes de mim, é antes de eu nascer, o teatro é quando lá pra trás que eles faziam né? Mas depois o teatro acabou praticamente pra isso né, os teatros viraram cinemas, a maioria deles, o Cine Olido, opa... Era teatro né? Olha uma vídeo cassetada aí. (Risos).

(Risos).

Mariana: Acho que saiu dali?

Rui: Ah é?

Mariana: Tá entrando um reflexo ali.

Genésio: É.

Daise: Interessante essa do teatro né?

Salim: É porque antes tinha bastante teatro, aí depois veio o circo, aí você popularizou né, o negócio era fazer o teatro dentro do circo, aí depois você voltou pro teatro, aí depois virou cinema né?

Genésio: É exatamente.

Salim: É um movimento assim...

Genésio: é um movimento né? O circo, ele veio o circo, veio o teatro, veio o Pavilhão, no Pavilhão veio o teatro.

Daise: Isso. Arethuzza né?

Genésio: Exatamente, o Arethuzza né?

Daise: O Arethuzza era contemporâneo da minha mãe.

Genésio: Até que o do Simplício era Circo Pavilhão.

Daise: Isso.

Salim: Era.

Genésio: Né? Então era um Pavilhão, mas só que era teatro...

Daise: Os Militello também.

Salim: É, Militello.

Daise: Militello também era Pavilhão.

Genésio: Militello também é exatamente.

Daise: Me diz uma coisa, isso eu não posso esquecer, que eu queria te perguntar, ai, e acabou fugindo...

Salim: Como é que ele... Esses filmes que você falou, esses três filmes que o seu pai fez, teve o do futebol, esse primeiro filme falado, e o otário, como é que era?

Genésio: Acabaram-se os Otários.

Salim: Acabaram-se os Otários. Existe registro ainda ou não?

Genésio: Olha, existe, no blog do meu pai tem uma cena com o Tom Bill.

Salim: Ah não, do primeiro?

Genésio: Do primeiro.

Salim: Tá.

Genésio: Os outros, pra ser sincero eu tô até hoje atrás deles, eu já fui na Cinemateca, já fui e ainda não...

Salim: Tem registros lá na Cinemateca? Você sabe?

Genésio: É, eu não tô conseguindo achar, eu tô atrás deles ate hoje, não é de hoje. O que eu tenho do meu pai, um filme que tá, que você acha fácil é O Dia É Nosso. Tá ele, Oscarito [Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Teresa Diaz], foi gravado na, foi feita na, na Atlântica eu acho, Atlântica não, aqui em São Paulo, qual o nome? Vera Cruz.

Salim: Vera Cruz.

Genésio: O Dia É Nosso, então tá ele, o Oscarito, tá aquele que fazia o Bem Amado, qual o nome dele? O...

Daise: Paulo Gracindo [Pelópidas Guimarães Brandão Gracindo].

Genésio: O Paulo Gracindo, tá no filme. Naquela época Oscarito ainda era coadjuvante ainda né? E tá o Oscarito também. Você pode achar ele na internet. Eu tenho esse filme, tá completo, inclusive eu tenho ele completo.

Salim: Ahã.

Daise: Eu queria te fazer só uma pergunta, mas é uma coisa assim pra, só pra gente saber. A Arethuzza vocês conheceram?

Genésio: Conheci.

Daise: Ela fazia Palhaço?

Genésio: Não me lembro. Eu não me lembro porque já era, é antes ainda né?

Daise: Eu sei, mas porque a gente já viu uma tese sobre ela...

Genésio: Eu conheço assim de matéria dela de coisa porque, de nome porque os colegas... Entendeu? O pessoal de circo comenta né?

Daise: E ela trouxe, ela ficou famosa por levar o teatro pro circo.

Genésio: É pro circo.

Daise: E era o Pavilhão Arethuzza, não era?

Genésio: Exatamente.

Daise: Peças famosas.

Genésio: É porque, porque que eu ouvi isso? Porque o teatro era elitizado, só ia o pessoal da elite assim, e o circo era popular né? Hoje o circo é até mais caro que o teatro, se você vai pegar algum, um [Circo] Tihany aí, pegar um Orlando Orfei né, um circo grande o ingresso é mais caro que um, do que um teatro né? Então é... Mas naquela época o teatro era mais assim, o pessoal de terno e gravata, aquela coisa toda né? E assim ele viajava o Brasil inteiro né, com a Companhia de teatro.

Mariana: Tem uma coisa assim também né, tipo, quando a gente, né, eu estudei cinema, tenho muita gente, muitos amigos do teatro, e todo mundo fala no nome do seu pai né?

Genésio: É.

Mariana: E toda a história do teatro brasileiro, e até do cinema brasileiro passa pela trajetória do seu pai né?

Genésio: É.

Mariana: Então, eu queria saber um pouco assim né, o que ele representa, o que que a gente pode dizer dele como artista assim né? O que ele representou como artista pro Brasil?

Genésio: Ah ele, a época dele pra fazer nome naquela época não tinha televisão, então era, tinha, era o teatro mesmo, tinha que, viajou o Brasil, fazer a Companhia, roupas, começava pela aparência do teatro, aparência das roupas, uma... Vocês vão ver em fotos depois o guarda-roupa era muito bem feito, as peças, elas tinham que ser bem engraçadas, a peça que mais agradava era O[s] Fugitivo[s] do Cemitério do Araçá.

Salim: (Risos).

Genésio: Essa era uma das peças que mais agradava né? Na época eu era garoto eu ficava até com medo, O Fugitivo do Cemitério do Araçá né? O Matoso né, eu cheguei a assistir essas peças inclusive né? Na época a minha mãe trabalhava também na peça né? Ela fazia também participação na peça, então ele ajudou muita gente, como eu te falei, olha, trabalhou o João Daniel, o pai do Daniel Filho, o Grande Otelo [Sebastião Bernardes de Souza Prata] trabalhou na Companhia dele, entendeu? Quando a minha avó, a minha mãe, nós nascemos, o meu pai tava no teatro Paris [Cine Theatro Paris], com essa peça, O Fugitivo do Cemitério do Araçá, quem fez foi o Grande Otelo, que ficou no lugar dele, enquanto ele tava aqui em São Paulo, entendeu? Então meu pai, ele ajudou muita gente, ele gostava de ajudar, naquela época, hoje é difícil achar um colega que ajude, mas naquela época, ele ajudava, ele se dava bem com todo mundo. Nunca queria nada em troca, queria amizade, ajudar. Meu pai falava, ‘qual é a sua religião? A minha religião é amor’, era o que ele falava né, ‘a minha religião... ’, ele era católico, esoterista, eram círculos esotéricos, comunhão de pensamento; e ele falava, ‘a minha religião é amor, essa é a minha religião’, entendeu? Então ele ajudava né, as pessoas né, ele sempre teve... Por isso que o pessoal fala dele, porque não tinha naquela época né, o pessoal né, era complicado, agradar, e o público não era de rir que nem hoje, pra você tirar risada daquela época era complicado, eles falavam né, hoje não, quando você vê na televisão, o cara conta uma piada, entra a risada eletrônica e todo mundo ri junto né? (Risos). Naquela época fazer piada né, era complicado né, vai ver é por isso né, eu aprendi com ele, o pessoal aprendeu muito com ele né, o Mazzaropi mesmo né, aprendeu com ele né? E outros né? Simplício, tanto é que ele tinha amizade com toda essa gente, fazia parte dele né, Simplício, Nhô Totico [Vital Fernandes da Silva], Nhô Juca [José Rodrigues da Silva] que ele tinha lá na época, tinha um Escritor aí, um Escritor que tinha um programa de rádio, eu vou me lembrar o nome dele agora, é que ele era conhecido na época...

Salim: Não tinha o Capitão, como é que era?

Genésio: Capitão Furtado [Ariovaldo Pires], Capitão Furtado isso, Capitão Furtado.

Salim: Tinha aquele outro também do, qual o nome? Balbino?

Genésio: Capitão Barduíno [Pedro Anestori Marigliani].

Salim: Capitão Barduíno.

Genésio: Capitão Barduíno.

Salim: Nhá Barbina.

Genésio: Nhá Barbina.

Salim: Antes da Nhá Barbina tinha uma outra também, que era uma...

Genésio: Chica Pelanca.

Salim: Chica Pelanca.

Daise: (Risos). Chica Pelanca.

Genésio: (Risos).

Salim: Não é?

Genésio: É exatamente. A Chica, a Chica Pelanca, eu era bem garoto quando eu conheci ela, agora a Nhá Barbina eu consegui contracenar com ela antes dela ir embora né, na banda caipira. São pessoas que a gente aprende. Naquela época né, o caipira era engraçado, hoje acabaram os caipiras, não tem mais. O último que faleceu foi o, foi o, que trabalhava na Praça É Nossa, que foi embora, o, o, Arlindo Simplício né, que fazia caipira também. O caipira que é muito, é, Nhô, Nhô não sei o que...

Daise: Não sei.

Genésio: Não é Nhô Totico. Nhô Totico era um amigo dele que ele tinha na época né, que fazia a Praça É Nossa, um caipira, já foi embora já também, então não tem mais caipira, é a dificuldade que eu tenho hoje com a banda caipira, porque a gente não tem... O jovem de hoje não tem conhecimento, tem vergonha né, das origens. O máximo que eles estão aceitando é o viola, é aquele som caipira, mas eles tem vergonha. A Inezita Barroso [Ignez Magdalena Aranha de Lima], eu cheguei a fazer com a banda caipira, fiz o [Programa de TV] Viola, Minha Viola várias vezes, na época do Ranchinho né? Fui também, eu fiz várias vezes né? Então é, infelizmente acabou, então eu fui obrigado musicalmente a partir pro lado da música country, country por causa disso. Porque não tinha outro jeito, a minha... Eu gostava, sempre gostei mais de música, de produção de música do que de palco, de trabalhar no palco, no palco assim como ator.

Salim: Sim, sim.

Genésio: Então eu sou eu tô na música desde sessenta e seis né, sessenta e seis mais ou menos, desde a época dos [The] Beatles, então eu, a minha parte é mais produção música mesmo.

Daise: Ainda hoje né?

Genésio: Ainda hoje é o que me mantem. Eu adoro a banda caipira, adoro fazer escada como eu te falei, mas o espaço é funk e universitário então é complicado.

Daise: Então eu vou só fazer uma pergunta, uma ultiminha só porque, pra matar a saudade... É, porque a minha mãe e a minha tia adoravam a sua mãe, adoravam.

Genésio: Claro, a minha mãe gostava muito delas.

Daise: E a minha mãe morreu com noventa e oito anos, e a minha tia com oitenta e um né, então a gente costuma dizer que a Mariana teve três avós...

Genésio: Da licença só um pouquinho, só interromper. Nhô Moraes [Emílio Fingoli].

Salim: Nhô Moraes.

Genésio: Desculpa interromper.

Salim: Não, não, tudo bem.

Mariana: Sebastião Arruda era irmão...?

Genésio: Não, aí que tá, meu pai dizia que era Arruda de outro canteiro.

Daise: (Risos).

Genésio: Entendeu? Porque todo mundo pensava que ele era irmão, e o meu pai até comentava, ‘vocês são irmãos?’, e não eram. Eram amigos, colegas, mas meu pai dizia que era Arruda de outro canteiro. Ele não, não é... Tem gente que confunde até hoje que eles são irmãos. Desculpe interromper a sua pergunta, é que Nhô Moraes eu tenho que me lembrar.

Salim: Claro.

Daise: O que eu quero dizer é isso né, da saudade, que a Mariana então teve três avós, a mãe do meu marido, a minha mãe, e a minha tia Efigênia.

Genésio: Ahã.

Daise: E a Mariana... Praticamente era a outra avó da minha filha né? E elas adoravam a sua a mãe. O que a sua mãe falava da tia Efigênia e da tia Eliza?

Genésio: Ah, só coisa boa, só alegria né, a amizade que elas tinham né, tanto é que a minha mãe vivia, adorava quando elas iam em casa conversar, que às vezes a minha mãe não podia sair por causa da gente e tal né? A minha mãe, é a lembrança dela né, é a raiz dela né? E eu não tenho assim, como é que eu vou dizer né, não tem nada de ruim no meio, só coisa boa, e aprendizagem né, com elas né, então... E o meu pai também, meu pai gostava delas, e agora estão se vendo onde eles estão, mas ele gostava delas. E meu pai sempre se deu bem, tanto com os Liendo como com João Alves, tanto com um como com outro, meu pai nunca teve problema né? Geralmente genro dá problema né, então nunca deu problema assim, com eles né? Então são lembranças gostosas, pena que eu peguei uma parte curta né, porque eu não pude pegar o começo de tudo né, eu peguei pra cá né, então não pude curtir melhor né, sorte de quem pode curtir né?

Daise: É verdade.

Genésio: Né?

Daise: Muito obrigada. É um prazer muito grande viu?

(Fim da entrevista).

Noemi Arruda


NOEMI ARRUDA
DIA 16 / SONY 100

Salim: Contar a história completa tá?

Noemi: Tá. Apesar de que tem muita coisa que é mais ele (Noemi aponta para Genésio, seu irmão mais velho) que sabe... (Risos).

Salim: Não, mas...

Daise: Fica fria.

Mariana: Mas aí um complementa o outro.

Noemi: Eu sou a raspa da panela, entendeu? (Risos).

(Risos).

Daise: Você é a caçula?

Noemi: A caçula.

Mariana: Vamos lá então? Sonora Noemi Arruda, take um. (Claquete).

Rui: Olha Mari, você fica aqui.

Mariana: Podemos.

Daise: Podemos? Noemi, você é a filha caçula do Genésio Arruda e da Noêmia [Liendo], conta pra nós o que a sua mãe contava sobre o tempo de circo dela?

Noemi: Sou a filha caçula, nós éramos em quatro irmãos, e mamãe contava muita coisa, que desde pequena ela aprendeu com os pais, com os avós dela, a saltar, a fazer números, vários números circenses, e que ela adorava desde pequena, tanto a minha avó, a mãe dela, como o pai dela também era do circo.

Daise: E ela falava os nomes deles? Quais eram os nomes deles que eles falavam?

Noemi: Falava. A minha avó era a Cotinha né, que é a mãe de minha mãe Noêmia, e Pedro Liendo o meu avô, que é o pai dela.

Daise: E ela foi criada por uma família de circo que era o Circo Guarani, não é verdade?

Noemi: Correto.

Daise: Fala um pouco sobre isso.

Noemi: Então, ela contava que ela foi criada pela tia dela, após os pais dela terem falecido né, tanto, primeiro faleceu a minha avó, e depois o meu avô, aí ela foi criada muito pequena por uma tia, que foi muito bem criada, você só corta essa parte, eu só queria saber o nome da tia inteiro.

Daise: Tia Brígida.

Noemi: Isso. 
                         
Daise: Brígida Alves.

Noemi: Isso, tia Brígida Alves, então ela explicou pra nós que ela foi criada por eles, e também trabalhava no circo.

Daise: E ela dizia que era no Circo Guarani?

Noemi: No Circo Guarani.

Daise: E, por exemplo, ela contava pra você como era os espetáculos no Circo Guarani?

Noemi: É pelo o que ela me contava era muito bonito, muito bem feito, só famílias que trabalhavam naquela época, era, tanto como criança pequena, como casais, era muito respeitável, e depois dali que ela conheceu meu pai e se casaram.

Daise: Como ela conheceu o seu pai?

Noemi: Então, aí é um caso que eu também não sei, foi através de trabalhar. (Risos).

Daise: Ele trabalhava em circo?

Noemi: Não, meu pai não, ele já naquela época ele já trabalhava no teatro, então essa parte talvez eu não recorde se ele foi, ele tinha, conhecia a tia, inclusive os parentes, começou a conhecê-la através do circo né, lógico. Agora não sei direito a história, mas ela casou muito cedo também, meu pai já era viúvo nessa época, quando casou com ela.

Salim: Ela fazia que número? Porque a gente sabe que ela sapateava muito bem? No Circo Guarani ela fazia sapateado? Você sabe?

Noemi: Não, no Circo Guarani ela não fazia sapateado, ela fazia tanto números de acrobacias né, chegou fazer também de cavalo, eu não sei como chama, que você vai saltando no cavalo, depois que ela conheceu o meu pai que ela começou a fazer entrada, saída de, de, esquete, aí ela começou a aprender o sapateado, aí depois do teatro que ela começou a dançar só como Sapateadora né? E chegou a ser Professora de sapateado também.

Daise: E... A minha mãe contava pra mim, que quando a minha avó faleceu, depois em seguida o meu tio que era o irmão mais velho da minha mãe né, eles... A minha mãe foi pro Rio de Janeiro, tentar uma carreira como Cantora, com a minha tia, Irmãs Alves. Primeiro com o Benjamin de Oliveira, que era também um homem de teatro, o Benjamin era amigo do seu pai?

Noemi: Era, era sim.

Daise: Eles trabalharam juntos na época? Você lembra de alguma coisa? Conta pra nós.

Noemi: Eles trabalharam juntos, foi quando o meu pai, pelo o que eu lembro né, alguma coisa, foi quando o meu pai chamou elas pra trabalhar na Companhia dele, foi quando ela veio, a tia começou a trabalhar com o meu pai e com a minha mãe.

Daise: E você lembra o que elas faziam? Porque elas cantavam né? Era uma dupla.

Noemi: Elas cantavam, eu acho que, eu acho que até em casa tem a foto delas. Era uma dupla, elas cantavam e dançavam.

Daise: Eu posso cantar um pedacinho se você confirmar pra mim... Porque a minha mãe cantava pra mim...
Noemi: Ah, ela cantava?

Daise: É eu vou chorar porque eu choro sempre viu? Que é... (Daise começa a cantar). ‘Tip, tip, tim, tip, tim...’

Noemi: É, é.

Daise: ‘Tapa, tapa, tá, tapatá...’

Noemi: Isso a minha mãe cantava, me falava muito sobre isso.

Daise: E ela cantarolava essa música também?

Noemi: Cantarolava. Inclusive comentou a parte da história da família porque são todos, somos todos família né, embora às vezes, um foi morar pra cá, outro pra lá, mas sempre a gente se encontra, então a mamãe, ela contava muito sobre o João Alves, a família, é que a gente vai crescendo vai né, se perdendo um pouco as coisas né, mas é o que eu sei.

Salim: Eu só queria que você, por favor, repetisse dentro daquilo que a gente falou né, de você retomar, assim, você falar, quando você falou do Benjamin de Oliveira, que conhecia o seu pai né, conhecia o Genésio, e que foi nessa época que a dona Eliza e a tia Efigênia né, as Irmãs Alves foram com o seu pai e a sua mãe pra excursionar junto. Eu queria que você contasse isso, mas dando os nomes, assim pra gente poder usar.

Noemi: Então, o problema é que o nome eu não lembro, os nomes deles, eu não lembro.

Salim: Ah tá, então, eu vou perguntar do Benjamim, se o seu pai trabalhou com o Benjamin.

Noemi: Trabalhou. Isso.

Salim: E aí você tava falando da dona Eliza né, que elas duas foram, que elas duas, filhas da dona Brígida. Então vamos lá. O Benjamin de Oliveira trabalhou também no teatro, eles tiveram contato, teve contato com o Genésio Arruda.

Noemi: Teve, teve contato, e através dele que contratou a minha tia Eliza né, e a minha tia...

Salim: Efigênia.

Noemi: Efigênia. Foi através dele, embora já se conhecessem há muitos anos né, mas teve oportunidade, elas passaram a trabalhar na Companhia do meu pai.

Salim: E elas trabalhavam fazendo o quê?

Noemi: Dançando e cantando, números né?

Daise: Sapateava?

Noemi: Não sei aí eu não posso te falar nada, aí eu não sei, seria só a minha mãe.

Salim: Você tem foto? Você acha que você tem uma foto?

Noemi: Tem, em casa tem foto, tomara que ela esteja direitinha né?

Daise: Mas não faz mal viu, se ela não tiver muito bem, porque a gente tem um processo que dá uma ajeitada pra poder utilizar.

Noemi: O que eu lembro das duas, inclusive as duas roupas eram iguais, delas, eram, não era um tipo assim, era tipo quase como polonesa, sabe? Eu lembro muito bem dessas fotos, uma do lado da outra dançando. Eu espero que o meu irmão ache a foto. (Risos).

Salim: Vai achar.

Mariana: Como é que era essa roupa? Só pra eu tentar entender.

Noemi: Era tipo polonesa, tipo assim, vestido, sabe polonês? Assim, tem um chapeuzinho, a saia rodada, você lembra dessa foto Geso?

Genésio: Eu não encontrei lá.

Noemi: Você não encontrou essa foto?

Genésio: Eu vou procurar de novo, até falei pra Daise.

Noemi: Porque era essa foto que mamãe mostrava, ‘olha, essa é a tia Efigênia, essa é a tia Eliza’, era através dessa foto, então por isso que eu gravei. E é o que eu sei né? Depois eu quase não...

Salim: Uma das músicas que ela cantava, que a sua mãe também cantava, que vocês né, como é que era a música, canta um pedacinho pra gente?

Noemi: Que a minha mãe cantava?

Salim: Essa do tiptiptim.

Noemi: Ah é difícil, eu não sei. (Risos).

Salim: Não, só um pedacinho.

Noemi: (Risos).

Daise: Eu canto de novo, você canta?

Noemi: Ai canta, canta.

Daise: Então tá. (Daise começa a cantar). ‘Tip, tip, tim, tip, tim, tapa, tapa, tá, tapatá, lá, lá, lá, rá, lálálárá...’ Agora você vai, é que o meu não tá gravando...

Noemi: (Noemi começa a cantar). ‘Tip, tip, tim, tip, tim, taralálá, lálá...’. Agora eu já não sei mais. (Risos).
(Risos).

Daise: Noemi, alguma vez a sua mãe te falou que a minha mãe fazia Palhaço de circo?

Noemi: Falou, falou.

Daise: O que que ela disse?

Noemi: Que ela era uma ótima artista, e que ela fazia, inclusive eu também cheguei a vê-la, eu era pequena, meu pai ia tocar, às vezes até circo, a banda, eu já cheguei a ver a minha tia, no espetáculo, e que era uma ótima artista mesmo.

Daise: E você lembra como ela se vestia? A voz que ela fazia como era? Por que...

Noemi: Não lembro.

Daise: O que você lembra mais? Algum detalhe de roupa, você chegou a ver foto? Ou viu ela se arrumando?

Noemi: Não, eu já vi, eu vi ela se apresentar, só que agora no momento eu não lembro a roupa dela, eu só lembro muito bem que nem eu te falei né, que sem, sem ela, com a roupa de Palhaço, que ela usava óculos, então lembro muito bem das feições dela, mas assim, ela caracterizada eu não lembro, mas eu era pequena né, eu acho que eu tinha uns cinco, seis anos quando o meu pai passou a fazer circo de novo né, a tocar na banda, aí varias vezes eu fui, que eu tocava junto né? (Risos).

Salim: Você tocava?

Noemi: Tocava, tocava triângulo. (Risos).

Genésio: Vai, vai foto junto pra você ver.

Noemi: (Risos).

Daise: Ai que ótimo!

Genésio: Ela tocava Marcelino Pão e Vinho.

Noemi: É, cantava, já dancei né, nos shows que o meu pai fazia, então eu lembro de muita coisa circense que meu pai ia fazer, e ela estava trabalhando também no mesmo circo. Agora não me pergunte o nome do circo que eu não sei. (Risos). Eu não lembro. (Risos).

Daise: Era Circo Guarani. E então essa parte da, assim, o grande né, assunto nosso é de Palhaço, porque é assim, mesmo assim, naquela época que a minha mãe fazia Palhaço, você lembra de algum outra, alguma outra mulher que fizesse Palhaço também?

Noemi: Não, não, naquela época não. Tsc, tsc, tsc. Não. Naquela época não.

Daise: Você diria que não existia?

Noemi: Não, não existia, era mais dupla de Palhaço, naquela época já tinha o Arrelia [Waldemar Seyssel], não tinha, acho que o Arrelia, tem um... Tinha outros né, mas de mulher que eu conheço daquela época, que inclusive a minha mãe comentava, foi só ela mesma.

Salim: E você sabia, pela roupa dela, assim, sabia que era uma mulher?

Noemi: Não, não, sabia depois porque era parente nosso né, mas ela trabalhando não parecia, era um Palhaço.

Salim: Não parecia mulher?

Noemi: Não, não, não parecia não.

Daise: E você lembra alguma coisa que até tem a coisa do chiste do Palhaço né, que é uma frase que o Palhaço repete, você lembra de alguma, do que ela, qual seria o chiste dela?

Noemi: Não.

Daise: Não né?

Noemi: Não, não.

Daise: Você lembra da música que anunciava ela?

Noemi: Também não.

Daise: Não né?

Noemi: Não, eu era muito pequena né, naquela época.

Daise: Então tá. E aí o que a gente queria também que você falasse um pouco, é a carreira do seu pai, ele foi um homem que se notabilizou pelo teatro, e também pelo cinema né?

Noemi: Também pelo cinema. O meu pai ele começou no teatro, depois já uns anos, depois que não tinha mais Companhia, eu não lembro a década porque também essa época eu também não era nascida, ele passou a fazer o cinema com o [Amacio] Mazzaropi, mas também eu tinha aquela época, acho que uns sete ou oito anos, era pequena também, aí depois é que ele fez essa, a Banda do Cavalo Amarelo, que aí ele fazia show, aí ele fazia várias casas inclusive dos artistas, ele ia lá também, fazia show lá pra arrecadar fundos né, pra hospitais do câncer, ele fazia com a bandinha, aí foi essa época que aí eu, aí ele começou a fazer também com a banda no circo, então daí eu já tava já, eu já me lembro mais, porque eu já tava com uns dez, doze anos, já pertencia né, que o meu irmão, meus dois irmãos tocavam, a minha irmã, a mais velha, a Nazaré, eu ia de caçula. (Risos). Tinha que ficar lá. (Risos). E aí que eu lembro mais, aí porque eu lembro do circo, dessa outra fase né?

Daise: E o cinema?

Noemi: Do cinema eu lembro, o que ele filmou o que ele fez porque quando ele começou a fazer o cinema, foi bem antes do Mazzaropi, porque ele fez o primeiro filme falado no Brasil, foi antes do Mazzaropi, o Mazzaropi já veio mais pra cá, acho que mil novecentos e sessenta, setenta, mas o meu pai, o primeiro cinema falado foi com o meu pai, até... E tem filmes acho que o meu irmão guardou, algum recorte de filme dele, então isso foi bem antes de eu nascer né? Aí depois é que ele veio vindo, então minha época mesmo, eu peguei quando ele estava fazendo com o Mazzaropi, acho que ele fez três filmes com o Mazzaroppi, um deles ele ganhou o troféu Cidadão Paulistano também ele ganhou né, um troféu, então essa época pra cá eu conheço, depois ele começou com a bandinha né, e depois ele veio a falecer, mas aí já foi bem, meados de mil novecentos e setenta, por aí né?

Genésio: O que?

Noemi: Mil novecentos e setenta, ou antes?

Genésio: Sessenta.

Noemi: Mil novecentos e sessenta né?

Genésio: É.

Noemi: Aí ele já veio a falecer.

Mariana: Como que era o tipo do seu pai? Como ele fazia? Que personagem que ele fazia?

Noemi: Meu pai fazia o caipira mesmo, o caipira mesmo que falava tudo errado, hã... No meu ver, Mazzaropi que imitou ele, não foi ele que imitou Mazzaropi. (Risos). Porque uns falam né, que ele né? Não, ele já fazia, ele já tinha aquela cabeleira de cabelo todo descorado, aquele chapéu de palha, e fazia aquela barbicha, roupa de caipira mesmo, e meu pai, por ele nascer, ele nasceu em Campinas e foi criado em São Carlos, ele já falava bem puxado caipira, e ele era aquele jeitinho que ele se apresentava, ele era em casa, brincalhão, fazia todo mundo dar risada. Nessas a minha mãe nunca ficou nervosa, porque ele não deixava ficar nervosa, porque ele brincava. (Risos). E acredito que muita gente gostava muito dele, tanto trabalhando como fora né?

Salim: Tem alguma coisa assim que ele falava assim que era característico do jeito dele?

Noemi: Ah, ele tem algo assim, que eu às vezes, meus filhos já estão grandes, já tenho rapazes de vinte e sete anos, minha filha de trinta e pouco, então quando eles eram pequenos, que eles vinham pedir dinheiro, pra comprar lanche e tal, e eu fazia o lanchinho deles, mas não, eles queriam comprar o lanche da escola, aí eu cantava pra eles a mesma cantiga que o meu pai me cantava, é... (Noemi começa a cantar). ‘Dinheiro custa dinheiro, dinheiro custa ganhar, se você quiser dinheiro, você tem que trabalhar’. (Risos). Então é algo que o meu pai assim me deixou gravado. (Risos). Eu não sei se o meu irmão lembra disso, mas eu lembro muito que o meu pai brincava com a gente, e a gente saia chorando. (Risos). Que não adiantava né? (Risos).

Daise: E a sua mãe, depois que o seu pai faleceu, ela não continuou fazendo alguma coisa ou em circo ou em teatro né?

Noemi: Não, não.

Daise: Porque ela morreu em dois mil e três.

Noemi: É dois mil e três.

Daise: E ele em mil novecentos e setenta né?

Genésio: Sessenta e oito, sessenta e seis, sessenta e oito.

Noemi: Não, mamãe não fez nada, ela trabalhou na TV Excelsior, mas ela trabalhou como Figurinista né? Ela cuidava da parte de guarda-roupa, depois da TV Excelsior que faliu, ela foi pra Bandeirantes, trabalhou muitos anos lá na Bandeirantes, e depois ela ficou em casa, depois ela se aposentou, mas ela parou, não fez mais nada, nada, artisticamente mais nada. Ela teve convites até de fazer dublagem né, que a minha mãe, ela tinha uma bonita voz né, mas ela, em respeito ao meu pai, que havia falecido, ela falou que nada mais ela queria fazer artístico. Aí tivemos, aí ficamos com uma vida normal né?

Daise: Mais alguma coisa?

Noemi: Tô liberada? (Risos).

Daise: Ainda não, porque se você lembrar de mais coisa você volta...

Noemi: (Risos).

Daise: Tá bom Noemi?

Noemi: Tá bom, linda? Eu tenho, eu tenho pouca coisa né, por eu ser a raspa da panela. (Risos).

Daise: Você contou tudo aí minha amiga, que maravilha!

Noemi: Só não falei mal dos meus irmãos né, preciso voltar pra falar mal do meu irmão. (Risos).

(Fim da entrevista).

 Daise Gabriel

DAISE ALVES DOS REIS GABRIEL
DIA 2 / PANASONIC AC-AG160

Minehira: Pode soltar Daise.
Daise: (Daise sorri).
Minehira: Aí.
Mariana: Esse pré REC já é REC né?
Minehira: É, tem que estar rolando o time code, está rolando?
Thyago: Tá vermelhinho em cima? Sim, tá rolando.
Minehira: (Claquete). Essa é a entrevista da Dona Daise, filme Xamego, dia dois, casa dona Daise.
Salim: Então, qual que é a primeira imagem que você tem da sua mãe, quando você era pequenininha?
Daise: Então, a primeira imagem que eu tenho dela né, eu era realmente bem pequena e é quando ela se vestia de Xamego, que ela mudava a voz, mudava totalmente os gestos e a roupa né, aquela roupa de homem, sapatão e tmial, pra mim era outra pessoa né? Então ela queria... Falava cogo, ‘já comeu’, ou ‘fica sentadinha aqui’, qualquer coisa assim, e eu achava o fim assim, era um intruso ali entre eu, entre mim e ela né, uma pessoa que eu não sabia quem era. Primeiro que não me mandava, e segundo que não tinha nada a ver com a minha vida né? Então era gozado, era uma outra pessoa... E aí a gente foi ao longo da minha infância toda, ela era ela e era o Xamego ao mesmo tempo né? Então era como se eu tivesse uma outra pessoa na família. O Xamego era uma pessoa a mais. Então era meu pai, minha tia, meu avô, meu irmão, minha mãe e o Xamego. Uma outra personagem, uma outra pessoa que me incomodava um pouco né, porque eu tinha, não sei se um misto de ciúmes, um misto de timidez, um misto de medo, e uma certa... Queria desobedecer, sabe? Era uma figura que eu achava que eu podia desobedecer, mas a minha mãe era muito brava como mãe, então não deixava eu entrar nessa de ficar travessa, porque eu era uma criança até, acho que sempre, obediente né? Eu era alegre, mas não era desobediente, não era rebelde, e com a minha mãe eu era dócil e tal, agora com ele eu não sabia muito como me portar, porque eu achava que com ele eu podia ser desobediente, mas também não desobedecia, então era uma pessoa que me desagradava um pouco.
Salim: Sua mãe te dava... O Xamego te dava comida? Tinha trabalho da casa que ela fazia de Xamego?
Daise: Não era bem diferente, o Xamego era mesmo só na hora do circo. Porque a minha mãe era uma mulher né, aquela dona de casa, que adorava inclusive, adorava os filhos né? Porque ela perdeu nove filhos, teve gêmeos, gêmeos, trigêmeos. Os trigêmeos estavam ainda em gestação... Como os quatro primeiros que estavam vivos, com uma diferença de um ano, eles foram morrendo, foi um período muito difícil na vida dela, e ela sempre gostou de criança, quando ela tava grávida dos três, o médico resolveu que era melhor ela tirar, daí ela tirou, ficou um ano se tratando, ela e meu pai, e ela teve o meu irmão né, que o médico falou ‘a senhora precisa se tratar, porque as crianças estão nascendo muito fracas’, que nasceu muito saudável, cinco anos e tal, e logo em seguida, eu nasci. Então, eu era, eu fui muito mimada como criança né, nós dois fomos, mas era assim, era, como mãe ela era rígida, mas ela era muito carinhosa, e assim, cafezinho na cama, comidinha feita na hora, roupinha e tal, e ficava assim, era outra pessoa o dia inteiro, era a última a sentar pra comer e tal, atendendo todo mundo, o meu avô que já tava velhinho né, que era o dono do circo, fazia coisas do circo e tal, e a barraca inclusive pintava, arrumava, papelzinho pra por na, nas, enfeitava, tudo coisas que ela fazia, costurava, cortava, enfeitava, e depois...
Mariana: Espera só um pouquinho. Na verdade está entrando um refletor que eu não tinha visto...
Daise: Daqui a pouco você esta... Dormindo. (Risos).
Mariana: (Claquete). Take dois, entrevista Daise.
Daise: Vai tudo de novo?
Mariana: Não.
Daise: Ah é?
Salim: E sua mãe brincava com você, assim, ela fazia palhaçada?
Daise: O tempo todo, ela era muito alegre né, ela era muito alegre, e minha mãe era muito criativa né, então ela tinha essa coisa, como ela não parava, mexia nas plantas, mexia com os cachorros, com os animais, com gato, e no caso a galinha né, que a gente até ficou sabendo, então ela era muito... E era muito mãezona também né? Agora tinha o lado da minha mãe que era de fazer a gente ensaiar né, então ela era rígida, então tinha que levantar cedo, se a gente não levantasse ela pegava a varinha pra bater na perna, entendeu? Tinha que fazer o número direito né, porque ela foi criada desse jeito, então ela era bem rígida, mas muito mãezona, muito presente, muito presente, aquela mãezona né? E preparava tudo o que a gente tomava, preparava tudo, a roupa da gente, pra gente entrar ela que arrumava, era ela, era ela.
Salim: Mas entrava do quê? O que vocês faziam no circo?
Daise: A gente era acróbata né, tínhamos um número que chamava os irmãos Alves, que meu pai ficava puto porque não tinha... (Daise tapa a boca quando fala o palavrão).
Mariana: (Risos).
Salim: Vai embora, vai embora.
Daise: Porque não tinha o sobrenome dele né, que era o motivo de briga em casa, porque ele era Reis. E aí, íamos eu e o Aristeu, a gente fazia um número né, que era a nomenclatura, que é uma coisa de circo. Então a gente, eu fazia, eu seria basicamente acrobacias, e o Aristeu era o saltador né? Então era isso, então a nossa rotina tinha essa coisa da rigidez, dos exercícios, da preparação pros espetáculos que aconteciam basicamente no fim de semana. E a coisa do Xamego era assim, a hora do Xamego, porque ela só se arrumava na hora, e punha a roupa e tal pra entrar né, porque tinha todo, os bastidores que ela fazia um monte né, então aí que tinha o lance do Xamego. E era assim, tinha a cortina pra entrar no picadeiro, quando ela saia da cortina mesmo de Xamego, porque ela entrava, já era outra pessoa também, mas mais mãe né, mais artista do circo, mais a dona do circo, então, mudava um pouco, mas enfim, lá... Porque assim, eu fiz muita coisa com ela no picadeiro né? Quando a gente fazia o número, por exemplo, às vezes ela entrava também pra fazer umas graças, depois a gente fez um número quando estava maiorzinho, eu, ela e o Aristeu, que chamava Os Três Malucos, que a gente entrava com umas roupas cheias de bola, com aquela gola de tule né, aquela coisa e todo mundo pintadinho né? Aí era mais divertido, porque era uma brincadeira com a minha mãe e com o Aristeu, né? E mudava um pouco a personagem dela, porque não falava né, era só mímica e música alegre e tal. Então, tinham várias situações assim e, mas aí também já não tinha muito papo, entendeu? Tinha que fazer certo né? É que como era uma coisa meio, assim... Eu, por exemplo, não tenho nenhuma coisa de graça né? O Aristeu pegava, mas eu não, então eu era a sem-gracinha ali que tinha que todo mundo dar umas coisinhas porque era o tipo do número mais espontâneo né? Tinha umas graças assim combinadas, mas tinha a coisa da espontaneidade que eu não tinha, tanto que quando eu queria fazer ninguém entendia né, minha mãe olhava para o Aristeu e os dois davam risada de mim né? (Risos). Então umas coisinhas assim mais leves. Então tinham várias situações. Tinha uma situação, eu e o Xamego, que era lá uma, acho que era uma peça, que eu fazia né, lógico, uma criança, e ela pegava na minha mão e entrava comigo e eu tinha que dizer ‘papai trouxe doce, papai trouxe doce’ e eu ía butucuda, sabe quando você nem quer segurar a mão assim? Então era uma coisa louca assim né, criança também né, eu era bem pequena né?
Salim: Essa coisa do doce aí você ficava brava por quê?
Daise: Porque era o Xamego, né? Eu não gostava do Xamego né? Eu não gostava do Xamego basicamente, tinha ciúme né? Gozado.
Salim: Agora, ela te chamava de xameguinho?
Daise: Minha mãe? Não.
Salim: O que você falou que ela brincava com você?
Daise: Eu falei xameguinho?
Salim: Falou aqui agora.
Daise: Não lembro disso; mas não chamava não.
Salim: Não?
Daise: Não, a minha mãe era ‘Daise, Daise’, no máximo um Daisinha né, que eu me lembro assim, né?
Salim: Mas você nunca quis ser Palhaço?
Daise: Não, eu nunca quis ser nada de circo. É um mundo assim, que como foi muito difícil né, pra família, em termos de trabalho, vamos dizer assim. Como foi um período, foi o período mais difícil porque meu avô já estava velhinho quando eu nasci depois meu avô faleceu eu tinha seis anos. E aí, o meu pai era um ex-seminarista, não era de circo e o Aristeu era moleque, e a minha mãe era a mais guerreirona né, ela meio que assumiu essa coisa do circo, mas não tinha condição né? Não tinha ajuda, a gente não tinha dinheiro, e aí eu acho que pesou o fato dela ser negra né, família negra, ainda mulher né? Então, realmente, não tinha nenhuma chance assim. E ainda o meu pai sofreu um acidente que um mastro caiu na perna e quebrou muito, né? E ele ficou um ano, ou sei lá, um tempo muito grande engessado. E aí foi que decidiram vender né, o circo. Eu não lembro exatamente quando foi, mas a coisa foi... E dali pra frente a gente também teve muito problema, foi morar na casa do meu avô, que era um cara que tinha grana, mas português, branco, e entrou essa coisa do racismo, da pobreza, da miséria, da dificuldade. Meu pai não tinha muita estrutura emocional, e meu avô era um homem muito enérgico, meu avô Benedito né, que era do lado do meu pai, muito bravo né? E com meu pai também, meu pai era o caçula dele. E ali foi um desastre total, nessa região que era a região leste que a gente morou, mas daí depois eu comecei a estudar e nós fomos despejados da casa do meu avô né? Aquela de tirar os móveis... Você voltando do trabalho e vê um móvel lá e... ‘O que é aquele caminhão que está com meu sofá?’ Era despejo né? Saímos e fomos para uma casa que não estava nem pronta pra se morar, mas aí a gente já estava estudando, o Aristeu já estava, também estudando, mas encaminhando essa coisa da música. E aí a coisa foi realmente, tomou outro rumo e eu gostei disso. O Aristeu entrou ainda nessa coisa da música, eu não. Aí eu me formei professora, fui dar aula, e meu sonho era ser jornalista, e aí eu tomei um outro caminho realmente que sempre me interessou. Então o Aristeu tinha mania de tocar violão e eu cantar, diziam até que eu cantava bem, eu até achava que quando eu lecionava as crianças adoravam me ouvir cantar, mas eu nunca me interessei. Nunca, nunca, nada disso nunca me interessou. Fiz algumas coisas já pelos vinte anos, que a minha mãe começou a trabalhar em outros circos, aí arrumaram lá uma possibilidade de eu fazer a namorada do Palhaço de circo, que era no circo da dona Celeste, que ela fazia força de cabelo, em Guarulhos isso, e ele era o Bolachinha. E o Bolachinha tinha uma figura interessante de Palhaço, porque ele era um homem alto, meio atraente e tal, e ele ficava até mais atraente como Palhaço, mas ele não usava nada largo, nada, nada, era a cara só né? E ele então, tinha como todo Palhaço tinha toda aquela atração né, então ele fazia quase um galã nas peças, era uma figura interessante, ele não era o feio, nem o burro, nem nada, ele era o galã né? E ele então... Arrumaram lá uma vez que eu tinha que fazer a mocinha, porque eu era mocinha né? Eu odiava, eu não gostava. Uma vez também, fui a namorada do meu pai, eu odiei né? Porque meu pai também era um homem muito bonito e tal. E aí ele pegava na minha mão e dizia ‘ó, meu amor!’ Eu achava aquilo o ó! (Risos). Eu não gostava e realmente pra mim, estudar era o que eu queria. E depois comecei a lecionar, depois fui fazer faculdade, nem era um assunto que me agradava voltar, porque tinha lembranças... Aí também pela própria decadência do circo, e a família também desestruturou muito e foi muito difícil né?
Salim: Você estava falando... E ela como Palhaço, você tava falando de agradar, essa coisa toda, como é que era?
Daise: A minha mãe?
Salim: É.
Daise: Agradava, mas a mim ou...
Salim: Não, aí já ao público.
Daise: Ah, o público... Ela era o máximo. Ela era eu acho até, que ela tinha esse personagem de Palhaço, de uma época, que tinha, por exemplo, o Carequinha [George Savalla Gomes] né, que tinha, por exemplo, o Arrelia [Waldemar Seyssel], que era o centro do circo. Tanto que quando tocava a música, que era a música tema, que era o Xamego, que o Luiz Gonzaga [do Nascimento], que eu achava que era a Carmélia Alves [Curvello], mas não era, era o Luiz Gonzaga, porque eu me lembro muito da coisa da sanfona que ele faz, quando dava aquela abertura da sanfona o público delirava. Eu vou chorar. (Daise se emociona).
Salim: E o Luiz Gonzaga fazia sucesso também, né?
Daise: Então, o Luiz Gonzaga fazia muito sucesso, só que assim, eu acho que o grande sucesso dele foi depois disso, dessa fase. Isso que eu não entendo muito bem no tempo né? Porque depois ele começou a ser das grandes atrações do circo, uma das grandes, né? Que tinha Luiz Gonzaga, que tinha O Peru Que Fala, que era o Silvio Santos [Senor Abravanel], então, o Cascatinha [Francisco dos Santos] e Inhana [Ana Eufrosina da Silva] que era uma comoção, Tonico [João Salvador Perez] e Tinoco [José Salvador Perez] então que era o máximo né? Então, essa parte do circo eu realmente gostava, porque eu gosto de música e tal, e aquela alegria toda, o Luiz Gonzaga com aquelas roupas lindas né, e o pessoal muito bem vestido e tal, e aí eu me soltava como, como é que vou dizer? Público né? Plateia né? Então eu vibrava, eu cantava, eu queria dançar com eles lá no meio e tal. (Daise se emociona).
Minehira:: A gente vai ter que parar um pouquinho porque dá doze minutos ela...
Mariana: Take três. (Claquete).
Salim: Como era uma entrada do Xamego, assim, quando entrava, como é que era?
Daise: Era a grande festa do espetáculo né, era uma coisa mesmo já tinha uma preparação, normalmente a gente tinha uns números iniciais e os de final né, e a entrada ficava mais ou menos no meio, era o grande momento, né? Então tinha a coisa da música para o público já se acender e, era tão, vamos dizer, a comoção era grande, o êxtase do espetáculo, que a minha mãe tinha um número que ela fazia com o cachorrinho, porque ela dominava, domava né, amestrava né, cachorro, gato e até galinha e ela, quando ela ia fazer o número... E eles não sabiam as entradas da minha mãe, se bem me lembro, as pessoas não sabiam quando era né, mas a música que era a grande o anúncio né? Porque qual é a mecânica do espetáculo? Entra um apresentador, que era meu pai, minha tia menos, mais os homens né? Entrava e anunciava o artista. O Xamego não era anunciado, a música é que anunciava. E era a grande comoção. E tinha um número que ela fazia com o cachorrinho, até o cachorrinho, começava a música, ele ficava latindo e ficava já em pezinho, porque ele dançava. Então era assim, a grande festa, o grande momento, era a entrada, que a gente chama de entrada do Xamego. Então a minha mãe entrava hora com meu pai, que era Xamego e Reis, a grande, o nome da dupla, tinha ela e minha tia, que eu não lembro como falava, como anunciava, ou ela simplesmente entrava, e teve algumas vezes ali por uma questão lá que meu pai, acho até que foi essa época, que ele tava com a perna quebrada que era o Aristeu, meu irmão, que fazia a entrada com ela. A entrada o que é? É aquela, justamente a coisa das, chamam das pilherias, tem coisas combinadas, tem coisas não, tem gestos, tem a coisa da graça, que ele fala, a minha mãe não era muito de cair, dessas coisas, ela era engraçada mesmo... A perna... E fazia caretas e tal, né? Então ela tinha muito isso. E tinha coisas dela que a entrada que fazia mais sucesso era ela e meu pai, porque eles estavam muito bem azeitadinhos né? E era isso.
Salim: O que ela falava?
Daise: Ah, eu não lembro muito, eu lembro de algumas coisas que eu gostava né, quando ela falava, e... Porque tem algumas piadas que eu andei até lendo aí em algumas teses de mestrado, que pelo jeito eram as piadas da época né, que todo mundo acho que contava, os Palhaços. Agora, porque aí também foi uma questão dos caras catalogarem né, mas aí tinha uma que eu gostava, que ela fazia sozinha, que ela entrava, que ela era uma espécie de garçom né? Com aventalzinho, tem foto. E ela entrava sozinha, pegava uma garrafa, punha na mesa, sentava, e começava a tomar, aí olhava a garrafa, aí o povo naquele silêncio né? Alguns davam uma risadinha ou outra, porque ela era muito engraçadinha, gestualmente. E aí ela ficava, olhava a garrafa, tomava, aí ela olhava, fazia... Até acho que vou errar a piada, mas ela lia, é ‘G-U-A, gua, R-A, na... R-A, ra... N-A, na... Gasosa’, entendeu? Eu achava o máximo e era assim também, uma piada que todo mundo gostava. E ela tinha aquela coisa com as piadas que mais agradavam, ela repetia, ela sabia dosar, e essa as pessoas até conheciam o fim, mas não tinha quem não risse né?  Era muito interessante esse lance né? E assim, coisas da plateia, as mulheres sentadas em volta, porque muitas apaixonadas por ela, meninas né, pelo Palhaço, acho que também isso também que é essa coisa do homem né, e tal, e davam bilhetinhos para mim mandar para ela né, pro Xamego, ‘fala pra ele que quero encontrar com ele’, e tal, e ela tinha, nossa, era realmente a grande atração, era vamos dizer, o artista mais amado do circo. Ganhava muitos presentes, natal assim, a gente fazia as ceias em casa com bolos, cabrito assado, sabe assim de botar assim na mesa e a Companhia inteira comia, entendeu? Porque tem essa coisa no circo do coletivo né? Que é uma coisa muito legal, que é a coisa da família, e as pessoas que chegam também são todas da família, todos amigos que precisam de ajuda e tal. Então, essa parte era muito gostosa. E também uma coisa que eu lembrava gostoso de circo, que até hoje eu tenho boa lembrança é o cheiro da serragem né? O barulho da chuva, né? Que o artista do [documentário O Circo] Paraki fala no documentário, que o barulho da chuva na bacia... Eu tenho até hoje a bacia do circo né? A gente tem essa coisa da evocação e tem o cheiro da serragem, pra mim tem até hoje... E hoje não existem quase picadeiros nos circos, muito menos a serragem né? Porque a serragem tinha uma função de amortizar as quedas e tal né, era também uma coisa que não tinha só a coisa do, vamos dizer, ela compunha em termos de cenário né, mas também tinha essa coisa de não machucar quem caísse, ou quem rolasse né, fizesse ali uma acrobacia, uma coisa né?
Salim: E ela ia assim para o público, para provocar o pessoal?
Daise: Não, ela não tinha muito isso, que eu me lembre não, não tinha, mas era uma coisa muito assim de, junto mesmo, ação e reação, porque o picadeiro dá essa proximidade né? Então as pessoas que gostavam muito queriam ficar sempre na frente, né? E não tinha muita diferença de preço. Era assim, o picadeiro, as cadeiras eram um pouco mais caras e as bancadas só que eram mais baratas né? Hoje em dia tem todo um lance né, mas antigamente era isso. E as pessoas que vinham nas cadeiras, queriam sentar na frente né? Então tinha fila né? Quando ligava o alto-falante pra começar o espetáculo ou pra preparar, quase como um anúncio que estava preparando. À noitinha, as pessoas ficavam na fila pra entrar na frente, aquela coisa toda né? Porque era uma permanência do circo num lugar, numa praça, que eles diziam, porque às vezes no mesmo bairro, mudava de praça né? Era coisa de dois, três meses né, então acabava tendo uma convivência com a vizinhança do circo né? E a minha mãe, aí sim, sem ser o Palhaço, sem ser na hora, ela era aquela que ia na casa das pessoas, as pessoas vinham, conversava, trocava figurinha de comida, porque ela adorava fazer tudo né? Cozinhava bem, enfeitava a casa, consertava as coisas né? Tinha a coisa dos animais que ela adorava, cuidava dos animais, as pessoas também né? Então tinha essa coisa de comunidade, não só entre os artistas como com a vizinhança né? Porque era difícil a coisa da barraca né?  Não era essa coisa que hoje em dia você tem aquele trailer super equipado. Não! Era tudo né, água não tinha, não ia abrir poço cada vez que né, que ficasse na praça, então, era coisa que a vizinhança que quebrava o galho mesmo, que ajudava, a coisa da água, do banho né? Era assim...
Salim: E quando ia mudar da praça, o pessoal dava presente? Você lembra de algumas coisas?
Daise: Eu lembro algumas coisas, no começo era uma coisa mais, vamos dizer, como é que eu vou dizer? Porque teve uma época em que o artista de circo não era mais uma atração né, o circo não era mais a grande atração, isso foi caindo, e eu convivi com isso que eu chamo de decadência do circo itinerante, do circo do Palhaço né? Dessa identificação né, mas no começo sim, as pessoas ajudavam na mudança, a comunidade né, porque era todo mundo né? Eu nunca fui muito de ajudar porque eu era pequena mesmo né, e foi uma coisa da minha infância até sete anos né? Porque com sete anos eu já estava morando numa casa que era essa vez da casa do meu avô... Primeiro nós fomos morar aqui na Vila Guilhermina, acho que foi, perto da Lapa, não sei se é nós fomos morar num cortiço né, que eram barracos, não tão deprimentes como essas favelas, mas era a versão da época né, as casas não eram tão amontoadas, e tal, mas era assim, pobreza, assim, simplicidade, plantava-se o milho no terreno pra comer né? Então coisas assim. Grande dificuldade financeira. Meu avô tava doente, morava num barraco e nós em outro. E depois, foi pouco tempo, foi quando eu entrei na escola, e fiz, acho que entrei com seis, sete anos, com oito a gente já estava morando na casa do meu avô né? E aí então, antes disso, quando a gente ainda tinha o circo, mas não morava no circo, porque parou, já não tinha toda essa, vamos dizer receptividade com o público né? Passou a não ser tão interessante a figura do artista de circo.
Mariana: Vai dar doze. Quer parar? Parou?
Minehira:: Take quatro, entrevista Daise. (Claquete).
Salim: Quando sua mãe virou Xamego você já tinha nascido?
Daise: Olha, eu não sei direito né? Eu acho que não, mas eu não sei direito, é uma coisa que em termos de tempo eu não sei bem. Eu acho que não porque a minha mãe contava né? Virou meio uma história né, na casa né, então era, porque, segundo... O que aconteceu foi isso, o Palhaço era o Gostoso, que era o irmão mais novo da minha mãe, só que ele começou a ficar doente, não se sabia o que ele tinha, acabou cortando as duas pernas, foi internado, então não tinha Palhaço, e como eu disse, o Palhaço era o grande centro do circo né? E aí a minha mãe que já tinha né, essa coisa de caricata e tal, engraçada, porque a minha tinha Efigênia sempre, que era a irmã mais velha da minha mãe dizia, ‘a Eliza é muito engraçada’. Aí ela tentou convencer meu avô, que era o proprietário do circo, que tinha sido grande que estava numa fase difícil, e ele, e ela convencendo meu avô de que ela poderia ser o Palhaço né? E meu avô falou, ‘imagina!’, né? Ele era muito severo, monossilábico, eu lembro da imagem do meu avô é essa né? Que ele morreu com oitenta e um anos e eu tinha seis, mas eu lembro que ele era bravo. Aí, ela começou a se arrumar, botar a roupa e fazer né, vamos dizer graça pra ele, acrobacias... E ela negra, cabelo pixaim, muito grande, e gordinha, porque a minha mãe sempre foi gordinha, baixinha, então ela soltou o cabelo, assim armado, pôs uma... Ela contava pra mim né? Pôs uma cartola pequenininha e começou a fazer graça, uma, duas, três vezes, até que meu avô começou a dar risada né? E aí ela entrou, mas a ideia deles pelo que eu imaginei é que ela apenas substituísse até que por fim, lógico, depois que ele cortou as pernas e tudo, não teve condição, mas aí foi aí que ela, pelo que eu me lembro, já começou muito bem, tinha a música e tal, e que eu acho até que a música foi muito bem escolhida, sabe? Meu tio era um cara, um intelectual, ele dava aula de grego, de latim, enfim, falava vários idiomas, e meu pai também né, ex-seminarista e tal, então eles, essa escolha da música do Luiz Gonzaga, que eu acho estava começando a fazer sucesso, não foi por acaso também, que diz inclusive ‘ninguém sabe se ele branco, se é mulato, ou negro’ porque tinha essa coisa do negro, que o Luiz Gonzaga né, carregava muito na, e a coisa do nordeste, enfim. Enfim, eu acho que... Então essa era a história que ela contava, eu só não sei que época exata que foi né? Porque teve uma outra crise na família da minha mãe, que o meu avô separou da minha avó, que foi quando a minha avó faleceu. E aí, eu não sei como ficou a coisa do circo, se eles pararam de fazer, a verdade é que meu avô saiu, e a minha mãe e minha tia foram para o Rio de Janeiro morar na casa do Benjamin de Oliveira, que a gente sabe né, que é um homem até hoje muito conhecido, que já tinha pelo que imagino um grande sucesso na época, e ele... E a minha mãe tentou a carreira de Cantora com a minha tia, eram as Irmãs Alves. E realmente cantavam muito bem, conheceu o pessoal do rádio, o rádio já estava se tornando a grande mídia né, e aí ela, depois quando ela voltou... Então, aí é que a gente não sabe muito bem quando ela voltou, a mãe morreu né? Já tinha morrido alias, foi uma morte, já tinha morrido, voltou, meu avô voltou pra casa, então eles retomaram o circo. Foi quando, aí eu não lembro se já tinham tido... Casado... Porque a minha mãe casou com trinta e três anos né? E quando eu nasci ela tinha trinta e nove, quarenta, então não sei esse período, eu sei que era o Xamego, mas não sei quando começou né? Eu não sei.
Salim: O circo também levava as peças de teatro, né?
Daise: Levava; peças famosas na época, não tanto de teatro né, mas as peças famosas, tinha O Bandido da Serra Morena, que era famoso, que era assim, que eles anunciavam no alto-falante, ‘este dia tal, vai ter O Bandido da Serra Morena’, que montava-se acho que nos vários circos né? O Morro dos Ventos Uivantes e a coisa da Semana Santa tinha a coisa do Cristo né?
Salim: Mas aí ela virava atriz?
Daise: É ela virava atriz. Todo mundo né? Todo mundo virava atriz. Aquela coisa, eu virava anjinho né, na coisa do Jesus Cristo, a minha tia podia fazer a Madalena, ou uma mendiga, ou enfim, as figuras, mãe de Jesus né? Então tinha cada um, ninguém tinha papel fixo fazia, tinha que ter, a montagem da cenografia todos faziam os truques dos milagres, as cabeleiras das atrizes, e as perucas do, vamos dizer, do Jesus Cristo, coroa do Cristo e tal. Então era assim, era uma movimentação grande, eu não entrava muito porque eu era pequena, mas todo mundo entrava, todo mundo entrava, e eu também né, já se viu que eu era bem enjoadinha, e eu então queria, palombar eu queria, entendeu?  Porque palombar eu achava o máximo, porque você tirava a lona né, do circo e aquela coisa imensa, e tinha que costurar as laterais né, porque é tudo enviesada, então ficava assim, uma turma grande, todo mundo sentado, passava aquele cordão que, eu acho que tinha com cera, que era corda mesmo, aquele fio bem grosso né, numa agulha e tal, e ia costurando, então todo mundo montava a lona né? E aí depois punha pra cima. Era uma coisa, acho que uma delicia de participar e eu, pra variar... (Risos). Acho que porque eu não palombei que não gostei do circo né? (Risos). Sei lá.
Salim: Agora o Xamego entrava quantas vezes assim?
Daise: Ah! Eu me lembro assim, também não tenho muito claro, mas ele entrava várias vezes, entrava nas peças né, que a gente diz, comédias...
Salim: Mas aí entrava com, aí com...
Daise: Não, tinha peças que ele entrava como Xamego, mas com outra... É, era isso... Mas ele fazia... Porque é assim, no circo você tem a entrada que é a formal, Xamego e Reis, você tem os números das pessoas que às vezes ela entrava, você tem o número que o Xamego fazia com os animais, e também, quando eu fazia força de cabelo a minha mãe também ficava, mas aí não era tanto pra fazer graça, um pouco, porque a presença dela já fazia todo mundo rir, mas ela ficava porque tinha a traquitana de eu, lá de cima rodava, anjinho, não sei o que e tal, gracinhas, e pezinho pra frente, pra trás e tal, aí descia de lado, de cima né, lá em cima na ponta da lona, até embaixo, aquela coisa, apoteótica. Então ela estava ali, mas ali era né...?
Salim: Segurança.
Daise: Segurança né, o Aristeu também, meu pai né? Então, assim... Pintadinho né, porque meu pai passava ruge e batonzinho né?
Salim: Seu pai?
Daise: É. Os galãs são todos...
Salim: Nossa, deve ser horrível hein?
Daise: (Risos).
Mariana: (Risos). Então minha avó se vestia de homem, e meu avô se vestia de mulher... (Risos).
Daise: (Risos). De mulher. (Risos). Não, o galã de circo é o máximo né? É cabelinho, imagina os atores né? Então essa coisa, então ele entrava também, aí tinha as peças que ele entrava, até fazia essa coisa do, era o garçom, era o criado, entendeu?
Salim: Mas caracterizado?
Daise: Sempre, e porque era o Xamego? A pintura e a cabeleira, as roupas mudavam, sapato até também, eu não lembro bem, mas... O que você identificava no Xamego era a cara né? E aí, que mais você quis saber?
Salim: Dos animais? Que animais que ela tinha?
Daise: Ela tinha cachorro, que ela amestrava; gato, que fazia força dental, que é uma coisa, que é quase o meu número da força de cabelo, só que era no dente né? (Risos). Então os gatos dela, tinha lá um, dois só, porque o animal é assim você amestra vários, mas nem todos tem talento né, então ela escolhia, tal, tal, tal, tudo vira-lata, nenhum animal de raça, aí ela pegava, só a galinha que era garnisé, mas eu não sei se pode chamar a galinha garnisé de uma ave de raça né, eu sei que é mais cara. Aí tinha o gato, que também tinha umas peripécias, leva na cestinha, e aquela coisa do perigo, porque todo o número circense tem essa coisa, será que ele vai cair, será que né? O número dos acróbatas, do trapézio, do cara que rola a bola e tal. Então, tinha o gato, que ‘ah, no cestinho! Ah, ele tá lá! Será que ele vai cair? Será que ele vai pular?’ e roda o cestinho, e roda mais forte, e vira bábábá, até que arrumavam lá uma traquitana, que acho que alguém subia, não me lembro bem, mas só podia, botava o gatinho, ou botava aqui de cima, ou de baixo, descia, subia, segurando no dente, sem nada preso nele, ele ficava segurando no dente, e depois soltava de cima para baixo. Tinha o gato.
Mariana: Cortou.
Minehira:: Filme Xamego, entrevista com a Daise, take cinco. (Claquete).
Salim: Ela tinha um macaco também, o macaco se apresentava? Como é que era o Pescador?
Daise: Não, o Pescador não se apresentava, o Pescador foi um animalzinho que era o amigo da minha mãe né? Porque a minha mãe, ela era muito gordinha quando criança né, e ela então não, vamos dizer assim, não tinha muito amigo né, porque a minha tia que era irmã dela mais velha era sempre magrinha e muito esperta, muito levada e brincava mais né? Tanto que a minha mãe, minha tia era levada e batia nos moleques, e a minha mãe gordinha, tava na roda, ia correr junto e ela não conseguia porque era gordinha, ela caia e os moleques batiam na minha mãe. E aí ela até desenvolveu a história da pedra, que ela acertava da distância que fosse né? Ela acertava, ela apanhava, ou não, mas ela atirava no moleque e se vingava assim, e aí, ela tinha uma certa solidão por tudo isso né, vamos dizer assim, e aí, como um circo grande, foi um grande circo do meu avô, família do, era assim, o grande Circo Guarani do João Alves, então era um homem muito respeitado, embora negro né? E a família muito respeitada, e o circo dele tinha famílias também famosas Stankowich, Tangarás, os Temperani que faziam o globo da morte, e todos tinham uma reverência com meu avô. Então esse foi um tempo da grandiosidade do circo, e a minha mãe tinha o Pescador, que era amigo dela, que brincava, que ela, ele tirava, vamos dizer, piolhinho do cabelo dela e ele comia as, as...
Salim: Lêndias.
Daise: (Risos). Aí ela... E ele, por exemplo, quando ela se machucava, ele pegava plantinhas, porque o animal eu acho que tem essa coisa instintiva, mastigava e punha, ele cuidava da minha mãe, então era aquele amigo levado e que, acho que também não corria como a minha tia Efigênia né? (Risos).  Então ela...  Eu não sei quanto tempo dura um macaco, mas às vezes eu penso que mesmo quando eu era criança, o macaco existia.
Salim: E como era a pintura do Xamego?
Daise: O grande lance da pintura né, porque não era máscara do Palhaço, porque era a grande característica de cada um, então não era assim, que eram traços repetidos não, cada pintura caracterizava aquele Palhaço. Então, se você analisar a pintura do Arrelia, a pintura do Carequinha, a pintura do Chicharrão [José Carlos Queirolo], e no caso, a pintura do Xamego, ninguém é igual. Principalmente a pintura. Você tem algumas coisas que são comuns como o sapato grande, a bengala, a cartola, a cabeleira, mas não a pintura do rosto. E a pintura era um barato né, porque eu vejo que muita gente faz isso hoje, as palhaças que eu vi né, a Silvia Leblon que faz a... Como é o nominho?
Salim: Spirulina.
Daise: Spirulina, e aí passa, um tempo ela passava pomada Minâncora no rosto, porque aí também tinha a coisa que protegia a pele, mas tinha uma coisa chamada Quilon, que a gente comprava na Galeria Olido né, que é onde é o Centro de Memória hoje do Circo. E aí ela passava todo no rosto, depois ela fazia com um... Não era bem um lápis preto né, eu não lembro o nome agora, fazia a sobrancelha, a boca né, a boca aqui maior. Ah, lembrei, o Quilon não era a coisa branca, era o nariz porque não existia essa coisa do nariz de plástico vermelho, a forma do nariz também era uma coisa característica do Palhaço, e o dela parece um nariz sujo né? Não é nem um nariz deformado né? Mas era o Quilon aquilo. Acho que porque segura mais, então tinha depois a boca, e eu não lembro se o nariz era o último né? Porque daí ela fazia o risco aqui, a sobrancelha mais alta, a boca mais larga, branca, essa parte maior, e o lábio que é o escuro, não era vermelho, era preto. E a parte do olho, que eu, engraçado, eu não lembro direito, mas tinha um branco também né? Só olhando ali. E é isso né? Então você vê, era esse, era essa a, vamos dizer, a marca registrada do Xamego né? E ela, além disso, tinha o tema. Porque eu não sei de nenhum Palhaço da época, porque quando eu era criança, às vezes ia no circo,  eu ia no circo dos Garcia, foi o Garcia que ficou um tempo no centro né? E aí vinha todo mundo abraçar minha mãe, ‘ah, o João Alves’, aquela coisa que eu te disse. Reverenciavam né? E eu não lembro de ninguém ter a mesma cara.
Salim: Ela demorava quanto tempo pintando, você tem uma noção?
Daise: Ah, era bem demorado, era uma coisa que ela caprichava, e tinha a coisa do cílio, era coisa assim de uns quarenta minutos. E tinha o camarim né, não tinha aquilo, ah o camarim do Palhaço, que não era, mas era um, era assim um barracão com, vamos dizer, lençóis quase que, divisões de pano né, e cada... A porta do camarim era uma cortina de pano também, então uma coisa bem incipiente e tal, e cada um tinha o seu camarim né, e ela tinha o dela que ela se... E aí tinha, eu me lembro muito pouco, se ela também não se pintava na nossa barraca no circo né? Eu não lembro bem, mas eu lembro de vê-la pintando, mas era uma coisa que não... Porque era um pouco antes da apresentação dela.
Salim: Mas aí ela não, ela não deixava você ficar perto?
Daise: Deixava sim. Aquele pano, era tudo pano e era uma coisa que ficava aberta, ventava, não era não tinha não, nunca... A minha mãe sempre teve umas coisas muito dela né, um mundinho dela né, acho que até essa coisa do Pescador né? E ela, eu não sei, eu acho até por causa dessa distância que ela impunha da vida dela, da intimidade, vamos dizer, eu não chegava, não ficava, não... Porque era assim, ela fazia um monte de coisa antes de trabalhar, e o espetáculo rolando né, porque os bastidores de circo é uma movimentação, o Mágico quando entra é aquela loucura né, e tal, e a roupa, e não sei o que, e lá agora, vai ter que ser agora, o cara vai entrar para anunciar né, aquelas coisas tem um ritmo né, você não pode deixar esfriar a plateia né? E aí ela era, assim, pouco antes dela entrar ela se pintava, ela não ficava rodando de Xamego. Era pra entrar, entendeu? Aí, depois, ela demorava pra tirar, porque aí podia ter o número do cachorro, podia ter uma peça que ela fosse entrar, ou um esquete né, porque você tinha a entrada, você tinha o esquete, você tinha a peça né, que você chamava de peça que seria a coisa do teatro né, só que no picadeiro. E aí, sim ela, tirar ela demorava, mas pra se montar era só quando tinha, que era a entrada que era o grande momento do... Eu nem lembro se ela entrava antes da entrada, se ela fazia outras coisas, acho que não, só depois, entendeu? Até por conta de tava pintada né? Porque é assim, o circo não tem muito tempo de você, que nem às vezes você, ‘ah, o ator que vai se vestir do personagem’, no circo não tem, eu não lembro disso né? E ela ficava diferente, ela se vestia, até abrir a cortina ela era outra pessoa, entrou lá era uma pessoa, entrou lá era outra pessoa, lá dentro ela era outra pessoa.
Salim: Outra voz, tudo?
Daise: Outra voz, outro tudo.
Salim: Como é que ela falava?
Daise: Grosso, rouco.
Salim: Mas como é que era?
Daise: Ah, não sei.
Salim: Ah pô, você tem...
Daise: Não, não sei, não sei, tsc, tsc, tsc... Não sei. Era assim como você tá falando rouco, por exemplo. Quando eu tô rouca eu acho que faço muito, ela, ela fazia uma certa rouquidão na voz, que é o que me lembro pra definir. Mas não dava pra saber, não era assim... (Daise engrossa a voz).  ‘Ou, ou, ou’, não, não era assim bobo né?
Salim: Você tinha medo dela?
Daise: Ah, de Palhaço eu não gostava, eu tinha um pouco de medo e não gostava. Era uma pessoa que eu não gostava, entendeu? Eu ficava butucuda, minha mãe falava, ‘você está butucuda’, eu ficava butucuda. (Risos). Por exemplo, acho que se eu ouvisse a voz do Xamego hoje, eu não ia reconhecer, isso que eu quero dizer. Eu não sei se tinha só um timbre, era uma coisa né, porque hoje em dia eles têm essas coisas ‘hou, hou, hou’, mas você faz ‘hou, hou, hou’, quem que você lembra? Papai Noel né? Não tinha muito isso, sabe? Mas tinha uma outra voz, tinha.
Salim: Dona Eliza nasceu dentro de um circo?
Daise: Nasceu dentro de um circo, ela nasceu em mil novecentos e nove, os pais dela já tinham... O proprietário né, era o pai dela, o João Alves, que se tornou um grande empresário e ficou conhecido como o proprietário do grande Circo Guarani né? E ela é a filha do meio de três filhos, sendo que a mãe dela já de um primeiro casamento, já tinha um filho né? Então, ela é a filha, tinha o meu tio Nêne, que era o filho da mãe, do primeiro casamento, da mãe dela, e no segundo casamento teve a Efigênia, a minha mãe, Eliza, e o meu tio caçula que era, esqueci o nome dele hein? Toninho, Antônio, chamava Antônio Alves. E justamente ela nasceu eu não sei se já foi na época da pujança né, do grande circo, mas a vida dela da infância foi, foram os tempos áureos do Circo Guarani.
Salim: Ela inclusive tinha Professora particular que ia dar aula pra ela lá...
Daise: Exatamente. Ela tinha Professor particular, eles tinham Cozinheiros, porque inclusive a Companhia era muito grande, com várias famílias compondo a Companhia né, que era um termo que se usava, e ela, eles tinham empregados pra fazer comida, empregados pra cuidar das crianças né, tipo quase um Tutor né? E faziam as viagens com, em, acho que fretavam, não sei se é esse o verbo, os trens né? Com vários... 
Salim: Vagões.
Daise: Vagões, porque tinham animais grandes, grandes animais, animais ferozes né? Amestrados né? Leões, elefantes e, segundo ela contava. Então eles... Foi uma época mesmo grandiosa, onde eles tiveram dentro do circo, por exemplo, Grande Otelo [Sebastião Bernardes de Souza Prata] e Oscarito [Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Teresa Diaz]. A Ondina [Santana], e ela era uma Contorcionista, conhecida como a Mulher Cobra, e era tida na época como a grande Contorcionista né? E ali eles tinham pessoas dessas famílias todas, Stankowich, os Tangará, os Seyssel, que também são a família do Arrelia e Pimentinha [Walter Seyssel] né, que era a família Seyssel. E daí... Ah sim, e os Temperani, que ficaram famosos porque faziam o globo da morte, que na ocasião também era uma grande atração né, no circo. Então, era uma época que não tinha atrações de fora, era o grupo dali, os Trapezistas inclusive né, que era uma atração à parte então, eram pessoas que moravam todas em barracas, junto, na região onde o circo, onde a praça que o circo ficava situado. E era um circo itinerante, mas era tão grande que pra se deslocar de uma praça pra outra tinha que fretar os vagões de trem.
Minehira: Eu só preciso trocar a bateria.
Mariana: Vamos lá, Daise parte três, take dois. (Claquete). Ação.
Salim: Então era uma família negra, então dirigindo um circo no começo né, em mil novecentos e nove, quer dizer, isso é um assunto pra ser explorado mais pra frente, mas só pra situar... Era um circo comandado por negros né? Pouquíssimos anos depois da abolição né, da escravatura?
Daise: Pouquíssimos anos e o que é curioso, é que assim...
Mariana: Mãezinha, você fala pouquíssimos anos depois da escravatura, e aí você segue.
Daise: Ah, tem que repetir o que ele diz né?
Mariana: Tem. Vai. Fala, dá a deixa de novo pai.
Salim: Pode ir?
Mariana: Vai.
Salim: O que é curioso é que era uma família de negros tomando conta de um grande circo né, de um porte grande, e pô, poucos anos depois da abolição da escravatura, comandando né, mas isso é uma história assim pra gente se aprofundar numa outra vez, mas é bom situar né?
Daise: É pouquíssimos anos depois da escravatura e o que é interessante e pelo que me lembro que minha mãe falava, o meu avô tinha tanto respeito e reconhecimento, enfim, quase um poder, vamos dizer assim, por conta, assim, dos amigos, ele fazia parte daquele grupo seleto de grandes proprietários de circo que eram todos brancos, e eu não acho que deva ter tido outra família de negros com essa importância, não só naquela época, o que já é uma coisa incrível né? E também em toda época do circo itinerante, eu não tenho notícia né, nem de proprietários de circo né?
Salim: Agora, bom, ela cresceu num mundo encantado né? Com os animais, no meio de artistas né, dos grandes artistas, tendo instrução né, tendo escola né, numa época que também não né, agora ela tinha um amiguinho que ela gostava muito, como ele chamava? Ela contava também?
Daise: Ela contava até a velhice também né? Ela tinha um macaco, chimpanzé, que chamava Pescador né? Eu acho que era um amiguinho dela porque a minha mãe ela era muito gordinha quando criança e ela não... A minha tia, que era amiguinha dela natural porque um pouco mais velha... Então a minha tia era muito levada, muito esperta e corria muito e batia nos meninos e a minha mãe não conseguia correr, porque gordinha, e ela apanhava. Então ela desenvolveu um método de dar pedrada nos moleques de longe, enfim, mas ela acabou tendo ali um, ficando, acabou com um mundo de brincadeira, de criança, reduzido, então ela se apegou nesse chimpanzé, que parece até que foi um animal que foi crescendo com ela inclusive, e durante, parece que muitos anos, o chimpanzé, e era o amiguinho. E também que quando ela se machucava, caia, ou alguma coisa ali daquela folia nos arredores do circo, ele pegava a plantinha né, que instintivamente o animal conhece, mastigava e passava nela, fazia compressinha, cuidava dela né? Então aquele companheirinho que, é aquela história que desenvolvia muito esse lado imaginário e essa coisa de que ela sempre gostou muito de animais e tinha uma interação né? Porque ela amestrou cachorros, gatos, galinhas né? Então ela tinha mesmo, o animal, ela tinha um monte e só obedeciam ela e eram muito, muito disciplinados os animais em casa. Tinha um monte, mas podia deixar aberta a casa, a porta, ninguém entrava né? Agora esse Pescador assim, ela conta que ele caçava, se dissimulava, fazia que estava morto, pra ver o passarinho que quando sentasse ele pegava pra caçar mesmo o animal né? E era assim, quase um herói pra ela né, porque além de brincar, ser o amiguinho, protegia ela também né? É isso.
Salim: Ela contava isso?
Daise: Ela contava isso, contava até, contou pra Mariana né, pra neta né? Então eram lembranças que ela adorava recontar né? Então repetia, e essa coisa do macaco, porque o macaco é quase um ser humano né? Então para ela, acho até que, algumas das peripécias do macaco, ou trejeitos, ou o que fosse ela devia usar no Xamego também né? Aquela coisa da traquinagem né? Porque o macaco é um animal traquinas né? Levado né? Então, ela levou pra vida dela inteira né, essa alegria.
Salim: Então, ela tinha alegria, ela tinha...
Daise: E destreza né?
Salim: Ela tinha negócio da destreza, pô, eu lembro dela atacando pedra, assim, ela não ia maltratar nenhum animal, mas ela tinha uma pontaria né?
Daise: De defesa né? Que era defesa, é, e ela tinha mesmo depois de idade, quando brincava com os amiguinhos da Mariana lá na chácara, ela era que acertava mais cestas né, e cestas colocadas numa altura normal né, e ela era baixinha, velhinha, mais baixinha ainda, então ela tinha uma habilidade física, e também essa coisa de imaginar a distância pra encaçapar, e era uma pessoa que, por exemplo, se ela atirasse uma faca em algum lugar ela acertava onde ela queria acertar né? Também era uma coisa que se via no circo, também que você tinha o número de facas também, que exige isso né? Atira na moça, na tábua e faz o contorno do corpo, e corta o charuto da pessoa que fica ali numa distância grande, acerta na tábua, cortando o charuto. Enfim, ela tinha, ela, essa convivência realmente teve uma influência física e psíquica né, na minha mãe né? E ela usava muito mesmo quando ela se apresentava de Palhaço, tudo isso né, com muita alegria, com muita agilidade e destreza né? Ela era uma pessoa que até velhinha ela dava rondada e cambalhota, sem o menor problema né? Então ficou durante anos, e essa coisa também da imaginação né? Do circo, das entradas, dos números, dos animais né? Era um mundo mágico, é um mundo mágico até hoje né?
Salim: Assim, a gente pode dizer que ela era um super-herói da natureza né?
Daise: É...
Salim: Porque ela conhecia né, também os remédios, ela sabia tudo né?
Daise: É conhecia.
Salim: Era uma escola, o circo era uma escola de vida né?
Daise: Isso, escola de vida e tinha a coisa da cultura negra né? Da coisa dos escravos, que, claro, tiveram sempre bastantes problemas para se cuidar, pra se alimentar né, pra sobreviver dos maus tratos e das próprias doenças né? Porque ninguém se preocupava com eles né? Quase uma sub-raça né? Então, eles tinham mesmo e o que, que consequência teve tudo isso? Ela ainda aliada a situações que se criam num circo, com grupos que mudam de tempos em tempos, em áreas diferentes, com, vamos dizer, desafios diferentes, e eles sobreviviam e saiam vencidos de toda essa batalha diária né? Então o que ficou foi isso né? Uma guerreira, sendo mulher ainda, porque com filhos mais tarde e tudo, que resolvia tudo né? Então esse lado realmente fez ela crescer, se fortalecer e se tornar uma super heroína né? Mulher que venceu o machismo venceu o racismo e toda essa problemática da mulher que acaba sendo o super-herói da casa né?
Salim: Inclusive ela foi criada dentro de um... A mãe dela mesmo, eu lembro dela contar que teve a Gripe Espanhola,  morreu gente...
Daise: Porque atravessaram as duas Guerras Mundiais né?
Salim: As guerras e também a Gripe Espanhola que dizimou a população aqui no Brasil...
Daise: Isso!
Salim: E ela, não sei se ia junto com a mãe, mas ia curar as pessoas...
Daise: Ia, é, isso.
Salim: Todo mundo fugia e elas...
Daise: E elas não. Porque a mãe dela era descendente de índios né, então você tinha ali duas culturas dessas pessoas, desse tipo de pessoa, que tem na natureza um aliado né? Então, a minha avó era também uma mulher muito corajosa que sabia inclusive manejar armas né? Então, de tempos em tempos, meu avô viajava muito, às vezes ao invés deles ficarem em barracas, quando eles estavam numa situação financeira melhor, eles ficavam nesses casarões no interior né? Fazendas até de café, ela lembrava disso também, que contava, então quando meu avô não estava em casa, minha avó ficava com as crianças, e se ouvia algum barulho no quintal a minha avó pegava a arma e saia, podia ser a hora que fosse, com a arma pra ver no cafezal  quem é que estava se mexendo. Então eram pessoas muito corajosas né? E ela foi criada nesse clima né, de enfrentamento de desafios né?
Salim: Você falou de cafezal né, que sua avó saia, e a tua mãe sempre café com leite e pão né?
Daise: (Risos). É.
Salim: Ela sempre se manteve saudável né?
Daise: Sempre se manteve saudável e imagina né, uma pessoa que tem um cafezal no fundo da casa né, entende de café, porque não é só ter né? Então a minha mãe era uma pessoa que o café com leite pra ela era assim um horário, tomar o café com leite era quase um ritual né? Então ela tinha aquela coisa de misturar quantia, mexer durante horas, ela então... E era engraçadinho porque, eu achava uma bobagem essa coisa que ela fazia, mas quando ela dava pra mim, que ela fazia pra mim o café com leite, era muito mais gostoso. Então a pessoa sabia direitinho a dose, sabia fazer o café, o leite da época dela não era qualquer um né, como o nosso, então ela sabia as diferenças né? Então, a partir de um momento quando ela começou a comprar coisas, ela sabia o que ela queria comprar né, e sabia o que preparar, então é essa coisa né, a panela sempre no fogo pra fazer a feijoada né? Não é aquela coisa que tem tempo pra fazer, parou, ‘não, não, apurar’, ela dizia. Ela sabia fazer bala né, que você vai esticando um monte de açúcar escuro que vai ficando branco né, de agrião, de caroço de mamão pra curar a tosse comprida, então ela fazia a bala que ela vendia no circo, que ela dava pra nós e que era remédio, e que era o docinho, enfim. Então essa coisa da medida, da quantidade, da dose, e tal né? E a gente via isso muito no jeito que ela mexia a xícara de café com leite né? Nunca, pressa, tudo muito lento, e aí o café com leite ficava aquela coisa especial né?
Salim: Agora, a parte assim dela no circo, o que você começaria a contar, da história dela no circo?
Daise: É a história da minha mãe no circo foi aquela coisa de... Começando com muito luxo, muito conforto, muita, vamos dizer um mundo fantástico no sentido positivo né? Pra depois cair numa realidade mais dura né? Porque, quando, a primeira grande crise que a minha mãe pegou, quando solteira, foi quando a mãe dela morreu porque o pai se separou dela e foi viver com outra mulher. Então, nessa época, logo que a mãe morreu uma sobrinha dela que chamava Noêmia [Liendo], que era uma jovenzinha né, que era filha de uma irmã de criação da minha mãe né, porque ela tinha os irmãos e tinha uma irmã de criação que chamava Cota, Cotinha, e essa irmã teve uma filha, que a minha avó e a família criaram né, e essa menina acabou sendo a segunda esposa do Genésio [Soares de] Arruda [Júnior], que era uma espécie de comediante, que fazia aquele gênero de caipira, que a gente teve no [Amácio] Mazzaropi né, e era um homem que tinha música, se tornou um grande nome de teatro, e se não me engano, até hoje existe a bandinha do Genésio Arruda, que os filhos dele deram continuidade. E aí ele já era já fazia viagens pelo Brasil e tal, e aí elas foram, a minha mãe e a minha tia, jovens, para o Rio de Janeiro, na época em que o rádio tava se tornando a grande mídia e tinha ali o [radialista] César [Rocha Brito] Ladeira, tinha os grupos de Cantores que acabaram fazendo muito sucesso, principalmente mulheres, Linda Batista [Florinda Grandino de Oliveira], Dircinha Batista [Dirce Grandino de Oliveira,] e tinha também, além disso, a Dercy Gonçalves [Dolores Gonçalves Costa] começando uma carreira, que um pouco cantava, um pouco fazia graça. A Hebe Camargo [Hebe Maria Monteiro de Camargo Ravagnani], e a minha mãe me lembra, por exemplo, que a Hebe Camargo era morena, tinha um cabelo comprido, a própria Dercy Gonçalves também era morena, enfim, e depois fizeram aquele sucesso no cinema. E nesse período tentaram a carreira de Cantoras na rádio, não deu certo, entraram no grupo, na Companhia de revista do Genésio Arruda, começaram a viajar, faziam muito sucesso cantando, porque cantavam muito bem. Minha tia tinha um ótimo ouvido, minha mãe tocava violão, a família, minha tia tocava bandolim, tocava violino, a minha tia Efigênia, que dizem que é o instrumento mais difícil. E aí elas tentaram tudo isso e acabou que não deu certo também, e voltaram pra São Paulo, e o circo foi retomado, mas aí já começou a decadência, por não ser a grande atração como divertimento do povo né? O rádio já estava tomando o lugar, foi quando ela, o irmão perdeu as pernas, e ela acabou criando o Palhaço Xamego né? Então, o Palhaço Xamego trouxe uma nova grandiosidade para o Circo Guarani como entretenimento, e porque era a principal atração do circo, mas as coisas não foram durante muito tempo assim, porque quando meu avô morreu, nós já estávamos morando, não estávamos mais viajando com o circo, não tínhamos mais barraca, fomos morar na casa do outro avô nosso, português, que era muito malvado, racista inclusive, e aí foi que minha mãe se transformou pra mim, no que eu entendo numa super-heroína né? Ela continuou trabalhando no circo porque ela adorava. Ela parou quando venderam o circo, que meu pai quebrou a perna, precisaram vender, meu pai ficou imobilizado durante anos, não tinha mão de obra masculina, e ela continuou no circo, mas ela teve que encarar as despesas da família, os problemas pessoais, o racismo, e tudo mais, doenças né, eventuais doenças e a nossa adolescência. E ali foi um período muito difícil, com despejo, não sabíamos onde morar. Ficamos morando numa casa que, a geladeira que se comprou não cabia, enfim.
Mariana: Ficava fora da casa?
Daise: Ficava fora da casa tomando chuva e a gente olhava pela janela, era uma casinha miudíssima né, tinha um quarto só, tinha minha tia Efigênia, eu, meu irmão, meu pai e tal, minha mãe. E aí, ela que era, e sempre foi a pessoa mais forte da família. Sempre. Mesmo depois de velhinha, ela era a pessoa mais forte, e até que depois dos noventa e dois anos... Daí parou, teve que parar com o circo, mas já tinha pelos meus cálculos, mais ou menos setenta anos, setenta e cinco né? Depois que parou definitivamente, mas nunca deixou de ser uma pessoa alegre, forte, com quem podia se contar né? Criou o neto né, filho do filho, que infelizmente faleceu aos dezoito anos. E até os noventa e dois anos, foi a alegria de todos por onde ela passava né, que a gente vê pelas lembranças que as pessoas tem dela, só coisa positiva. Até os médicos que cuidaram dela, os enfermeiros com quem ela cantou rap até o fim, a fisioterapeuta que lembra dela fazendo ginástica sem ela pedir né? Porque tinha muita facilidade, muita mobilidade, e muita disposição, e muita saúde, sempre, teve muita saúde a minha mãe né? (Risos).
Salim: Acho que ai entram as pessoas, entram...
Mariana: É.
Daise: É.
Salim: Quando elas [Irmãs Alves – Maria Eliza e Efigênia] foram lá na Rádio Nacional, elas tinham alguns números que vocês, que elas podiam falar pra vocês... Elas cantavam, elas faziam...
Daise: Elas cantavam. Elas cantavam né, não tinha nada, vamos dizer, de graça, era sério, eram números musicais né? Porque eu não lembro assim, exatamente, mas, acho que na época, a caravana, o grupo, a Companhia do Genésio Arruda se apresentava mais, tinha o número dele como caipira, que eu acho, que eu imagino que seja uma coisa como tipo Mazzaropi, e que ele se vestia assim né, mas tinha a bandinha e tinha atrações e uma delas era a minha mãe, Irmãs Alves, elas cantavam em duas vozes. E cada vez que elas contavam, a minha mãe e minha tia cantavam, pra gente ouvir né? (Daise começa a cantar) ‘tiptiptim, tiptim, tapatapatata, láláláláralá, tiptiptim, tiptim... ’, e claro elas já... (Daise continua cantando e passa a fazer movimentos com as mãos e pés) ‘tiptiptim, tiptim, tapatapatata, láláláláralá, tiptiptim, tiptim...’ que a gente sabe que existe, nós temos a letra aí tudo pra, pra gente depois reproduzir a canção né? E cantavam muito bem, e tinham isso, sabiam dançar, sabiam se enfeitar né? Então era uma mudança muito grande né, no caso da minha mãe, que era né, aquele homem engraçado, desconjuntado, baixinho e tal, e aquela da sedução, da voz maviosa, cantava, muito afinadinhas e tal né? É um barato. E isso tudo era fora do picadeiro pra mim né? Pra mim e pro Aristeu né, eu adorava né, tanto que eu, quando criança eu vestia roupas da minha mãe, da minha tia Efigênia, sapatos, aquelas coisas coloridas né? A gente tinha um Mágico que fazia perfume, e eu pegava todos né, aquela coisa toda colorida, brincava no picadeiro, na serragem sozinha né? Um barato... Também tinha uma magia né? Também tinha, embora, uma coisa mais triste e tal, mas vamos dizer, uma coisa mais pra tristeza né, porque decadência, mas a magia, eu acho que do circo, do picadeiro, tudo, eu brincava no picadeiro e pra mim tinha um monte de gente no picadeiro, quando eu tava ali né? Que é essa coisa, eu sempre tive isso né? Jardins também quando eu brincava, jardins de casas pra mim era castelo. Eu via rainhas, reis, danças né, toda criança acho que é assim né? Por isso que circo né?
Salim: Vocês tinham essa parte da música também né? Porque pô, vinham muitos cantores né, Luiz Gonzaga mesmo...
Daise: É Luiz Gonzaga era uma das grandes atrações, Cascatinha e Inhana também, na época do sucesso deles, na época inclusive que a Inhana faleceu, porque eles fizeram sucesso durante anos, eram casados... O circo ainda funcionava, o Circo Guarani. Foi uma tristeza grande porque as pessoas adoravam a dupla, e adoravam a Inhana que era descendente de índios né? Esse nome dela né? E eles cantavam... (Daise começa a cantar) ‘índia seus cabelos nos ombros caindo... ’, que até hoje né, o Ney Matogrosso [Ney de Souza Pereira] gravou né, essa música e tal. Então vinha também, você tinha a Caravana Do Peru Que Fala, que era o Silvio Santos né, hoje um grande sucesso na TV, ele jovem, mas já fazia um grande sucesso na rádio, e era uma loucura, era casa cheia na certa né, que se falava. E nessa caravana vinha inclusive o Ronald Golias, que foi um cara que fez muito sucesso na TV. Então ali, o período que a minha mãe conviveu com o circo da pujança e mesmo da, vamos chamar um pouco, não decadência porque é uma palavra muito negativa, mas... De quando, outras mídias foram ocupando as atenções populares, a rádio, depois a TV, teve um momento que o circo ainda convivia com essas mídias quase pau a pau né? Porque eram os grandes momentos do circo era quando vinha o pessoal de rádio e, tinha essa turma que já fazia sucesso, grande sucesso, e depois foi passando pra televisão gradativamente.
Salim: Você sempre me fala né, do Luiz Gonzaga, você fala das roupas, porque o Luiz Gonzaga, passando lá no museu dele, uma senhora que é a Diretora do museu falou que o grande prazer dele era tocar nos circos.
Daise: É.
Salim: Tocava duas, três vezes por noite...
Daise: Isso.
Salim: Em vários circos. Ia passando pelas cidades...
Daise: Isso. É.
Salim: Você me fala sempre da roupa, como é que ficou isso na sua cabeça?
Daise: Lindas! Lindas! O Luiz Gonzaga era um homem muito alto né, claro que nas proporções, porque eu era menina, criança, mas ele era muito alto, e ele era contagiante também. E ele sempre comentou, tem até o filme dele, que ele comenta, quer dizer, que comentam né, como o personagem dele, que ele gostava de ir no circo, porque era o contato direto que se tinha com o povo né? E ele vinha com roupas maravilhosas, de couro curtido, todas enfeitadas, então o chapéu, o instrumento dele era lindo, a sandália, as, tem um nome específico, que é um casaco que eu não sei bem como é que chama, porque tem uma coisa de vaqueiro no nordestino também né? Então esse tipo que ele usava no ombro, ele não vestia né, pra poder tocar a sanfona, mas numa elegância, sabe? E os que acompanhavam, tinha o zabumba, que eu me lembro de um homem alto, muito magro né, com pernas longas e que saltava assim, dançando... Eu me espalhava nas cadeiras e às vezes ele falava, ‘quem quer vir aqui dançar’, e eu queria ir, a minha mãe ficava brigando comigo... (Risos). Porque eu adorava né? Então era uma delícia, particularmente o Luiz Gonzaga, e é também, agora eu revivendo tudo isso, eu vejo porque, porque era a sanfona dele que tocava a música do Xamego né? E que fazia aquela coisa maravilhosa que você ouvia de longe o povo esperando o Xamego entrar né? Então, ele tinha mesmo essa coisa que... Essa música Xamêgo tem uma preparação né, que ele faz...
Salim: Canta um pedacinho só...
Daise: Eu não sei a letra direito, mas é... (Daise começa a cantar) ‘O xamêgo faz sofrer, o xamêgo faz doer, o xamêgo sempre dói, às vezes não, o xamêgo sempre rói o coração, todo mundo quer saber o que é o xamêgo, ninguém sabe se ele é branco se é mulato ou negro... ’ e aí vai... Eu não posso falar mais senão vou chorar. (Daise se emociona).
Salim: Mas aí esse negócio, assim... Foi escolhida a dedo essa música?
Daise: Eu acredito que sim (ainda com olhos marejados). Prestando atenção na letra, hoje em dia com mais apuro. E assim, vamos dizer, fazendo uma, puxando a memória, e tudo como foi né, que foi na base de um sofrimento e tinha que ter uma lógica né, pra criar o Xamego. Então até tinha essa coisa do feminino que não existia, o Palhaço Xamego não tinha traço feminino, não era uma mulher, não era uma Palhaça, era um Palhaço. Era uma mulher que fazia um Palhaço né? Um personagem masculino, com trejeitos engraçados, mas não femininos.
Mariana: E porque não uma mulher?
Daise: Porque, eu acredito isso é minha opinião, pode ser discutível porque hoje em dia discute-se muito toda a repressão que a mulher sofreu e sofre até hoje né, por ser mulher em qualquer profissão, em qualquer atividade, mas na ocasião, eu acho que minha mãe tentou substituir o irmão, um homem que era um Palhaço, assim, dando a certeza pras pessoas de que era um homem, tanto que ela escondia das pessoas inicialmente o fato dela ser uma mulher né, tanto, é exatamente até o que eu já falei, ela não se vestia não se travestia nada fora do camarim e só se arrumava pra entrar. Enquanto ela não entrasse, na entrada, que depois ela podia ter outras aparições, ela não ficava circulando de Xamego. E fazia parte do mistério, sim. Claro que muitas pessoas das famílias, provavelmente era o comentário, mas as pessoas que moravam no bairro, as pessoas de fora do circo não sabiam que era mulher né?
Salim: Porque ela estava substituindo o irmão.
Daise: Porque ela estava substituindo o irmão e essa figura, que na época, que é uma coisa que acho que era característica da época, que era a figura masculina e a figura que centralizava as atenções no circo. Então não tinha atrações de fora no tempo dela, depois sim começou Luiz Gonzaga, Silvio Santos e tal, mas na época dela e na época que ela começou, porque ainda tinha o resquício, era ela a grande atração e nos outros circos, do que eu me lembro até o momento da minha vida de menina, eram os homens né, então o Chicharrão, o Carequinha, o Bolachinha, entendeu? Era a grande atração. Era aquele que todo mundo queria ver, que queria que desse, tanto que distribuía o santinho né?
Mariana: Que não poderia ser uma mulher na época?
Daise: Eu acho que não, mas aí também no caso deles, além de ter, lógico, era o reflexo de que se fosse mulher não ia fazer sucesso, era o reflexo, só que não foi por pressão que ela não dizia que não era homem, foi por necessidade, vamos dizer isso?  Porque a necessidade era ter um homem Palhaço né?
Salim: Porque o irmão...
Daise: Porque o irmão, que era o homem Palhaço tava impossibilitado, porque até havia um sonho de voltar, de ele voltar, então, sei lá, vamos dizer, pros negócios né, numa coisa meio atualizada né, pros negócios não podiam saber que ela era mulher, não por pressão, mas é aquela pressão indireta né? Porque realmente a mulher, é uma coisa que a gente sabe, até hoje, em tempos, qualquer eleição se discute a coisa da mulher e não se pode chamar Dilma de Presidenta, porque não existe a figura ai vem no vocábulo é com E, é com A, que é uma coisa política né?
Mariana: Acabou aqui.
Daise: Não gravou a Dilma? (Risos).
Mariana: Então Daise parte três, take sete. (Claquete). Ação.
Salim: Bom, conversando você vai lembrando de algumas graças dela...
Daise: É.
Salim: Você falou daquela da gasosa...
Daise: É tem a cena da água né? Aí num contexto diferente, porque na da ‘gasosa’ ela fazia sozinha, na da água era a cena até de uma peça, enfim uma comédia que se repetia, que ela fazia aquele empregado inconveniente, e travesso e tal, matreiro e tal, aquela coisa, e ele... Ficava aquela confusão porque tinha um cara que ficou doente, que era velho e que ia morrer e ficava aquela correria e que treleu num leu passava mal e corria todo mundo pra salvar o doente. Daí numa dessas cenas, vinha o pessoal ‘uma água, uma água’, é aquela coisa que a graça é assim... ‘Uma água’ você, ‘uma água’ o outro, ‘uma água’ né, pra trazer, aí vem passando por todo mundo, quando chega na mão dela, ela tomava né? (Risos).
Salim: (Risos).
Daise: Entendeu? E tem umas coisas... Eu achava muito... Tinha umas coisas muito engraçadas. Eu, como plateia da minha mãe, eu ria muito, agora como filha, eu não achava graça não (Risos).
Salim: Conta o negócio da gasosa, conta que você não contou direito aquela hora...
Daise: Não foi bom?
Salim: Não. Você não contou direito e ainda contou errado também.
Daise: Contei errado? Não era assim?
Salim: Não era assim, era G-A, ga.
Daise: Ga o que?
Salim: G-A, ga, S-O, so, S-A, sa.
Daise: Ah, era a palavra mesmo?
Salim: É, mas só que ela quando...
Daise: Ela trocava...
Salim: Ela falava LI-MO-NA-DA.
Daise: Ah, sei lá.
Salim: Então conta direito aí.
Daise: Deixa eu ver se eu lembro, cada hora eu lembro de um jeito. (Risos). É um contexto de um bar.
Salim: Tá, conta, tem a outra história...
Daise: Tem a outra história, que era uma das que eu mais, essa eu gostava muito né, achava muito engraçada, e fazia muito sucesso e ela repetia essa história, então como ela sabia que a plateia gostava tinha uma coisa assim, ‘agora vou contar aquela’ né, porque quando ela sentava e ficava sozinha quieta e pegava a garrafa, o pessoal já começava a rir. Então, aquele contexto de bar, ela era um garçom, que sentava pra tomar uma coisinha escondida de todo mundo. Vestimenta diferente, mas de cabeleira, era o Xamego de cara pintada. E aí ela pegava a garrafa, claro que não estava escrito nada, mas aí ela lia ‘S-O’, não! Ah, lembra você!
Mariana: G-A.
Daise: Não era G-A.
Salim: G-A, ga.
Mariana: G-A-S-O-S-A, Guaraná.
Salim: G-A, ga, S-O, so, S-A, sa, LI-MO-NA-DA.
Daise: (Risos). Eu não sei contar.
Mariana: Formava uma palavra e ela lia outra.
Daise: É, mas eu falei do Guaraná, seu pai disse que tem que mudar.
Salim: Não era Guaraná era gasosa pô.
Mariana: (Risos).
Daise: Sim, ah era gasosa!
Mariana: (Risos).
Daise: (Risos). Como eu começo?
Salim: Conta tudo de novo o que você contou e fala...
Daise: Não, mas como que eu começo a piada?
Salim: Aí ela falava assim, ela tomava, aí fazia ‘ah’, né? Ai ela falava assim, ‘G-A, ga, S-O, so, S-A, sa, LI-MO-NA-DA’.
Daise: (Risos). Gasosa era a palavra que ela lia, por isso que eu ponho o Guaraná né? (Risos).
Salim: Você não lembra?
Daise: Ah, eu lembro que ela falava, ‘GA-SO-SA’, agora eu não lembro do jogo né, porque era um jogo.
Mariana: É, tudo bem.
Salim: Ah, então tá, L-I, li, M-O, mo, N-A, na, D-A, da.
Daise: É! GA-SO-SA.
Salim: Aí ela falava, ‘GA-SO-SA’, (Risos). É, era isso mesmo.
Daise: É, é essa que é gozada, é, vê como é diferente?
Salim: É limonada mesmo.
Daise: Pode contar agora? Posso falar?
Mariana: Vai. Pode.
Daise: Então, era um contexto de bar, ela fazia aquele garçom malandro né, com aventalzinho também e tal, tinha talvez alguma gravatinha aqui que mudava um pouco o tipo. Sozinha, na mesa, aí a plateia já começava a rir. Daí ela pegava uma garrafa e um copo, escondido, aquela coisa de quem está tomando escondido... Porque não pode, o garçom só tem que atender, não tem que beber. Aí ela pegava a garrafa, punha no copo, tomava, aquela coisa prazerosa, ela pegava a garrafa e falava ‘L-I, li, M-O, mo, N-A, na, D-A, da... GA-SO-SA’. Agora acertei. (Risos). Eu vi se vocês riram. Não! (Risos). Eu sou muito sem graça ainda bem que eu fui pra outro lado né? (Risos).
Salim: Agora ela, você falou né, que ninguém sabia que, com exceção do pessoal do circo, ninguém sabia que ela era mulher né? E inclusive isso tá registrado em livro né, a família Militello, que até trabalhou lá...
Daise: Então, uma coisa curiosa que faz a gente pensar que realmente era um segredo, até que algumas famílias, das grandes famílias que frequentaram o circo num momento, que tiveram seus circos naquela época né, da grandiosidade do meu avô, quando a minha mãe já atuava, não sabia que ela era, qual é a prova? Recentemente a gente ficou sabendo de um livro escrito pela filha [Dirce Tangará Militello], provavelmente do grande Militello, que devia ser contemporâneo do meu avô né? Vamos dizer assim, mais ou menos. Essa mulher que foi uma figura já falecida, mas recentemente né, em termos de história, de tempo, faleceu e tal, teve livros, foi uma figura da luta dos artistas e tal, criando entidades né, pra defender a classe. Ela escreveu vários livros, um deles chama primeiro sinal...
Mariana: Terceiro.
Daise: Terceiro Sinal, que também tem uma motivação interessante, porque terceiro sinal é o último que se dá pra começar o espetáculo e aí começa o livro né? Lindo! Aí ela faz o quê? Tem um item que ela põe PalhaçO, o título é PalhaçO. E ela descreve a cena muito comovente de um Palhaço que ela vê no camarim, veja, ela vai no camarim, quem vai no camarim não pode ser plateia, era gente de circo. 
Mariana: Mas ela vê atrás da lona né?
Daise: Sim, mas e daí, ela está sabendo onde olhar né? Entendeu? Aquela coisa da criança, mas não é qualquer criança. Então o que faz, ela descreve a cena, que ela está vendo escondida, em algum ponto... Nós já lemos muitas vezes o texto né, não lembro bem, mas ela vê o Palhaço, porque vestida de Palhaço, totalmente, dando de mamar pra uma criança, e ela descreve como um grande choque e, descreve a situação, que sim, você viu, sabiam que tinha um filho, tal, tal, aí talvez tenha sido aquilo, caiu a ficha né, que ela ficou assustada e era a minha mãe amamentando o meu irmão né? E você vê que tem, a coisa do tempo existe, porque ela devia ser criança na época, ela escreve o livro já adulta, e ela era talvez, um pouco mais velha que o Aristeu né? É um livro antigo, claro, mas é um livro, no caso aqui do que a gente está falando, que era uma coisa mesmo, praticamente um segredo de estado, na nossa família né?
Mariana: E as mulheres se apaixonavam pela minha avó né?
Daise: As mulheres se apaixonavam pela minha mãe, davam bilhetinhos pra mim, pra entregar pra minha mãe, ‘você dá pro Xamego porque eu quero encontrar com ele’, e eu ficava muito brava né? Mães de amiguinhas minhas né? E assim né, aí depois mais pra frente, eu me lembro sim, eu acho que eu já tava também mais adulta, enfim, a minha mãe começou né, porque um pouco já na fase final do Circo Guarani e mesmo da carreira dela porque foi, talvez até porque ela achasse que não ia mais trabalhar né,  porque minha mãe era antenada, ela no último espetáculo de cada praça, ela tirava a cabeleira. (Daise se emociona).
Mariana: Eu ia falar que era uma choradeira...
Daise: É uma choradeira até hoje né? Pra mim é porque eu sei o quanto doeu pra ela né, eu sei, porque depois ela, foi até onde deu (Daise continua emocionada, com os olhos marejados e a voz embargada)... E é engraçado, porque também tem uma coisa que eu preciso até pensar, ela fazia um número de Palhaço que era da, musical né, que o Aristeu tocava o violão, aí era mais o Aristeu mesmo. E ela tocava né? Com um guizo aqui, (Daise aponta a cabeça), guizo aqui (Daise aponta os pulsos), e aqui nos pés, e ela ia tocando né, fazendo, e a graça de Palhaço, ela ia de Xamego nesse, ela ia de Xamego.
Salim: Explica melhor como é que foi isso... As pessoas não entendem, como é que era?
Daise: Então esse número era um capote com notas musicais.
Salim: Como notas musicais?
Daise: Era uma espécie de sanfona. Toda dentro do capote e escondido. E o capote, como ela fazia de Xamego, era todo desconjuntado, a manga pra cá, (Daise indica o comprimento da roupa ultrapassando o limite da mão), até aqui, muito grande e já todo cheio de bolota né, porque eram as notas né? E a minha mãe sempre foi gordinha e também acho que exagerava no tipo pra ser mais engraçado. Ela ia de Xamego, mas a vestimenta era o capote que tapava tudo, tinha um guizo né, mas numa determinada nota, na cabeça, um num braço, em cada braço e um em cada perna. E aí a música era o meu irmão tocava então ela fazia... (Daise começa a cantar), ‘tátá’, assim, era assim, ‘tátátátá, tátátátá, tá, tá, tá’, e o Aristeu acompanhando né? Aí de novo, ‘tátátátá, tátátátá’, aí ‘tá, tá, tá’, aí depois ‘tátátátá’, aí já mudava a nota, mudava um pouco, mas não, os trejeitos eram menores, ‘tátátátá’, aí depois, ‘tátátátátátátátátátá, tá, tá, tá’, que era a grande graça né?
Mariana: Vai ter que parar?
Daise: É, era isso, e esse era...
Mariana: Como é que era o numero mãe?
Daise: Então, o número era assim, tinha um guizo na cabeça, tipo coroa, num braço, no outro, numa perna e noutra, e ao longo do capote tinham as notas musicais, que ela ia usando pra dar a graça né? Então a música era essa. (Daise canta e dança). ‘tátátátá, tátátátá, tá, tá, tá’, aí entrava outra nota, que eu não lembro onde era, ‘tá’, vamos dizer, ‘tátátátá, tá, tá’ (Risos). Aí vem, ‘tá, tá, tá, tá, tá’, entendeu? Então era aí, e ela ia fazendo né, e tinha hora que ela fazia assim, aí assim, na barriga, e a grande graça era na bunda né? E era muito engraçado né? E ela teve esse capote, ela que construiu, porque a minha mãe montava né, vamos dizer, sei lá, a escala musical, vamos dizer assim né, que era isso mesmo, e elas criavam, porque eram as coisas que eu digo o artista circense até hoje é assim cria o número, faz os seus aparelhos, cuida né, mantém né? Então tinha esse lado assim, e eu acho se puder falar mais, que ela se apresentava, a partir do momento que ela parou de fazer o Palhaço, que parou de ter o circo, ela ia nos lugares, porque aí já tava começando a coisa da televisão, tem aí talvez um probleminha de data, mas já era mesmo, porque eu cheguei a fazer um número, com meu irmão, no, como é que era aquele, um programa de sábado que tinha, que era infantil, que você diz que assistia? (Daise pergunta para Salim). Acho que no canal quatro. Você lembra que já conversamos sobre isso?
Salim: [Programa de TV] Clube do Papai Noel?    
Daise: Era acho que isso, Clube do Papai Noel, acho que era de sábado à tarde, acho até que era ao vivo na TV Tupi...
Salim: Era tudo ao vivo. Tinha também o [Programa de TV] Pullman, como é que era, Pullman Júnior.
Daise: Isso! Então, tinha já os circos infantis, que os artistas já começaram a ir, porque né, a transição, e tinha eu acho já o Circo do Arrelia na TV. E aí a minha mãe tentou, e acho que se apresentou, fez esse número dos guizos lá, porque ela fazia né? Mas não deu em nada né? Chamavam muito raramente. Porque, aquela coisa, enfim, ela tentou mesmo né? Minha mãe era guerreirona né? Fazia desfile, uma vez ela fez o desfile em Santos, uma carreata do circo, até passou mal, porque essa roupa dela era de lã né? Teve uma queda de pressão e tal. Então ela fazia, e depois que ela, que eu já tava, eu não sei não, depois de casada já, não sei se a Mariana já era nascida, ela ainda ia no circo. Enquanto ela morou no [bairro] Edu Chaves ela ia no circo. Ela veio morar aqui quando a Mariana fez dois anos né? Ela ia. Não sei depois né? Porque também a minha mãe, ela morava ali, mas a gente não sabia aonde que ela ia, porque eu trabalhava, (Daise aponta para Salim), você trabalhava né?
Mariana: Quando eu falei choradeira aquela hora, porque você contou que quando ela tirava a cabeleira era uma choradeira, não nossa, mas da plateia...
Daise: E eu chorei né?
Minehira: E ela [Dona Eliza] alguma vez já contou, ou tinha comentado com a senhora sobre essa paixão pelo circo? Porque depois teve uma época que ela saiu do circo né, e como ela ficou? Ela falava o que significava o circo pra ela?
Daise: Não, não tinha isso. Eu acho assim. Como até eu acabei contando agora. A minha mãe viveu essa coisa do circo praticamente a vida dela inteira. Eu não posso dizer pra você com certeza quando ela parou, porque ela ia sozinha trabalhar. Ela se mantinha, ela tinha contatos com todo mundo, sabe? As pessoas vinham na casa dela, eu encontrei uma vez aqui perto de casa, depois que a minha mãe morreu, um cara, que frequentava a minha casa, cuja família era de circo, Itoquena, Quarema, eu não lembro o sobrenome deles, acho que era Savalla, até guarda esse nome (Daise fala para Salim), porque acho que eram os Savalla, e ele veio e falou pra mim, ‘me diz uma coisa, você tem alguma coisa na sua vida em relação a uma senhora que chamava dona Eliza que era de circo?’, eu falei, ‘ela é minha mãe’, e ele, ‘meu Deus, você é filha da dona Eliza, você é a cara dela’, enfim, então... E ele era um menino quando frequentava a minha, falava que conversava com a minha mãe, e essa vez que o encontrei ele estava velho, eu não o reconheci, mas ele disse que vinha visitar ela aqui... Vai saber, entendeu? O que você quis dizer?
Minehira: No sentimental, o que significava o circo pra ela, ela não falava nada?
Daise: Nunca falou, nunca falou porque eu acho que ela nunca tirou o circo da vida dela, era isso que eu queria dizer. Sabe? Nunca foi uma coisa, ‘ah, oh, acabou, que pena’, não, porque ela manteve até onde deu e eu não sei até quando foi a vida trabalhando no circo. Ela ensaiava as crianças, ela ia nas matinês, ela, minha mãe saía e não dizia pra onde ia sabe? Uma vez ela foi, operou, voltou pra casa e tinha sido operada. (Risos). Ela era uma pessoa né, como é que eu vou dizer? Assim, ela resolvia as coisas dela com ela mesma, não precisava de ‘ah, vamos lá minha netinha, minha filhinha... ’, não tinha isso, era o contrário, entendeu? Eu chamava minha mãe pra ir comigo, mas nunca ela me chamou né? Nossa, foi só quando a coisa pegou mesmo. Mesmo quando ela envelheceu mesmo, você lembra? (Daise pergunta para Salim). Não tinha isso. A minha mãe teve quatro derrames na minha frente. (Daise se emociona), e foi andando pro hospital, entendeu? Né? A minha amiga me falou, ‘AVC, não dá um só, são quatro, e um pior que o outro... ’, e o último nós levamos ela pro hospital e na metade do caminho ela falou, ‘gente, o que vocês querem? Eu não tenho nada’, e o braço que estava assim (Daise simula o braço paralisado), já estava normal né? Minha mãe era... (Daise fala com Thyago, o fotógrafo). Seu padrasto sabe tudo o que ela comia. (Risos). Ela tomava guaraná em pó que eu sei uma época.
Mariana: E Biotônico Fontoura... (Risos).
Daise: (Risos). E Biotônico Fontoura, litros e litros, toda hora ela falava, ‘você não quer comprar pra mamãe?’, o Salim falou, ‘Daise, tem álcool... ’. (Gargalhadas).
Salim: Ela tomava no gargalo...
(Risos).
Daise: (Gargalhadas). A minha mãe era uma figura! (Risos). Não era? Você sabe disso. Minha mãe nunca pediu nada, sabe assim? A pessoa, ela resolvia tudo sozinha, não tinha, a gente ia fazer exame, eu, ela e a Mariana, os médicos vinham chamar para dar o resultado e falavam assim, pra Mariana... (Daise estende a mão simulando a saudação do médico). ‘Dona Maria Eliza, a senhora está ótima!’ (Risos). Só ela não tinha nada, a Mariana tinha, e eu também, e ela não tinha nada. (Risos). Verdade era assim.
Mariana: Pensei só no, que você não contou, que ela era mãezona, que te dava bronca mesmo no picadeiro.
Daise: Então, quer que eu já conte? Ou o papai precisa perguntar?
Mariana: Não.
Daise: Então, aí é o seguinte né? Eu era assim toda recatada com mamãe e com Xamego, mas quando me sentia solta no circo eu era triste, levada, careteira né, afinal, acho que sou até hoje, a Mariana fala isso, e aí eu me espalhava né? A minha mãe estava lá fazendo a entrada, e eu vendendo as balinhas né? Fazia aquele estilo guarda-chuvinha e vendendo pipoca, enfim o que tinha pra vender, ‘agora você vai vender isso aqui’, aí eu ia lá, aí ela ia falar as coisas, aquele silêncio, o pessoal esperando o fim da piada. (Risos). E eu, ‘olha a pipoca... ’ (Gargalhadas). Igual ao cara ontem, ‘olha a pipoquinha... ’, ela olhava pra mim e fazia, ‘pssssiu!!’ (Risos). Eu nem via, eu só ouvia, era sempre comigo. (Risos). ‘Olha não sei o que... ’, ou então, ‘quem vem aqui?’, e eu falava ‘eu, eu, eu!’, e ela ‘psiiiu!’ (Risos). Era muito engraçado, eu era super levadinha.
 (Fim da entrevista).

Sr. Dantas



ROBERTO SOUZA DANTAS
DIA 11 / SONY 100
Roberto: Estamos prontos.
Daise: Vamos lá?
Mariana: Vambora!
Daise: Senhor Roberto Dantas o senhor é filho do primeiro Embaixador negro que o Brasil teve na África. O que o senhor poderia contar sobre essa convivência que o senhor teve nesse mundo, como foi essa coisa do negro brasileiro representando o Brasil, e esse conhecimento da África que a gente não tem?
Roberto: Olha, meu pai não foi um Embaixador de carreira, um Diplomata de carreira, [Embaixador] Extraordinário e Plenipotenciário, foi nomeado pelo Presidente Jânio Quadros em mil novecentos e sessenta e um. Primeiro ele foi Oficial de Gabinete né, na época os Assessores do Presidente eram chamados de Oficiais de Gabinete, e também ele foi o primeiro negro a assessorar um Presidente da República diretamente, apesar né, da história do Jânio Quadros que nós sabemos, a renuncia aquela coisa toda, mas teve esse aspecto. E Jânio Quadros era um homem de impactos né, então o nomeou, mas tem um pouquinho antes dessa história, temos por trás algumas pessoas que eu não posso deixar de cita-los Afonso Arinos de Melo Franco, que era um grande amigo dele que já tinha o convidado para ser Suplente a Senador, e por questões políticas na época da UDN [União Democrática Nacional] aquela coisa toda, ele não aceitou, e teve esse convite né, do Presidente, e depois foi para África. Um fato assim extremamente interessante que eu posso conversar com vocês porque Jânio Quadros renunciou numa sexta-feira, e no sábado, nós embarcávamos pra África, e nós não fomos pra África naquele sábado fatídico né? Sexta-feira fatídica da renuncia de Jânio Quadros, então demorou um pouco, aquela crise política até né, o Presidente João Goulart tomar posse, aquela coisa toda, então meu pai chegou à África em outubro de sessenta e um, e nós chegamos a África, nós fomos em dezembro né, tivemos que terminar, eu e meus dois irmãos, terminarmos o ano letivo e nós chegamos a África em dezembro. É uma experiência maravilhosa porque você sai do Brasil com um pensamento de África completamente diferente, e quando você chega no aeroporto, o negro te recebendo na, na, na alfandega digamos assim né, você chegando, vendo as pessoas, até eu... Primeiro nós passamos em Dakar né, que não tinha um voo direto até Gana, Rio de Janeiro – Dakar. Ficamos dois dias em Dakar e depois descemos pra África né, pra Gana, passamos primeiro pela Libéria, depois Acra e era um voo da Panamerica que ia até a África do Sul, e no que nós chegamos em Dakar, eu não conhecia o Islamismo, e nós... Eles pararam uma hora lá levando as malas e começaram a rezar né? Porque o mulçumano reza cinco vezes por dia; então esses contatos todos foram muito interessantes, e vendo negros bem altos, mais fortes, e a cor, é um negócio assim que vocês não podem imaginar, nós somos completamente diferentes deles, e hoje eu sou neto né, bisneto de portugueses essas coisas todas, já tem uma certa mistura, e lá não, eles são puros. E esse contato, que a África estava se tornando né, houve um, um grande, que Gana foi a primeira colônia Britânica né, a torna-se independente em mil novecentos e cinquenta e oito. Em sessenta e um houve uma série de países independentes tanto da África de influência inglesa, África de influência francesa, e também tínhamos até a problemática do Congo Belga quando foi assassinado Patrice [Émery] Lumumba, então chegamos na África nesse rebuliço né, libertário. Isso foi uma grande experiência que eu tive. E também uma coisa que nós perdemos no Brasil, o patriotismo, o africano é extremamente patriota, ele ama o país dele, ele ama a terra dele, apesar que a África, quando você tem contato, a África foi fragmentada por interesses econômicos, então você vai ter Gana e Togo, é a mesma etnia, são ashantis né, e foram divididos em dois países. O Togo né, na época, primeiro foi da Alemanha e depois da Primeira Guerra Mundial ficou com a França, Gana com os ingleses, Guiné-Bissau com os portugueses, e a Guiné-Conacri com os franceses, então tudo isso. E o interessante da África, só dois países que não foram colônia, a Etiópia milenar, Etiópia milenar e a Libéria que foi uma empresa americana que comprou aquela terra e para levar de volta os... Era um incomodo né, na, pelo Presidente [Joseph Saidu] Momoh, aquilo era um grande incomodo, ex-escravos libertos lá dos Estados Unidos [da América], então compraram aquela gleba, e levaram os negros para lá, a Libéria, então nós tivemos aqui há alguns anos atrás uma guerra civil na Libéria terrível porque o nativo da região foi dominado por ex-escravos americanos, acontece que eles vinham de várias, eram negro mandigas que é de Gambia né, e lá não era essa etnia, então essa coisa toda eu comecei a aprender na África, o que é etnia né, aquelas marcas tribais que eles tinham, essas coisas todas e também os dialetos né? A mandana assim pro pessoal de Acra, eles não estavam falando em inglês, eles estavam falando os dialetos né, o twi que é o dialeto mais falado em Gana, o gah, e tinha também os ashantis né, que é um povo guerreiro, um povo maravilhoso que mora, que são do norte da África, tem uma grande influência... Nós temos até, dos jogadores de futebol que competiram né, aqui na Copa do Mundo os Boateng, um [Jérôme Agyenim Boateng] competiu pela Alemanha, e o outro [Kevin-Prince Boateng] competiu por Gana, são os Boatengs, são uma família de grande influência, são grandes agricultores do cacau né, são os ashantis. Então você vê essas coisas, o pai casou com uma alemã né, um preferiu a cidadania alemã, e o outro preferiu a cidadania ganesa, que é extremamente interessante. Então a África, para nós conhecermos a África, não adianta nós conhecermos a África pelos livros né, por filmes, nós temos que estar lá para ver o que é. E o que foi também o colonialismo, que foi terrível o colonialismo na África. A população de Angola, oitenta por cento da população de Angola era analfabeta, Guiné-Bissau quando se tornou independente tinham oito pessoas com o nível superior, entre eles né, que infelizmente morreu antes da independência de Guiné-Bissau, que era o Amílcar [Lopes] Cabral, era um engenheiro agrônomo né, e quando ele voltou, estudou em Portugal, e quando ele voltou pra África, ele viu o que foi espoliado né, o que foi a ditadura de [Antônio de Oliveira] Salazar né, os portugueses foram os últimos a tornarem suas colônias independentes, Moçambique, Angola e depois tivemos guerras civis lá, então ficaram quatrocentos anos na África, e não deram nada né, só exploraram, só exploraram. Então você vê essas coisas todas né? Então Gana na época tinha o Presidente Kwame Nkrumah, o libertador, então ele queria né, que lá emanava né, todo o aspecto libertário, e quando nós estávamos lá o, o Fanon né, o [Frantz Omar] Fanon esteve lá, participou da Guerra da Argélia né, foi um grande teórico Marxista, e todas essas coisas, ia, esteve em Gana, Amílcar Cabral, morava em Gana o pessoal libertário de Guiné-Bissau e Cabo Verde, como falavam português nós tivemos um contato muito grande com eles, e essas coisas todas. Então essa experiência que eu tive foi muito boa. E nós estudamos, meus irmãos estudaram na Internacional School, que é uma escola especifica para filhos de Diplomatas, como eu já tinha dezesseis, quinze para dezesseis anos, quatorze para dezesseis, quinze anos, eu estudei em uma escola chamada Ashimota College, mas nós tivemos um problema lá na África com a malária. O africano tem quatro, cinco malárias na sua vida, e minha irmã pegou a malária e ela teve umas convulsões e os médicos acharam melhor... Então a minha experiência, eu fiquei oito meses só na África, mas tive né... E meu pai ficou três anos, mas eu tive esse conhecimento digamos também a... Desculpa... Eu tive é... Tá me fugindo uma palavra, eu tive... Eu vi o valor de ser negro, o conhecimento. Vocês sabem né, que o racismo né, o embraquecimento, apesar que eu sou casado com uma branca e isso não tem nada haver, mas os aspectos culturais no Brasil né, então eu adquiri a minha negritude né, o meu orgulho de ser negro lá na África, eu não tive o orgulho de ser negro aqui no Brasil quando né, a minha educação toda acontecendo aqui, mas lá eu aprendi o que é ser negro. Isso aí todos os jovens que tem oportunidade, não precisa ir para a Europa, vão à África primeiro, e vocês vão ver o que é. Quer dizer que a África também foi dilapidada, esquecida depois né, da Queda do Muro de Berlim, largaram a África, não tinham mais interesses ideológicos. Quando eu estava lá o [cosmonauta] Iuri [Alekseievitch] Gagarin né, visitou Gana né? E Anastas Mikoyan que era o Presidente da União Soviética esteve lá. O que que o Estados Unidos fez? Mandou Louis [Daniel] Armstrong, esteve lá em Gana né, o Satchmo né? E levou uma equipe de campeões olímpicos de mil novecentos e sessenta, que a olimpíada foi em Roma, levou aqueles campeões olímpicos né, [Harold] Ralph Boston, teve um atleta mais completo, Rafer Johnson, um atleta espetacular, um decatleta né? Então eles foram lá, então eu pratiquei atletismo assistindo uma competição na Universidade de Gana desses atletas americanos, então eles faziam isso né, levavam, os Estados Unidos, apesar daquela, do racismo dos Estados Unidos, a segregação racial que estava no auge né, sessenta e um, sessenta, quando as grandes manifestações de Martin Luther King [Junior] estavam começando né, na época em sessenta, sessenta e um, a grande jornada né, de Luther King, Andrew Young, aquele pessoal do poder negro né, Stokely [Standiford Churchill] Carmichael, o pessoal do Malcolm X [Al Hajj Malik Al-Shabazz], Malcolm xis né, do Islamismo, essa coisa toda estava fervilhando, então eu hoje né, eu tenho essa consciência, dessa hipocrisia que acontecia né, uma hipocrisia dos Estados Unidos com aquela segregação toda levando né, os negros para lá. Quem não gosta do Louis Armstrong? Um artista maravilhoso né, mas servindo né, a política americana na África. A União Soviética também enviando né, o Iuri Gagarin, o Anastas Mikoyan visitando a África, aquela coisa toda. Essas coisas você começa a ver né, esse distanciamento. E como eu estava falando, uma época, com a Queda do Muro de Berlim esqueceram a África, então as guerras civis, nós vimos aquele, aquele grande massacre né, dos hútus com os tutsis né, em Ruanda, o mundo virou as costas, morreram mais de oitocentas mil pessoas, quer dizer viraram as costas para a África, hoje estão voltando né, mas é muito pouco só porque a África tem um solo muito rico, o Congo é o maior, é uma das maiores reservas de urânio do mundo, e tá, essas coisas todas estão voltando, mas largaram a África. Mas nós tivemos uma ação libertária muito assim com a Queda do Apartheid né, com o aparecimento... Apesar que Nelson [Rolihlahla] Mandela, quando eu estive na África, nós já conhecíamos o Nelson Mandela, já sabíamos quem era Nelson Mandela, nós começamos a conhecer Nelson Mandela aqui na década de oitenta, quando já tava preso e essas coisas todas. A salvação da África é a Namíbia né, e a África do Sul com a sua economia forte que tem, tem muita gente indo pra lá, mas o caso da África do Sul, o Apartheid, o negro ainda não chegou o patamar, ele tá muito abaixo dos bôeres né, dos brancos né, os africâner, os africâneres né, que fizeram essa política de mil novecentos e quarenta e oito, terrível, dentro, dentro do território africano temos o Apartheid, o negro, o nativo não podia sair da sua aldeia, isso é um crime, é um crime que o mundo viu... Como foi um crime também o Holocausto que o mundo viu e virou as costas para os judeus na época. E também viraram as costas para os negros na África do Sul né? Nós tivemos essa pessoa maravilhosa que deixou, que eu digamos né, na época de jovem eu queria que o pau comesse lá, tivéssemos uma guerra civil entendeu? E meu pai uma vez falou, ‘não, a África do Sul é do africano branco que esteve lá né, que estava lá desde mil e setecentos, mil e oitocentos né, e dos negros, eles ajudaram a criar esse país’. E Nelson Mandela conduziu isso muito bem, porque teríamos um derramamento de sangue assim, não só na África do Sul como na Namíbia que também tinha um regime muito parecido né? Outra coisa que eu posso falar com vocês, sobre o Zimbábue, antiga Rodésia do Sul, teve um regime estilo Apartheid né, um regime, fizeram áreas, fez uma, uma revolução digamos lá, de minoria branca, estilo né, patrocinado pela África do Sul, e hoje até, claro, o Robert Mugabe né, tá quase quarenta anos né, como ditador, noventa anos e ainda é né, o ditador de Zimbábue, mas em muita coisa ele tá certo, na divisão de terras né, porque o negro não tinha o direito a terra lá, então tem essas coisas todas que às vezes né, às vezes nós criticamos os líderes africanos, mas eles tiveram esse aspecto né, essa parte toda. No Quênia né, [o Presidente] Jomo Kenyatta também livrou o Quênia também de uma guerra civil, por causa dos mau-maus, e ele, quando o Quênia tornou-se independente falou, ‘esse país é de brancos’ , ‘e quem quiser, vier ajudar o Quênia’ né? E o [Presidente] Barack [Hussein] Obama é descendente de queniano, então tem essas coisas todas que nós precisamos ver, então é isso que eu tenho que dizer, a minha, o meu orgulho de ser negro começou lá. Agora eu tenho um problema pessoal, eu fui criado, nascido e criado no Leblon, hoje é um bairro, na época era um bairro mais bucólico essas coisas todas, a maioria dos meus amigos eram brancos, na escola onde eu estudei o Colégio Rio de Janeiro ali em Ipanema, tínhamos quatro negros estudando, eu, meu irmão, minha irmã e um que era filho de criação de uma família de ingleses, então eu não tive muito essa convivência, eu fui ter o contato, tinha o contato com os negros e meus familiares lá na Bahia e tudo, mas o contato com negros quando eu fui praticar atletismo, Aída [Menezes] dos Santos, conheci o Adhemar [Ferreira da Silva] né? Não sou da geração dele, mas tivemos esse contato. Então tem esses aspectos também né, que você precisa analisar o negro de classe média, então ele vai viver em Moema né, aqui em São Paulo certo? Ele não vai morar lá na Cidade Tiradentes, e a Cidade Tiradentes é o local que tem maior, em termos percentuais, é o bairro que tem o maior número de negros é a Cidade Tiradentes. Isso foi uma pesquisa feita pela Secretaria da Igualdade Racial, na época o Netinho [de Paula] né, era Secretário, eu não sou contra ele, mas deveríamos colocar uma outra pessoa na Secretaria né? A Matilde [Ribeiro] poderia ser a nossa Secretária né, mas não é, mas tudo bem, isso aí faz parte da política. E fiz uma pesquisa, no ano passado, a semana da consciência negra, tiveram as maiores festividades lá na Cidade Tiradentes, e você vai lá na Cidade Tiradentes é terrível né, assim em termos, é uma cidade dormitório né, e a maioria de negros estão morando lá para vir trabalhar aqui na zona sul. Agora tão fazendo né, o Expresso Tiradentes né, o monorail né? Pra quê? Pra nós irmos trabalhar lá, aqui em Moema, essas coisas todas, eu não sou contra Moema não, bairro belíssimo, os Jardins né, mas você não vê negro morando lá né? (Risos).
Daise: Então a gente pode dizer senhor Roberto, que esse contato que o senhor teve, todo esse choque, todo esse conhecimento, todo esse orgulho fez o senhor se interessar bastante pela problemática do negro, assim, vamos dizer, comparando o que o senhor conhecia da história que a gente acha que é uma visão do branco essa coisa, por exemplo, da abolição, essa problemática de como foi, essa transição do branco que era escravo e depois ficou sem um emprego...
Mariana: Do negro que era escravo.
Roberto: É.
Daise: Desculpa, errei agora, do negro que era escravo e de repente a abolição acabou sendo um problema econômico né, um problema social. Então a gente aqui tá interessado um pouco nessa época que eu acho que o senhor vai dar uma visão diferenciada pra gente, de tudo que a gente leu até hoje né, que é a visão de um homem que viveu por causa dos antepassados, que tem aqui a história no Brasil, mas que foi pra África pra saber vamos dizer como é realmente o mundo do negro, aquele negro até que saiu de lá em um momento da vida, e veio pro Brasil e foi escravizado. É esse período que a gente se interessa um pouco porque o meu avô João Alves tem uma história dessas né? Ele nasceu em mil oitocentos e setenta, mais ou menos...
Roberto: Ventre Livre.
Daise: Na lei que era a Lei do Ventre Livre, nasceu um negro livre, mas filho de escrava, e pegou toda essa problemática da transição. Como o senhor vê como um homem negro esse... Como é que... Que problemas este jovem, este rapaz pode ter enfrentado?
Roberto: Olha, a Lei Aurea né, são quatro linhas né, decretando o fim da escravidão. O Brasil foi o último país ocidental a libertar seus escravos, e foi por uma influência, por causa da Revolução Industrial que estava acontecendo na Europa. Os produtos manufaturados principalmente britânicos chegavam aqui, então houve esse aspecto, só que o caso é que não tiveram uma política né, uma política pública para pegar esses escravos, então você está liberto, você vai embora, então aconteceu o quê? As favelas no Rio de Janeiro né, esses guetos, nós caímos numa marginalidade, a palavra é dura, mas nós caímos numa marginalidade, tudo de ruim, principalmente quando chegaram os imigrantes para substituírem, só que esses imigrantes vieram, sofreram não vou dizer que não, mas não sofreram o que o povo africano sofreu aqui como escravo, então ele tiveram glebas essas coisas todas, então... Outra coisa teve uma diferença muito grande da abolição da escravatura nos Estados Unidos na época do [Presidente] Abraham Lincoln para nossa. O negro recebeu uma indenização, ele ganhou uma carroça, uma gleba de terra né, e um burro para puxar a carroça e alguma coisa; só que aconteceu o racismo nos Estados Unidos, a segregação que os racistas do sul pegaram uma deixa na constituição americana. Aqui nós não tivemos nada disso, então as pessoas que conseguiram sobreviver no inicio do século passado, ou no século vinte, ou no século dezenove né, quando foi a libertação dos escravos, são verdadeiros heróis, são verdadeiras pessoas que numa adversidade daquela conseguiram sobreviver e bem né? E isso vai até mil novecentos e trinta, quando tem a Revolução de 30 que o Brasil deixa de ser né, um país rural para ser um país urbano, isso com a entrada de Getúlio Vargas né, a ditadura de Getúlio Vargas, depois o Estado Novo, aquela coisa toda, são duas modificações, quando acontecem os grandes movimentos, então digamos, nós tivemos o partido comunista abrangeu e trouxe muito negros, o meu pai fez parte do partido comunista né, foi uma parte política, o Abdias Nascimento, isso nós já vamos chegar na década de quarenta, meu pai chegou no Rio de Janeiro em quarenta e um, semianalfabeto, Abdias chegou antes, mas já era formado, então tivemos pouco né? Podemos ver a história de [Luís Antônio da] Gama e Silva né, que é uma história terrível, ele nasceu livre, o pai vendeu ele para ser escravo, depois foi um grande jurista né, Gama e Silva né? Então essas pessoas do início do século né, até nós... O Ruy Barbosa [de Oliveira] né, é muito questionado quando mandou queimar aquilo tudo, aquilo é para o Estado, que os proprietários de escravos né, iam acionar a União para ter benefícios financeiros né, porque eles perderam os seus escravos né, então compraram né, e tal, aquela coisa toda, estavam perdendo de graça, então eles iriam entrar com ações na União né, para ter o ressarcimento daquilo, por isso, é uma das causas, é essa né, a queima dos arquivos. Foi terrível pra gente porque digamos que eu não sei da onde que eu vim, meus descentes vieram se vieram de Angola, se vieram né, se eu sou banto, sou sudanês, eu não sei o que eu sou. Eu não sei se eu sou ashanti, nem vocês, nós não sabemos qual a nossa etnia, nós perdemos essa oportunidade, nós nunca vamos ter uma obra como Negras Raízes né, nós não vamos ter uma obra igual aquela aqui. Porque os arquivos foram queimados, nós temos os sobrenomes dos nossos, infelizmente dos nossos senhores, dos nossos donos, Souza Dantas, o que seja. Nós não temos os nomes africanos como Barack Obama tem, ou alguns americanos têm, nós não temos isso né, os africanos, os nomes africanos, eu conheci uma família tradicional de Serra Leoa né, os Tobuscus, até um deles estudou aqui no Brasil, mas voltando, eu tô fugindo um pouco, voltando aqui, esses negros foram grandes heróis, foram alguns comerciantes, outros artistas, escritores, mas teve ajuda do branco, nós não podemos jogar isso fora. Algumas pessoas com outro tipo de consciência, como eu posso falar do meu pai que chegou ao Rio de Janeiro em mil novecentos e quarenta e um, semianalfabeto né, mas ele teve algumas pessoas que o ajudaram muito, e uma dessas pessoas chamava-se Graciliano Ramos [de Oliveira]. Foi um grande amigo do meu pai, eu tenho livros aí, depois eu vou mostrar pra vocês, autografado porque quando ele arrumou um emprego para ser Faxineiro né, de uma editora que pertencia a Graciliano, ao Joel Silveira, aquele pessoal todo, e meu pai conta no livro que ele foi uma pessoa, foi tratado jocosamente, e aquele intimidação, ‘o cara não sabe lê, dezessete anos e tal’, e ele tornou-se um autodidata, e a única pessoa que não fez isso com ele foi Graciliano Ramos, ele falou, ‘olha, tem muitas pessoa que são... ’, isso ele narra no livro dele, ‘que no começo de vida, que foram analfabetos, e hoje são grandes intelectuais’, e foi Graciliano Ramos. Depois teve o José Lins do Rego [Cavalcanti] né, Josué [de Sousa] Montello, essas pessoas todas, até o [Marcus] Vinícius de Moraes, e o outro é uma pessoa que também não podemos que eu não posso esquecer de jeito nenhum na formação dele foi Aníbal [Monteiro] Machado, o pai da Maria Clara Machado né, essa escritora grande aí, e foi até padrinho de casamento do meu pai, e ajudou ele também, quer dizer, ele... Os negros, às vezes, na maioria das vezes, foram auxiliados por pessoas né, por brancos, mas com outro tipo de visão né, se nós talvez não tivéssemos essas pessoas, nós não conseguiríamos muita coisa não. Temos que dar também né, não vamos, digamos como Malcolm X, Malcolm X falava né, ‘porque eu odeio os brancos’, você não pode chegar a esse grande radical né, que hoje o Brasil é um país realmente, extremamente miscigenado, eu posso falar pessoalmente, o meu avô era filho de portugueses né, minha avó, a mãe da minha mãe né, por parte da minha mãe era uma negra lavadeira ali da Lagoa do Abaeté, negra belíssima, eu tenho uma única foto dela, eu né, nasci e tal, minha esposa é descendente de croata, croata, português, italianos, e quem são meus filhos? São brasileiros. (Risos). Tem sangue de tudo que é... Agora sobre esses grandes heróis do início do século passado nós temos que realmente é, não esquece-los né? A memória deles não ser esquecida, porque as pessoas são muito esquecidas, esquecem muito rápido as coisas aqui no nosso país, e na Europa você vê [Miguel de] Cervantes [Saavedra] né, foi descoberto agora os restos mortais dele, morreu em mil e seiscentos, quer dizer essa coisa toda nós não podemos, nós negros não podemos perder de jeito nenhum dos nossos grandes heróis Abdias, Gama e Silva né, nós não podemos perder essas pessoas. Adalberto Camargo que foi o primeiro Deputado negro do país aqui de São Paulo, um grande empresário né? O rei do táxi aqui em São Paulo, foi para os Estados Unidos e trouxe, foi a primeira pessoa que trouxe o leasing pro Brasil, isso ninguém sabe que foi um negro que trouxe o leasing pro Brasil. Quer dizer, e quem é que fala de Adalberto Camargo? Ninguém. Quem é que fala de Raymundo Souza Dantas? Poucas pessoas. Eu coloco na internet essas coisas todas... Tive né, na [revista] O Menelick, tem um agradecimento assim enorme à Menelick. O Nabor [Junior] esteve aqui em casa, passamos quatro, cinco dias aqui mexendo nas coisas né, eu tenho esse grande arquivo dele que eu tô reconstruindo né, algumas coisas... (Entra em cena um cachorro). Ixe, acabou. Vai Neli vai. Vem. Agora foi. Desculpa. (Risos). Faz o corte aí. (Risos). Às vezes eu me divago um pouco, eu me emociono, eu peço desculpas a vocês né, que os olhos já estão lagrimejando. (Risos).
Daise: Eu sei... Então aí eu queria colocar assim, não sei se o senhor já ouviu falar, ou tem esse conhecimento, desses artistas de circo, dessas famílias circenses, pelo o que a gente soube tinha, nessa época toda de transição, de negros libertos, enfim, parece que os negros já começavam a se destacar no mundo da arte...
Roberto: Da arte.
Daise: Muitos artistas circenses né, os artistas ligados ao circo, o Benjamin enfim, e o meu avô, que tem um sobrenome que... (Risos). Que até o senhor já comentou, João Alves, muito comum né?
Roberto: É.
Daise: E que tem uma história parecida com todas essas pessoas que o senhor tá comentando. O senhor consideraria um negro né, filho de escrava, de repente conseguir ser um grande proprietário de um circo, como a gente tem certeza que o meu avô foi, que era o Circo Guarani, que eu não sei se o senhor ouviu falar...
Roberto: Já ouvi falar. É extremamente heroico, eu acho isso maravilhoso porque eu sou amante do circo, adoro circo né, só que digamos, eu peguei família circense no Circo Garcia né, de brasileiros né, descendentes de espanhóis, mas o circo teve uma importância muito grande na divulgação cultural do Brasil. Cantores famosos como Dalva de Oliveira, o Trio de Ouro cantavam no circo, e o circo quando chegava numa cidade era um grande evento né, os mambembes, então é extremamente assim, e eu não sabia desse aspecto né, desse grande empresário circense que teve no início do século e... Nós tínhamos só o teatro e o circo, nós não tínhamos o cinema ainda né, o cinema chegou bem depois então é de extrema importância na, na, no aspecto da formação cultural do Brasil o circo, e termos um negro como um grande empresário para mim é uma novidade excelente né? Eu li na Menelick sobre a primeira Palhaça negra, que fazia né, o trabalho de um homem, todo mundo pensava que era um homem e era uma mulher, então uma grande artista né, não sei se foi, digamos se teve algum preconceito contra ela, sobre essas atividades né? Porque o circo também tinha um aspecto às vezes extremamente maldoso né, sobre a prostituição que as pessoas acompanhavam o circo, tem esse, essas coisas assim né? Porque eram, não é que eram isso, eram pessoas que tinham uma mentalidade fora da sua época, são pessoas digamos de mentes abertas. Um artista de circo porque ele não tinha sua casa né, sua casa, é um nômade né, viviam com os filhos né, faziam aulas aquelas coisas todas. Eu li uma vez né, que as crianças estudavam, acompanhavam os seus pais e estudavam, mas nessa vida nômade do circo para eles, tem esse pensamento. Foi um grande aprendizado cultural, e um aprendizado humano porque você vai em cidades diferentes, culturas diferentes, pensamentos diferentes, e você leva a alegria do circo né, porque eu era criança lá no Rio né, no Leblon tinha um terreno ali na Afrânio de Melo Franco né, na rua Afrânio de Melo Franco, muitos anos o Circo Munik, o Circo Tihany, o Circo Garcia, depois modernamente veio o [Circo] Orlando Orfei também ficava lá, o Orlando Orfei veio sem lona para o Brasil né, ele até fez os primeiros espetáculos do Circo Orlando Orfei foi aqui em Santo André, porque o Ginásio do Ibirapuera [Ginásio Estadual Geraldo José de Almeida] tava ocupado, e ele ficou aqui, depois é que ele trouxe a lona né? Teve aquele parque dele, o Tivoli Park né, no Rio de Janeiro. Infelizmente isso acabou o circo só... Aqui em Santo André está até o, um circo aqui, de uma família até para mim eles são eslavos, não me lembro do nome, tá até aqui em Santo André, mas não tem mais aquela magia né, como o circo, digamos, que eu tô falando, chegava lá no Leblon, e eu todo dia eu passava, eu ia pra escola, passava, e via levantar a lona, chegar os animais, aquelas coisas todas né, aquilo era uma, era grande né? E eu fazia amizade né, com as pessoas, pra pegar um permanente né, pra assistir né? E aí tinha o circo de três picadeiros, o globo da morte, os Trapezistas né, e os Palhaços, e os Palhaços saiam para fazer a divulgação né, do espetáculo, um homem de perna de pau né, saia pelo bairro, pelo circo. Não tinha né, os microfones nem aquelas coisas, não tinha, era de porta em porta, distribuindo as filipetas pra você ter um abatimento né, essas coisas todas, e isso acabou né? Agora passa né, passou um carro aqui de som falando né? Stankowich é o nome do circo que está aqui em baixo, aqui em Santo André, Stankowich, e agora ele passa né, um carrinho aí fazendo propaganda, e distribuindo as filipetas também porque você vai ter cinquenta por cento de, se levar uma criança, a criança não paga, você paga essas coisas assim, mas isso tá muito... E agora temos né, uma Palhaça, digamos assim, no bom sentido, negra né? E um empresário que teve sucesso né, isso é que, não é só ser um empresário, é você ter sucesso. Sabe lá o que ele sofreu né, com as pessoas digamos, eu não sou publicitário, mas pra fazer uma publicidade do seu circo como é, como devia ser difícil né? Na época tinha muito terrenos, essas coisas todas, hoje eles alugam né, os terrenos, essa coisa, antes era gratuito. Aqui em São Bernardo tinha o Espaço do Circo, o Prefeito aí resolveu criar toda a infraestrutura e tal, pro circo chegar, hoje já não tem mais esse espaço, a Prefeitura construiu uma outra coisa lá, mas chegamos a ter o Espaço do Circo aqui no ABC, era extremamente interessante. Por quê? Os gastos são muitos grandes né, a manutenção, essas coisas todas, e depois a lona né, é um outro tipo de lona, tivemos aquele, em mil novecentos e sessenta e um, um circo pegou fogo lá em Niterói, foi uma grande tragédia, ali que o [Ivo Hélcio Jardim de Campos] Pitanguy começou a fazer plástica nos outros, ele era recém formado né, ele fala que a experiência foi desse circo lá em Niterói, acho que foi um incêndio provocado né, um incêndio criminoso, aí depois começaram, os circos começaram a ter umas certas exigências né, de segurança, essas coisas todas, tinha que ser uma lona especial que não pegava fogo, essas coisas todas, a estrutura né, mas o circo tem sua grande né, colaboração na difusão cultural dentro do país.
Daise: O senhor lembra essa época que o senhor assistia o circo, ia ao circo, de ver artistas circenses negros?
Roberto: Muito pouco, eu via mais na parte de apoio né, puxar a lona, puxar aquela coisa toda e tal, poucos, poucos agora eu me lembro de um Trapezista do Circo Munik, um Trapezista negro no Circo Munik, mas nunca vi um Domador né, eu nunca vi, mas Trapezista eu vi, acrobatas também, e poucas mulheres negras também trabalhando no circo, muito poucas. E o circo hoje, digamos, de vinte anos atrás né, mudou um pouco né, fazia, elas entravam né, muito bonitas, faziam apresentação e tal né, e eu não vi infelizmente eu não vi. Eu vi, eu me lembro desse Trapezista que me chamou muita atenção, ele era um negro extremamente forte né, e tal, ficava lá, era o Trapezista, e o trapézio tinha né, um aspecto romântico dentro do circo, aquela coisa toda, teve até um filme né, que o Burton [Stephen] Lancaster fez o Trapézio [Trapeze] né, foi um filme que marcou época, um filme hollywoodiano né? Eu vi poucos, infelizmente os negros que eu via, era trabalhando só...
Daise: E então agora entrando no nosso assunto mesmo, o que o senhor poderia imaginar de uma mulher negra que durante... Que pela história dela, durante quase quarenta anos, tendo participado de guerra, vivido e convivido com todos os problemas mundiais né?
Roberto: É.
Daise: Ela nasceu em mil novecentos e nove né?
Roberto: Então digamos ela pegou a Primeira Guerra Mundial né, que foi quatorze a dezoito, e ela pegou também a grande crise né, de mil novecentos e vinte e nove, o crack da Bolsa de Nova York né, que o país, que o Brasil perdeu muito em termos financeiros né? O crack... O preço do café caiu essas coisas todas até e... Eu gostaria de saber como ela se formou né? Porque ser um Palhaço é uma coisa, o aspecto né, artístico né, uma formação do Palhaço deve ser uma coisa, eu não tenho essa experiência, mas imagino né, como se formava isso aí, a música pra ele se apresentar, o vestir né, do Palhaço, essas coisas todas. A parte cênica, porque é a alegria do, a alegria do circo é o Palhaço. Sempre aqueles intervalos que eles fazem aquelas coisas todas, eu imagino ela fazendo o trabalho do homem, o transformismo disso. Isso pra mim é uma grande, no aspecto artístico, é extremamente difícil de se fazer, e extremamente complexo uma mulher na época, hoje talvez seja mais fácil com a tecnologia e tudo, uma mulher fazer o trabalho de um homem, e como Palhaço. Eu vejo nessa pessoa, eu li a reportagem, adorei, li duas vezes, duas ou três vezes que às vezes eu vou de trem para São Paulo e levo a revistinha, eu levo um livro, e li né? E achei extremamente interessante a Menelick fazer essa, essa matéria porque acredito que noventa por cento das pessoas não sabem disso, grande parte, mesmo da intelectualidade essas coisas todas, pessoas do movimento negro não sabiam disso, nem do, digamos, do empresário e nem dessa grande atriz né, dessa grande atriz que tem que ser reverenciada. Vamos fazer uma campanha ouviu, e irmos à Assembleia, falarmos com a Leci Brandão [da Silva], a Câmara Municipal para termos um logradouro público com o nome dela. (Risos). Porque aqui em São Paulo tem uma praça com o nome do meu pai, que eu até escolhi São Mateus porque São Mateus tem um grande número de nordestinos e negros, e aí tem uma praça, e eu tô brigando há cinco anos por causa do emplacamento que não fizeram né? E tem uma rua no Rio de Janeiro né, lá em Campo Grande também com nome dele, e tem uma travessa em Estância com o nome dele né, e agora vamos lançar esse, vamos lá falar com os políticos, vamos falar com a Leci Brandão na Assembleia né, do PCdoB e tudo, e levarmos essa história pra ela saber, ou uma escola de circo, alguma coisa tem que ter para não esquecermos, pra isso não ficar né, no vazio. Você passa ali na [rua] Sena Madureira, Biblioteca [Municipal] Viriato Corrêa, um grande historiador eu li muito livro né, livros de história do Viriato Corrêa. Tá lá imortalizado, mas também tá imortalizado Milton Santos na Biblioteca aqui no [bairro] Aricanduva. Eu tive um grande... Conheci Milton Santos, ele visitou meu pai na África, é uma pessoa maravilhosa, professor Milton Santos, tá sendo homenageado, porque não homenageá-la? Ela merece. Vamos lá viu, se precisar de mim pra falar com a Leci Brandão eu vou, eu conheço a Assessora dela e tudo, nós vamos lá levar, talvez ela nem conheça né?
Daise: Talvez não, porque a minha mãe nasceu no interior de São Paulo.
Roberto: Ela é de que cidade?
Daise: A minha mãe é de São José do Rio Pardo, nasceu em São José do Rio Pardo.
Roberto: E você sabe que essa região é uma região extremamente preconceituosa, racista, São José do Rio Preto, São José do Rio Pardo, Araçatuba, é um local difícil, eu tive em Araçatuba, uma manifestação racista contra mim, dentro de uma boate lá, então o interior de São Paulo é extremamente racista.
Mariana: Imagina em mil novecentos e...
Roberto: Mil novecentos e nada. (Risos). Digamos mil novecentos e um né? Você pensa bem né? Uma pessoa né? Quer dizer eles tiveram que sair desses locais, eles tiveram que ir embora desses locais, tiveram né, que ir para as grandes metrópoles né? Eu não sei se Estância era racista, o meu pai não me falava nisso, mas quando ele trabalhou numa gráfica lá, ele apanhava do dono da gráfica e tudo bem né? Quer dizer isso aí é uma coisa que acontece, acontecia né? Em termos, aqui no bairro acho que o único negro sou eu, aqui nessa rua aqui e tal, nós morávamos no Leblon, a única família negra do prédio era eu, a única família negra. Aí tinha umas coisas né, minha mãe era muito humilde nessa parte depois melhorou, ‘nossa, cuidado para fazer alguma coisa’, essas coisas assim né, ‘coisa de negro’, isso aí eu já escutei muitas vezes né? Você não pode discutir na rua num problema de trânsito, ‘ah o negro tá discutindo’, o branco pode discutir, mas você não pode, quer dizer, coisinhas assim simples. E eu guardo uma coisa que me magoou muito uma vez, foi no Rio, era lotação né, não era ônibus, eu sentado na lotação, uma menina sentou do meu lado, e a mãe dela veio e tirou, ‘não senta do lado de pessoas dessa raça’ e o bobão aqui, eu devia ter uns treze anos, tinha que ter uma reação e a minha reação foi chorar, eu sai... Uma vez também, lá no Leblon, eu brincando com a pessoa, essa pessoa depois tornou-se um grande amigo meu, Haroldo Cabral Figueiredo, um Advogado, um parente dele lá, eu brincando com ele, ‘sua mãe deixa você brincar com gente dessa raça?’, ou chegava assim né, na minha casa e tudo, ‘eu posso falar com a dona da casa?’, e minha mãe, ‘a dona da casa sou eu’. Ou eu uma vez estava também sentado né, na frente da, onde eu morava e tudo, ‘ah você mora aí? Não é sua mãe que trabalha aí?’, quer dizer, essas coisas todas, eu não sei se vocês tiveram isso...
Daise: Sem dúvida né?
Mariana: (Risos). A vida toda.
Daise: Todo o tempo.
Roberto: Então quer dizer, esse racismo encoberto, isso aí é terrível, digamos o americano do sul, todo mundo sabia que ele era racista, vingativo, violento, então ele pra lá e eu pra cá, mas aí veio, digamos, a segregação né, o negro ficou muito segregado, mas o negro americano teve uma coisa de boa, ele só escolhe construir sua universidade ele teve seu banco né, construíram uma defesa, e nós aqui não conseguimos construir essa defesa porque quando eu tive na África também, eles perguntavam, ‘lá é uma maravilha né, não tem racismo no Brasil, não tem preconceito’, eu digo, ‘tem. Yes, we have racism in my country’, ‘tem? Não é possível e tal’. Até hoje é visto nesse aspecto o Brasil é uma, tem uma sociedade multirracial, todo mundo vive muito bem, não tem nada disso, vocês sabem disso que não tem né? O número de jovens negros que são a pesquisa dos jovens negros assassinados... Quer dizer, isso tudo vem de uma cultura né, essa cultura vem de longe, vem do né, da época da República Velha, o Brasil Rural depois o Brasil Urbano também, nós viemos pra cá... E tem uma rua aqui em Santo André que tem uns poloneses, quando a Volkswagen veio pro Brasil, eles moravam já na Alemanha, já tinham deixado a Polônia Comunista, aquela coisa toda; a Alemanha contratou operários poloneses para vir trabalhar aqui você acredita? Eram pessoas sem formação às vezes e eram feitores e essas coisas todas.  Eu conheço até um ali, o seu Cristóvão eu já conversei muito isso com ele. E eles saíram lá da Alemanha e falaram, ‘olha cuidado com os negros lá, o brasileiro é meio preguiçoso’, essas coisas toda né? Eles fizeram isso. Isso é inacreditável né? Para que trazer operário da Europa se aqui nós tínhamos necessidade de emprego né? Na, quando teve o grande boom né, industrial na época do Juscelino Kubitschek [de Oliveira], certo? Então quando trouxeram os italianos, bom, as polacas né, as famosas prostitutas polacas do Rio de Janeiro lá na Vila Mimosa né? O baixo meretrício depois, mas eram as famosas polacas que estavam lá, até prostitutas trouxeram da Europa pra cá. (Risos). Quer dizer... (Risos). Tem aquele samba né, do... (Roberto começa a cantar). ‘Salve as polacas, as mulatas, as sereias’ né? E as famosas polacas né, que os caras queriam né, ter o amor né, essas coisas todas, com mulheres brancas né, as polacas. (Risos). Até isso aconteceu dentro desse país. E tem um caso também extremamente interessante, que nós exaltamos muito o Barão do Rio Branco [José Maria da Silva Paranhos Júnior], e uma vez os Estados Unidos queria mandar alguns negros né, formados para cá e tal, coisa de americano também, ‘manda essa negrada pra lá’, não sei o que, essas coisas todas, e ele negou disse ‘não’, não deixou eles entrarem aqui, quando começaram a chegar os imigrantes né, as ondas imigrantes, caso da minha, da família da minha esposa, eles são da região, eram da região, antes da Iugoslávia né, eles eram croatas né, era o Império Austro-Húngaro, e foram lá, fizeram propaganda do Brasil, ‘é um país que se acha dinheiro na rua, acha ouro na rua’, essas coisas todas, e quando a minha sogra chegou no Porto de Santos, eles nunca tinham visto negros, eles pensavam que era o diabo, era, a minha sogra mesmo falava isso para mim, pena que ela já faleceu senão ela poderia dar esse depoimento. Nunca tinham visto um negro né, no Porto de Santos, nesse caso fazendo trabalho braçal essas coisas todas né, eles não conheciam, então começaram a trazer né, que era o embranquecimento né, do país, era uma, era uma política de governo na época do grande Barão do Rio Branco acredita nisso? Temos que dormir com essa né? (Risos).
Mariana: Mais essa.
Daise: Mais essa. Então, aí se tiver mais alguma coisa que o senhor quiser falar. Se vocês acham também alguma coisa que não ficou, que não se discutiu, mas eu até vou acrescentar que eu sei que eu nem posso falar muito, mas o meu avô, por exemplo...
Mariana: Pode.
Roberto: Claro.
Daise: Ele, na época que surgiu o Xamego, o circo já estava em decadência, e foi uma questão de doença, porque o Palhaço do circo era o meu tio, que chamava [Palhaço] Gostoso, e que começou a ter uma doença séria, que na época não tinha cura, foi perdendo os membros né, que eu acho que era a coisa da gangrena, qualquer coisa assim, e a minha mãe se ofereceu pra substituir...
Roberto: Esse aí não seria o Mal de Hansen não?
Daise: Eu acho que sim.
Roberto: É a famosa lepra né?
Daise: É que depois ele fez uma, foi usado até como cobaia e tal, aí eu já era nascida, mas a minha mãe surgiu como uma tentativa de sobrevivência do circo; e o circo sobreviveu, nessa época, do Xamego.
Roberto: E o circo ficou, digamos, até que época? Década de cinquenta?
Daise: É, porque eu me lembro mais ou menos, porque a minha mãe era uma pessoa... Meu avô primeiro tomava conta de tudo, aí como o meu tio, que era o único homem da família, teve esse problema, e ele na época tinha feito, servido na aeronáutica, então o serviço militar, ele ficou sendo tratado num hospital da aeronáutica né, e não voltou mais pro circo, foi quando surgiu Xamego, e aí, eu nasci em quarenta e oito, a minha mãe tinha...
Roberto: Minha geração.
Daise: É. Eu tinha mais ou menos uns quinze, dezesseis anos quando a minha mãe, quatorze quando a minha mãe vendeu o circo.
Roberto: Sessenta. Década de sessenta então.
Daise: É então foi essa época que ela era o Xamego, e o meu avô quando morreu, um pouco antes dele morrer, que ele morreu com oitenta e um anos, em cinquenta e quatro, ele era assim, foi esquecido por todos esses proprietários de circo, o [Antolin] Garcia, por exemplo, o Piolin [Abelardo Pinto], que trabalharam no circo dele.
Roberto: Olha!
Daise: De ser, de não ter onde sentar nas reuniões. E na época do ápice dele como proprietário, antes do Xamego, ele fez parte né, que a gente até teve...
Mariana: Conseguiu encontrar.
Daise: Conseguiu encontrar nos registros, porque os registros das entidades que lutavam para o circo e enfim, como uma entidade sindical né, foram queimados também, e no pouco que a gente conseguiu ver, ele chegou a ser membro do Conselho Consultivo junto com as grandes famílias da época de circo né?
Roberto: Na época. Salazar né? Aquele pessoal...
Daise: É, tinha né, os Queiorolo, e nomes ali, Seyssel que era...
Roberto: O Seyssel é do Arrelia [Waldemar Seyssel]. Porque era o Carequinha [George Savalla Gomes] e o Arrelia.
Daise: Isso, e que trabalharam no circo da minha mãe.
Roberto: O circo do Carequinha, Circo Aimoré, antiga Aimoré.
Daise: Os antepassados deles trabalharam no circo da minha mãe né? E o Arrelia tinha, mas foi contemporâneo da minha mãe né? Então foi... Eu, por exemplo, tenho péssimas lembranças de circo né, porque foi a época da decadência, só tristeza...
Roberto: Tristeza.
Daise: É, mas aí que foi a época do Xamego.
Roberto: Quer dizer, isso tudo nós não podemos esquecer. (Risos).
Daise: E o racismo né, por que...
Mariana: E o fato de ser mulher, bom, no caso...
Daise: O fato de ser mulher, o racismo todo, e o meu pai era branco também, tinha tudo, mas como eu contei pro senhor, que ela contou pra minha filha, quando ela era criança ela raspava a pele com caco de telha porque era terrível essa coisa de ser negra.
Roberto: É teve uma declaração do [cantor negro] Agnaldo Timóteo [Pereira], que ele preferia ter nascido branco e tal, essas coisas todas, e isso é uma falta de consciência né, isso eu tenho sorte pelo menos com os meus filhos eu dei essa, apesar de ser mulato e misturado e tudo, mas eles ainda têm essa consciência, você viu o meu filho, o Felipe né, o Rafael né, e tal, mas isso eu também não forcei não, são coisas naturais entendeu? De convivência, e outro contexto, graças a Deus eles tiveram um contato muito grande com o meu pai, nós íamos passar férias, meu pai vinha aqui, minha mãe e tal, essas coisas todas né? Que nem eu falei pra vocês, eu também tive a sorte na minha vida de ter uma pessoa chamada Edison [de Souza] Carneiro né, um grande Folclorista né, casado com uma irmã da minha mãe, com uma tia, eu chamo de tio Edison né, meu padrinho de, meu padrinho de batismo, comunista e padrinho de batismo, e eu chegava lá e eu dava benção para ele. (Risos). Você veja como são as coisas, mas uma pessoa também, onde eu conheci o Bumba Meu Boi, onde eu conheci o Candomblé, tivemos contato com o Candomblé, essas coisas todas, através do Edison Carneiro, que tem um museu de folclore lá no Rio de Janeiro, no antigo Palácio do Catete, é o Museu [de Folclore] Edison Carneiro. Então eu tive essa sorte né, não sou intelectual, sou esportista e tudo, mas tive essa sorte, esse ambiente me ajudou muito, eu gosto de ler, leio tô sempre, já li muita bobagem também por aí e tal, e quando o meu pai, ele fala no livro dele que quando ele lia [Fiódor Mikhailovich] Dostoiévski né, tava aprendendo ainda, sendo alfabetizado, deu um tilt na cabeça dele né? Você lê Dostoiévski, lê [Friedrich Wilhelm] Nietzsche né, também, aí depois ele foi moldando as leituras dele né, porque ele era amante de [Joaquim Maria] Machado de Assis, essas coisas, que era negro também, e aí as pessoas falavam para ele, ‘olha, tornou-se escritor’, mas Machado de Assis também né, os pais eram analfabetos e tudo, e tornou-se um grande escritor, essas coisas todas, quer dizer nós vivemos também de pequenos assim né? O Xamego né, o Abdias, o Raymundo Souza Dantas, o Edison Carneiro né, Adalberto Camargo, é muito pouco, nós temos muita gente boa aí, como a menina aqui que né, fez cinema, essas coisas todas, o Nabor Jornalista, essa, eu acredito muito nessa geração nova que tem uma outra formação né, tiveram uma formação intelectual melhor, uma formação mesmo né, educacional diferente e tudo, isso é muito bom, eu vejo a meninada aqui né, tudo, converso com eles, no meu trabalho também, no esporte tem muito negro né, o único escape né, você vai ser Cantor, Jogador de Futebol né, e você pergunta pra meninada, quer ser Cantora de Axé, pergunta, isso os pequenos né, tá acontecendo muito isso né, ser Jogador de Futebol, que é a grande saída, felizmente né, era a grande saída, ser Cantor né, e tudo, e o meu pai às vezes ficava chateado, falava, ‘olha, tá vendo? Colocam o negro aí só pra fazer palhaçadas’, você entende né? Não contra o Palhaço, mas fazer né? Uma vez ele discutiu com o Monsueto [Campos de Menezes] também, que o Monsueto falava umas bobagens, o Chocolate né, aquele artista né, e houve até uma certa, um certo, eles tiveram um certo atrito né? Meu pai falava, ‘olha, vocês são grandes artistas e tudo, não precisa fazer isso’ né? ‘Não há necessidade disso’, essas coisas todas. A Ruth [Pinto] de Souza fala né, também, a Zezé Motta [Maria José Motta de Oliveira], a Zezé Motta também fala. Essa última novela né, [da Rede Globo] Boogie Oogie, falam em uma cena falam sobre o meu pai, é que eu não tô com o meu tablet para mostrar pra vocês, mas aí fala na Boogie Oogie né, que o rapaz quer fazer diplomacia e a Zezé Motta fala, ‘não, mas negro só serve pra ser Jogador de Futebol’, e a moça que é namorada do rapaz e é branca diz assim, ‘não, não, lembra, o senhor Raymundo Souza Dantas foi o primeiro Embaixador negro e tal’, teve essa cena né, logo no inicio da novela e uma amiga minha nos falou, ‘nós gravamos né?’ Eu não sei se tá no meu celular aí também, mas... (Risos). Na mesma época que lançaram a revista, até botei, mostrei pro Nabor pra ele escutar né, tudo isso aí. É isso que eu tenho que falar.
Daise: Parabéns!
Roberto: Eu agradeço a vocês né, depois eu quero mostrar algumas coisas aí pra vocês né? Posso mostrar...
Daise: A sua visão. Só isso. Porque é a visão de um negro sobre a história do negro, com exemplos do pai que é um orgulho, exatamente isso que a gente queria né?
Roberto: Só um fato, eu fui Diretor aqui em Santo André, Coordenador de Cursos Esportivos eram os cursos tinham, chegou a ter quatro mil alunos, e eu era o gestor desse curso, tinham quarenta professores sobre minha responsabilidade, aí teve um problema de uma Professora negra né, falou uma coisa pra um aluno né, e a mãe se revoltou, ela disse, ‘ah eu... ’, ‘ah, então a senhora fala aí com o Coordenador de Curso’, quando ela entrou na sala, ela me viu, a mulher mudou assim né, ‘não, então eu não vou falar nada’, eu falei, ‘senhora o que a aconteceu? O que aconteceu com a Professora? Qual é o problema que a senhora vai me falar?’, mas tinha esse baque. Quer dizer, isso aí quinze anos atrás mais ou menos né, então teve um concurso interno aqui na Prefeitura de Santo André, e eu passei em primeiro lugar e tal, e fui ser Coordenador de Cursos de Esportivos, e a Rita né, uma Professora negra tudo, o que ela fez, chamou o menino de débil mental, um negócio assim, não é pra fazer isso, isso não é atitude de Professor, eu ia conversar com ela, ‘você não pode tratar as pessoas assim’, mas... E essa mulher ela era esposa de um Promotor Público né? Eu falei, ‘Dantas, cuidado com essa mulher’, hunf, seja o que Deus quiser, mas ela chegou, ela não quis mais conversar comigo não. (Risos). Ela foi lá falar com o Diretor, aí chega lá tem um negão sentado atrás da mesa lá. (Risos). Responsável né? Quer dizer tem isso tudo que acontece. (Risos).
Daise: Nada mudou muito né?
Roberto: Nada mudou muito não.
Daise: Nada mudou muito.
Roberto: É uma vez eu lembro, eu e meu pai fomos numa loja, que eu falei, meu pai era pavio curto umas certas horas né, assim, em termos, e ele chegou na loja, viu uma gravata bonita e foi comprar né, o cara falou, ‘a gravata é cara’, ele falou assim, ‘não lhe perguntei o preço’, nesse interim o dono saiu correndo, reconheceu e disse,  ‘você peça desculpas para o senhor e tudo...’, depois tornaram-se até grandes amigos. Eu posso falar até o nome da loja, Dom Alessandro né, uma loja de roupas finas, essas coisas todas, meu pai até arrumou, ele tava com até com problemas de naturalização de libanês e tudo, mas assim na cara dura... ‘É caro’, ‘por quê? Eu não posso comprar?’. (Risos). Ele já falou, ‘não lhe perguntei o preço’, mas bem alto, em alta voz, e virou as costas e ia embora, aí o dono correu, ‘não, por favor, e tal... ’. (Risos). Aí às vezes ele ia lá na loja ofereciam até o whiskyzinho pra ele e tudo. (Risos). Mas depois disso tudo né? Quer dizer... Tá aí...
Daise: Teve um exemplo, da filha do Ministro do Lula, na época do Lula né, uma menina negra, diz que foi um horror no aeroporto, e foi falar ‘sou filha de Ministro’, ‘ah é? Você?’
Roberto: É, falavam pra mim assim, ‘ah, você é filho de Embaixador e tal, mas se eu chegar num lugar assim você não entra, eu entro’. (Risos). Entendeu? Brincando, mas isso é uma puta de uma sacanagem, desculpe o termo, esse termo chulo que usei agora. Por quê? Qual o problema né? E tudo né? Ou você, ‘ah, você estuda no Colégio Rio de Janeiro?’, depois eu estudei no Colégio Pedro II, ‘ah estudo e tal... ’, a elite lá de Ipanema e do Leblon, todo mundo estudava lá, era escola privada, ‘mas qual o problema? Eu estudo no Colégio Rio de Janeiro’, ‘mas é mesmo? É verdade?’, eu falei, ‘é, ‘é bolsa?’, ‘não, não, o meu pai paga, não é bolsa não’. (Risos). Quer dizer, essas coisinhas todas. Aqui o meu filho estudava em uma escola aqui especial né, que era de manhã e a tarde, uma escola de período integral, aí uma vez eu fui buscar, esse, o Roberto né, que é o mais clarinho dos três aí; aí o menino falou, ‘é seu pai, é seu pai?’, ‘é meu pai e tudo’. (Risos). Quer dizer, isso dói isso dói. (Risos). Dói muito.
Daise: É que nem meu marido né, com a minha filha né, porque ele, o meu marido é branco né, descendente de libaneses, italianos e espanhóis, mas ele comenta...
Roberto: É aqui o movimento negro uma época me questionava, fui questionado aqui da região, ‘ah, o Dantas é muito bom, não sei o que, papapa, mas ele é casado com uma branca’, eu falei, ‘só que o Milton Santos também era casado com uma branca’, a última esposa do Abdias é uma americana, é ela que tá tomando conta do acervo do Abdias, não tem nada haver isso né, não tem haver isso, essas coisas acontecem...
Daise: Amor é amor.
Mariana: A vida é assim.
Roberto: É a vida é assim, não tem, não tem essas coisas assim né?
Daise: Mas é o que eu digo, mas o...
Roberto: Mas não vai deixar de ter a minha militância, como teve a militância do Abdias né, morreu com noventa e oito anos, firme e tal, mais agressivo até que meu pai né, em certas decisões, foi Senador né, era Suplente do Darcy Ribeiro e tal, homem de confiança do [Leonel de Moura] Brizola, essas coisas todas, e foi, foi velado, foi velado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e tal, quer dizer, então... Eu sou fã do Abdias entendeu? Apesar das divergências dele com o meu pai, mas eu sou fã dele e de outros né, o [José] Pompílio [da Hora], e Professor Milton Santos né, apesar que ele escreveu quarenta livros, se eu li uns dez eu li muito, mas pretendo até o final ler os quarenta livros dele. (Risos). Tá ok. Muito obrigado. Eu não sei se era isso que vocês queriam, ou se eu viajei... (Risos).
Daise: Mais do que a gente queria... Se tiver alguma coisa mais que o senhor queira falar...
(Fim da entrevista).


Adriana Mariano

ADRIANA MARIANO
DIA 4 / CANON 60D 01

Mariana: Adriana Mariano, take um. (Claquete). Dri, só se apresenta pra gente, só nome, sobrenome e tal, mas fala olhando pra minha mãe tá? É, pode falar.

Adriana: Então, eu sou Adriana Mariano, eu sou fisioterapeuta há treze anos e aqui no bairro de Perdizes, inclusive.

Daise: Então é o seguinte Adriana, assim, eu quero que você diga como foi que você conheceu a minha mãe? E se você tiver data também você fala, mas assim se estenda o máximo que der tá bom?

Adriana: Certo. Então olha só, eu conheci a dona Eliza através de uma clínica que eu trabalhava antigamente né, e eu fui pra atender domicílio, só que eu não conhecia ninguém então, aí chegando lá, quem, a primeira que eu conheci foi a filha dela, que é a Daise, que me apresentou a dona Eliza, e ela contou toda a história dela, daí ela já tinha, no caso eu conheci a dona Eliza ela já tinha noventa e dois anos mais ou menos, e fazendo avaliação, tudo direitinho nela, ela me contou a história da dona Eliza, que era de circo. Eu achei muito interessante a história né, mas a família me procurou no caso que era no sentido de que ela não estava mais conseguindo andar e tal... E, é... E assim... Vixe! Pode retomar tudo?

Mariana: Pode, não tem problema, não tem problema, Dri, Dri, de boa.

Adriana: Eu tô nervosa.

Mariana: Não, mas de boa, de boa, deixa eu ficar, eu vou ficar aqui então.

Adriana: Eu tô nervosa. (Risos).

Daise: Tá muito bom.
Adriana: Eu tô nervosa.

Mariana: De boa, de boa, quer ver? Troca de lugar comigo.

Adriana: Pode começar tudo de novo?

Mariana: Não, começa de novo, era isso que eu ia te falar, vem cá.

Adriana: Tá me dando calor sabia?

Mariana: (Risos). Você sabe o que é isso né?

Daise: Eu sei como é.

Adriana: É nervoso né?

Daise: É assim mesmo.

Mariana: Deixa eu te falar, me conta, não, sério mesmo, me conta como é que foi que você conheceu a minha avó?

Adriana: Olha, então foi assim... (Risos). Peraí...

Mariana: (Risos). Não, mas é.

Adriana: Eu conheci a dona Eliza através da Daise, que é a filha dela. Eles me ligaram pra ir conhecer a dona Eliza e tudo pra fazer fisioterapia né? Por quê? Porque eles perceberam que ela estava tendo dificuldade pra andar. Então, eu fui até lá pra conhecer, só que eu dei de cara com a dona Eliza, que a dona Eliza era uma figura né? (Risos). E logo que ela me viu ela falou, ‘menininha bonitinha!’, aquele jeitinho dela né? (Risos). E sempre tinha uma gracinha, uma piadinha, então eu achei ela bem alegre né? Aí eles me contaram a idade dela, no caso, no momento ela tinha noventa e dois anos, e a história que eu soube dela que ela era Palhaço né, de circo; achei muito interessante, me envolvi com a história, me envolvi com a família, e eu percebi que o pessoal, a família, a filha, a neta e o marido da dona Daise também, eles tinham uma preocupação dela não estar conseguindo andar, porque aquilo não era a realidade dela né? Porque ela foi do circo, ela tinha muito movimento, era uma pessoa ativa, isso ela já tinha noventa e dois anos no caso né? Então eu fui lá com a missão então de manter o movimento, para ela continuar se movimentando, andando né, que não era o habitual dela ficar parada, que ela tinha começado a perder força nas pernas. Aí, a gente começou a desenvolver um trabalho né, eu levava tudo que eu podia, media a pressão, levava bola, levava elástico, levava tudo pra ela desenvolver o máximo, ter movimento. Então é uma coisa assim que a gente não se conformava dela não estar movimentando. Embora ela tinha noventa e dois anos, ela tinha assim, flexibilidade, alongamento, todo dia ela me recebia muito feliz, todo dia, de vez em quando ela cantava umas musiquinhas, umas piadinhas.

Mariana: Você lembra alguma música que ela cantava Dri?

Adriana: Eu lembro que ela sempre cantava musiquinha rimadinha, mas eu não lembro agora as musiquinhas, mas sempre tinha uma rimadinha assim, muito interessante. E depois... Só que foi passando os anos né, e conforme assim, as dificuldades também da idade, a senilidade, ela foi perdendo forças nas pernas, até que teve um dia que eu cheguei na dona Daise e falei assim, ‘olha, tentei de tudo, a gente... ’, eu treinava o máximo e tudo, isso se estendeu depois de uns quatro anos, e que eu percebi que ela não ia conseguir mais andar. Aí com isso, aí eu falei com a Daise e tudo né, a gente continuou fazendo um outro trabalho, porque assim, a família tinha um envolvimento muito próximo com ela, e não queria perder isso, entendeu? De ela estar se movimentando. E eu também me envolvi muito também né, que eu já tinha ela como a minha avozinha, a dona Eliza já era a minha avozinha, eu me envolvi tanto que tudo que precisava eu tava ali, eu trouxe minha tia pra ajudar a cuidar da dona Eliza... Deixava ela toda bonitinha. Aí teve uma época que eu engravidei né, e ela foi ficando mais doentinha, foi ficando mais doentinha, já não levantava mais da cama, mesmo que eu forçasse, ‘vamos lá dona Eliza, vamos lá’, ela já não tinha mais condições... E é uma coisa que assim, é complicado falar porque eu já me emociono um pouco... (Risos).

Daise: É assim mesmo querida.

Mariana: Todos nós.

Adriana: Que eu percebia que ela, tava ficando complicada a situação dela, porque tava tendo complicação renal, tava começando a inchar as perninhas e tal, aí eu percebi que ela tava se entregando um pouco, já no final, mas isso ela já tinha noventa e oito anos, aí uma coisa que eu pedia, eu falava assim, ‘meu Deus eu não quero que aconteça de ela falecer na minha frente’, no caso, porque eu já tinha um envolvimento, tanto com ela, como com a família né? Aí aconteceu de eu ficar grávida e eu ficar de repouso, porque eu tive algumas complicações na gestação, aí foi nesse período que infelizmente ela veio a falecer né, que aí é bem pra casar com o que eu tinha pedido né, mas assim, a história é muito bacana, o que eu vivi foi uma coisa assim super marcante na minha profissão, tanto porque, por toda a história dela né, que ela veio do circo, do auê, da alegria e tal, e eu acompanhar todo esse final da vida dela assim, pra mim foi muito gratificante, tanto profissionalmente como pessoalmente né, e eu ver assim a empolgação da família em querer ela sempre ali presente, se movimentando, ativa, toda essa história me cativou muito, e é um dos casos assim que eu tenho, que eu guardo né, na minha vida assim, profissionalmente e pessoalmente assim.

Daise: Você acha que ela foi a mais velha, vamos dizer a paciente com mais idade com que você trabalhou até hoje, é isso né?

Adriana: (Adriana concorda com um movimento de cabeça).

Daise: E você achou, que assim, o fato dela ter sido Palhaço, você encontrava nela alguma coisa que te lembrasse, e que falasse, ela realmente é diferente porque ela foi Palhaço, pela alegria e pela parte física?

Adriana: Ah então, ela foi uma paciente, uma das mais velhinhas que eu atendi que eu acompanhei todo esse trajeto né, que foram alguns anos, e ela tinha bastante flexibilidade, que isso com certeza veio de lá, do que ela trabalhou no corpo dela antigamente. A gente fazia alongamento e ela tinha uma flexibilidade enorme, era muito bacana de ver, e a disposição tudo, de início né, que depois ela começou a ter os desmaios, e as complicações motoras que levou a ela não conseguir mais andar. Que a nossa luta no começo sempre foi essa, ‘não, ela tem que andar, ela tem que se movimentar’.

Mariana: E Dri, até falando desse, desse momento, eu lembro do dia né, que vocês tiveram a conversa, você lembra dessa situação? Você pode contar pra gente? Que eu lembro que você contou algumas vezes pra mim que ela falou, você falou, ‘vamos dona Eliza’, e ela falou, ‘ah minha filha... ’

Adriana: (Risos).

Mariana: Não foi uma coisa assim?

Daise: Que ela tava com a perninha mais curta, começa falando...

Mariana: É, acho que é o dia que ela falou né?

Adriana: Então, a gente lutava, ficava, se esforçava ao máximo pra realmente que ela voltasse a andar né? A gente fazia exercício deitado, mas eu colocava ela pra andar, pra sempre se movimentar, só que ela mesma percebeu que ela não tinha mais condições de andar né, e ela teve uma sacada né? (Risos). Que ela falou assim, ‘olha minha filha não adianta que eu não vou conseguir mais’, entendeu? (Risos). Ela era muito... De vez em quando ela tinha umas coisas assim que ela falava que surpreendia a gente né?

Mariana: Tipo?

Adriana: Como isso de ‘minha filhinha você não está vendo que eu não vou conseguir andar?’, ou senão quando eu queria alongar ela, ela puxava a perna com tudo pra trás, (Adriana levanta o braço reproduzindo o movimento de perna que narra), vinha quase na testa. Então, ela de vez em quando ela dava essas, essas coisas que surpreendiam, fazia algumas coisas assim engraçadas que era característica dela assim, que era uma coisa assim natural dela mesmo.

Mariana: Adriana Mariano, take dois. (Claquete).

Daise: Ela tava no hospital, o enfermeiro chegou, o Brandão, e falou pra leva-la pra fazer exames né, e ele, (Daise muda a voz) ‘Oh vovozinha bonitinha, você tem que ficar bem, porque eu vou levar você, e você vai fazer exame, e tudo vai ficar muito ótimo’, aí ela falou, ‘oh mocinho bonitinho, eu quero ir fazer exame, porque você é bonitinho e eu vou namorar com você’.

Adriana: (Risos). Tem muito haver.

Daise: É bem ela. (Risos).

Adriana: Ela fazia isso mesmo.

Daise: Bem ela, bem ela né? Então, aí você chegou a imaginar como ela era de Palhaço, alguma vez você teve alguma sensação assim de, de imaginar, ou, você chegou a ver a minha mãe vestida de Palhaço, em foto, alguma coisa, a gente te mostrou? Eu não sei...

Adriana: Eu vi, na casa dela tinha um retrato dela de Palhaço numa estante, eu me recordo disso.

Daise: E o que você achou assim na hora, você lembra qual foi sua sensação?

Adriana: Eu achei assim, uma coisa super diferente né, porque era caracterizado por Palhaço homem né, só que ela era a dona Eliza né? (Risos). Muito diferente, uma coisa assim, autêntica né?

Daise: E assim você tem uma coisa assim de querer falar de mais Palhaços? Você, se você frequentou já circo quando criança, no momento...

Adriana: Então olha só, eu nunca fui no circo. Eu nunca tinha ido no circo. (Risos).

Daise: Olha!

Adriana: O contato que eu tinha com o Palhaço era TV porque eu vim de uma família muito assim, evangélico muito tradicional, então eu nunca tive contato com Palhaço, o que eu via era na televisão. Tanto que eu fui ao circo há uns dois anos atrás, entendeu? Com meus filhos e tudo, até que eu nem piscava no circo de ter aquele contato. E hoje, atualmente, o meu filho menor, que tem cinco anos, desde os dois anos ele gosta de Palhaço e ele quer ser Palhaço. A gente pergunta, ‘o que você quer ser quando você crescer?’, ‘ser Palhaço!’. É uma coisa assim, que você vê, não sei, ficou né?

Daise: E você chegou a falar da minha mãe pra ele, ou não?

Adriana: Eu comentei pra ele, comentei com ele né, na verdade, sobre que eu atendia uma senhora que era Palhaço, até que eu falei que ela tinha que ela tem uma netinha que agora ela é Palhaço, e a gente teve um encontro e ele perguntou, ‘mamãe, porque ela não está de Palhaço?’ (Risos). Que é a Mariana. Então, é uma história bem diferente, bem legal. Eu nunca tive contato com ninguém do circo, mas o que eu percebo da dona Eliza para os meus outros pacientes idosos, que eles não tinham toda essa flexibilidade que ela tinha que era decorrente com certeza do circo né, e toda essa alegria que ela tinha, toda essa alegria, disposição né, que é também uma coisa totalmente diferente que eu já vi de outros pacientes, eu nunca tinha visto né?

Daise: Normalmente pessoa de idade é mais...

Adriana: É pessoa de idade...

Daise: Ranzinzinha né?

Adriana: É então...

Daise: E ela era alegre né?

Adriana: A pessoa de idade geralmente eles são mais introvertidas né, ela não, era toda feliz, solta, alegre... Era uma coisa diferente.

Daise: E agora vamos pra um assuntinho um pouco mais caro pra todos nós, uma coisa assim que também pode ser tratada levemente, mas enfim, você pode imaginar que a minha mãe foi PalhaçO, não PalhaçA, e ela acabou sendo, você leu, acho que, a matéria da Mariana né?

Adriana: Li.

Daise: Acabou sendo por questões de necessidade né, porque meu tio que era o Palhaço, filho, irmão mais novo, ficou doente e precisou cortar as pernas, e ela... Tinham que substituir porque na época dela o Palhaço era muito importante no circo, e enfim, ela teve que convencer o pai dela e uma sociedade na época, ela nasceu em mil novecentos e nove, e bem machista...

Adriana: Nossa! Ahã, com certeza.

Daise: Pra ela fazer o Palhaço né, e também teve barreiras na vida dela por conta de ser negra, por isso que a gente está, colocou a Primeira Palhaça Negra porque era um diferencial em termos de vida. Você é casada com um rapaz que é negro né?

Adriana: Isso.

Daise: Seus filhos são mestiços...

Adriana: É.

Daise: O que você pensaria, assim, que no caso a minha mãe, com toda essa força que você viu, que você presenciou, analisou até né, durante cinco anos, o que você pode falar né, se estenda o máximo que você quiser, fale como você quiser, sobre essa coisa que ela deve ter enfrentado, por coisas que a gente sabe que até hoje ainda acontece, por conta de uma pele negra, ou uma mulher que queira se projetar fazer sucesso, ser famosa né?

Adriana: Ah sim.

Daise: Entendeu? Vê como é que você quer falar sobre esse assunto.

Adriana: A gente sabe que hoje, ainda existe uma barreira né, com a mulher negra, eu sei por que eu sou casada com um homem que ele é negro, e tem um certo ainda preconceito, as pessoas olham um pouco diferente. Agora, se a gente projetar isso pra muitos anos atrás, a gente tem uma certa ideia né, a gente não pode ter uma ideia total, porque a gente não estava vivenciando aquele momento, de como foi dificultoso pra ela nesse projeto, nesse processo na verdade, de trabalhar e de ser negra, e num papel que é totalmente masculino né? Então ela, talvez pra época, era uma coisa assim, totalmente diferente né? Era uma pessoa totalmente autêntica mesmo né?

Daise: E daí você, por exemplo, você hoje em dia, no seu dia a dia, alguns acontecimentos te trazem na memória coisas que você sabe que acontecem pelo fato do seu marido ser negro? E essa coisa dos filhos mestiços que a gente sabe né, eu sou mestiça também, meu pai era branco, então essa coisa, essa problemática você diria que ainda persiste né? É uma coisa, como se diz, ainda é um obstáculo né, mas que no exemplo da minha mãe foi transponível né? Não é intransponível né?

Adriana: Isso.

Daise: Essa coisa que você vence, é um obstáculo que se vence. Vê se você concorda e fala um pouco sobre isso um pouco mais.

Adriana: Certo...

Daise: Desenvolve assim...

Adriana: Aí, eu acho que eu não sei se eu consigo...

Mariana: (Risos). Não, é isso mesmo, essa coisa, que ainda existe preconceito no Brasil, a gente sabe né?

Adriana: É.

Mariana: É uma coisa... Eu tô dizendo mais porque é uma coisa, que é um tema né, atual, e a gente tá vendo, e não só com negro, tem essa coisa com nordestino agora e tal, então você fica imaginando na época como não foi se hoje em dia...

Adriana: É, as pessoas quando me veem, não imagina que o meu marido é negro, sabe? Ainda mais você nesse bairro, eu acho que o pessoal tem muito preconceito. E assim, é... Então, nesse bairro o pessoal tem muito preconceito, tanto que quando eu venho e apresento o meu marido, eu tenho muitas pacientes judias, que um dia, uma até se dirigiu a mim e falou assim, ‘olha, se você não quiser levar seu marido na festa do meu filho, não precisa’, eu percebi que era por causa que ele era negro, entendeu? E meus filhos são moreno claro, mas se eles tomam sol eles ficam bem tostadinhos, entendeu? Mas isso não dignifica nada, porque meu marido é uma pessoa super inteligente, amoroso, carinhoso, ele é tudo! E meus filhos também são, meu filho até nota, ele só tira nove e dez na escola, isso não tem nada a ver. E às vezes eles ficam preocupados dos amiguinhos acharem que o papai é preto, entendeu? Que dos outros amiguinhos o papai não é preto né? Até que eles me perguntam, ‘mamãe, o papai é preto ou ele é marrom?’ (Risos). Aí, o que acontece, a gente fala ‘o papai é preto, o papai é negão’, aí eles falam, ‘não, acho que o papai é marrom e o cabelo dele que é preto’. (Risos). Então, é porque eles têm a preocupação de, sei lá, poder ser excluídos entre os amiguinhos porque o pai é negro, então, eu acho que eu vivencio isso.

(Fim da entrevista).

Verônica Tamaoki


VERÔNICA TAMAOKI

DIA 05 / CANON 60D 02

Mariana: Verônica Tamaoki, take um.
Thyago: Põe só mais pra cima.
Mariana: Aqui?
Thyago: É. Mais um pouco.
Mariana: Mais?
Thyago: Aí.
Mariana: Verônica Tamaoki, take um. (Claquete).
Daise: Então Verônica, é o seguinte, a gente tá querendo saber do seu livro mesmo né, o que interessa pra gente particularmente, que é um período que o meu avô deveria ter circo também, mas primeiro eu queria que você falasse sobre o seu livro, dessa época que você trata no seu, nessa produção que é o último livro que você escreveu né?
Verônica: O livro Circo Nerino.
Daise: Foi lançado recentemente.
Verônica: É. O Circo Nerino foi fundado no dia primeiro de janeiro de mil novecentos e treze com Nerino Avanzi e sua esposa Armandine [Avanzi], e apresentou seu último espetáculo no dia treze de setembro de mil novecentos e sessenta e quatro, então é esse período que o livro aborda, é claro que é impossível começar uma história de um circo na sua fundação, então a gente retrocede um pouco pra tratar da história dos familiares né, da, dos antepassados dos fundadores do circo, então é esse período, de mil novecentos e treze a mil novecentos e sessenta e quatro.
Daise: Então, dava pra você falar um pouquinho sobre como, quais são os detalhes mais importantes que você coloca, porque é mais ou menos a época que a minha mãe nasceu, e esse documentário é sobre o Palhaço Xamego. A minha mãe nasceu em mil novecentos e nove.
Verônica: Mil novecentos e nove.
Daise: Só que o Palhaço Xamego surgiu trinta anos depois, mas interessa pra gente saber por que eu imagino que o Circo Guarani, que era do pai da minha mãe, o Circo de João Alves.
Verônica: Hum.
Daise: Tinha provavelmente algumas semelhanças com o Circo Nerino.
Verônica: Sim, sim.
Daise: Por isso que a gente quer saber.
Verônica: Todos esses circos eles tem uma semelhança né?
Daise: Não é?
Verônica: É, é. Você vai ver que de certo o Circo Guarani, assim como o Circo Nerino, que são representantes de um modo de produção circense, e é importante né, quando se fala da história de circo cada vez mais eu compreendo dessa maneira é muito importante entender onde e quando né? Quando, o quando tá claro, você tá me dizendo que sua mãe nasceu em mil novecentos e vinte e nove.
Daise: Não...
Verônica: Não, em mil novecentos e nove, e estreou como Palhaço em mil novecentos e trinta e nove. Onde, eu te pergunto, em que lugar?
Daise: Em São Paulo.
Verônica: São Paulo.
Daise: E no Circo Guarani.
Verônica: O Circo Guarani é um circo que circula pelo Estado de São Paulo.
Daise: Exatamente. Por isso.
Verônica: As semelhanças que eu destacaria dos circos dessa época, a gente pode assim focar no espetáculo, de certo que o Circo Guarani, assim como o Circo Nerino, era circo teatro, executava circo na primeira parte, e teatro na segunda, com um repertório muito parecido né, tanto na, nos números da primeira parte, nos esquetes de Palhaço da primeira parte, como a segunda parte, onde a gente vai encontrar vastas comédias, dramas, dramas-sacros, dramalhões. É uma outra coisa que a gente pode, pode mostrar como semelhança, de certo o Circo Guarani era circo pau fincado, na sua arquitetura né, na arquitetura nômade do circo, se você for percorrer é a história da arquitetura do circo no Brasil você passa pelos, pelo tapa-beco, pelo circo, pelo circo...  (Verônica fica pensativa tentando lembrar). Tem o tapa-beco, o circo pau fincado que é esse que eu tô falando, antes tem um outro que infelizmente não tá vindo na minha cabeça, que é o circo... (Verônica sorri demonstrando ter lembrado e retoma a explicação). O circo tapa-beco, o circo pau a pique, que é aquele circo que é, ele é, ele é numa época que o transporte ainda é mula, é lombo de burro, carro de boi, e que os donos viajavam com o tecido, mas em cada lugar pegava os paus de roda, os bastarãos, depois a gente vai ter o circo pau fincado, e por fim o circo americano. O circo pau fincado a diferença dele pro americano é que o pau fincado, a armação da lona, se apoia nas arquibancadas e ele não tem aquela retilida, que é o que amarra nas estacas, nos paus de roda, a diferença principal é que o pau de roda leva muito tempo pro circo, o pau fincado leva muito tempo pra ser armado, enquanto o circo americano, ele é muito mais rápido, isso você vai bater diretamente a dramaturgia do espetáculo, porque um circo americano, que é muito mais rápido possibilita muito mais o circo de variedades, o circo que arma e desarma logo, que tem uma época que os circenses chamam circo de tiro, chega, dá o espetáculo, e vai embora né, que é bem o circo americano, e o pau fincado, como ele demora mais tempo de ser montado, ele é muito mais pra essa dramaturgia do circo teatro que permitia as companhias ter um tempo, ter temporadas muito maiores visto que, que não tem um espetáculo apenas, mas tem um repertório com vários espetáculos, então nós falamos do circo teatro, da dramaturgia, da arquitetura, de certo também, em comum nós vamos, o tipo de transporte, teve uma época que os circos viajavam em lombos de burro, em carros de boi, no início do século, nesse período de certo que os circos viajam de trem, o Circo Guarani devia viajar principalmente de trem, não que seja o único meio de transporte, mas é um circo de trem. Então nós falamos do repertório, da dramaturgia, do circo teatro, da arquitetura, do transporte, era principalmente o Circo Guarani um circo família como o Circo Nerino, nessa estrutura em que é passado o conhecimento de pai pra filho, e nisso que a família é o mastro principal do circo né, então qual outra coincidência que a gente... São circos parecidos né? Eu falei dos, da arquitetura, do circo família, do repertório, eu acho que é isso, talvez com certeza eu me esqueça de outros detalhes, mas eu, eu destaco essas parecenças.
Mariana: Quando der doze minutos eu vou ter que interromper porque eu tenho que ligar de novo as câmeras tá? Só pra avisar.
Daise: Sobre o Circo Guarani exatamente você não tinha conhecimento?
Verônica: Não, não me é estranho, mas eu, eu já vi cartazes, eu já vi, eu não sei se o seu Júlio Amaral de Oliveira, seu Julinho Boas Maneiras, que é um dos grandes pesquisadores do circo brasileiro; não sei se foi na coleção que ele compôs, e que hoje se encontra no MIS [Museu da Imagem e do Som de São Paulo], e está no Centro de Memória do Circo.
Daise: Mas a gente persegue essa linha. Agora e a participação das mulheres nesse Circo Nerino que pelo que parece tem algumas características parecidas com o Circo Guarani. Como as mulheres participavam? Dentro, fora e dentro do circo?
Verônica: É, é, uma importância muito grande né, o papel das mulheres, apesar que elas sempre estão atrás, até porque não é a mulher que vai se relacionar com a cidade, mas é, por ser circo família né, pela criação das crianças, é uma importância muito grandes das mulheres, eu não saberia te explicar com detalhes, mas eu te dou um exemplo, até hoje né, o circo, se na faixada tá escrito Circo Garcia, nos bastidores esse circo é chamado de circo da Carola, se na faixada tá o Circo Nerino, nos bastidores é o circo da Armandine, então é uma importância muito grande da mulher, mas assim, ao mesmo tempo que está por trás...
Daise: Do nome do homem...
Mariana: Eu vou cortar a gente vai retomar do circo e a mulher tá? Cortou.
Thyago: Espera. Foi.
Mariana: Verônica Tamaoki, take dois. (Claquete).
Daise: Você pode seguir continuar falando sobre a participação das mulheres, você falou que elas ficavam mais nos bastidores embora muito importantes, mas e dentro do picadeiro, e como artistas? E no caso que me interessa particularmente como artistas cômicas que era o caso da minha mãe que depois se tornou Palhaço.
Verônica: Palhaço.
Daise: É. (Risos). PalhaçO.
Verônica: Palhaço. É o que eu te falei não é resultado de uma pesquisa, é uma observação, eu não saberia te explicar com detalhes a função da mulher no circo, mas levando em conta as características principais desse tipo de circo, dá pra se imaginar né, a importância da mulher. Agora você me pergunta no picadeiro. No picadeiro nós tivemos, porque assim poucos os circos que levam o nome de uma mulher como o Circo Arethuza, como o Circo Guaraciaba né? Geralmente os nomes são masculinos, mas nós tivemos grandes artistas mulheres. Grandes artistas levando-se também em consideração que é um circo teatro, também teve grandes papéis no espetáculo circense, não só na parte acrobática, mas no teatro também.
Daise: Você cita pelo menos eu imagino que, no seu livro do Circo Nerino tem essa citação que eu achei interessante de uma peça que é eu sei que era levada no circo da minha família, que era Honraras Tua Mãe, que a mulher do Nerino fazia a mãe, então no caso seria o principal papel da peça né, então eu já senti que tinha uma coisa parecida pelo o que a minha mãe me contava não é?
Verônica: Sei, sei.
Daise: Que as mulheres participavam das peças, dos esquetes né?
Verônica: Eram as protagonistas das peças né?
Daise: E tinha a coisa do trabalho de perucas, vestuário, e cenários que eram feitos porque as peças eram levadas no picadeiro, não havia ainda aquele palco né?
Verônica: Ahã.
Daise: Então você confirma esse tipo de... Né? Agora um outro detalhe que nós gostaríamos de saber, é sobre a coisa do negro, porque é uma coisa que realmente nos, ainda nós estamos tateando pra entender né? Porque meu avô era negro, filho de uma escrava, livre porque a coisa da Lei do Ventre Livre, e nós ainda não sabemos exatamente quando ele entrou no circo né? Ainda estamos pesquisando.
Verônica: Teu avô...
Daise: Que é o pai da minha mãe,
Verônica: Da tua mãe.
Daise: Que se tornou Palhaço.
Verônica: Ele é contemporâneo de Benjamin?
Daise: Benjamin e pelo jeito contemporâneo de Nerino, eu não sei aí a idade que, quando nasceu o Nerino né, mas o meu avô é mil oitocentos e trinta e sete, quando ele nasceu né? Do Benjamin eu sei que ele era contemporâneo, inclusive morreu na mesma época, se não me engano, Benjamin morreu em cinquenta e quatro, o meu avô morreu em cinquenta e quatro, com oitenta e um anos, então eu não sei como era na pratica... A minha mãe chamava o Benjamin de tio.
Mariana: Tio.
Verônica: Querido por Xamego.
Daise: É. Então a gente tem essa...
Mariana: A gente queria saber de você Verônica, essa questão do negro.
Daise: Do negro no circo. Se você... É eu tô falando mais que você (Risos) nessa entrevista.
Verônica: Não tem problema, não tem problema.
Daise: Mas entende?
Verônica: Veja bem, o circo, o circo moderno ele foi criado na Inglaterra por volta de mil setecentos e sessenta e oito, acho que a data exata é mil setecentos e sessenta e oito, e ele é formado, ele é criado, formado por dois grupos distintos, de um lado ex-militares da cavalaria real inglesa, especialista em volteios, em acrobacias sobre o cavalo, e do outro lado os saltimbancos, os saltimbancos que se apresentavam em diversas habilidades, dos saltimbancos o circo herda essa tradição de pai pra filho que é essa, a questão do nomadismo, e graças ao nomadismo esse novo gênero de espetáculo se espalha pelo mundo inteiro, que já na virada do século dezessete pro dezoito, surge o circo nas Américas, então o circo brasileiro, ele é formado por, ele é constituído por famílias, principalmente de origem europeia, isso é, brancos, quando essas famílias chegam ao Brasil e começam a viajar, eles vão encontrando, esses circos vão incorporando a cultura local, a cultura local, a cultura dos lugares por onde o circo vai passando e também vai, vai trazendo artistas desses lugares, em outras palavras, ele vai se mestiçando, ele vai se abrasileirando, com certeza a contribuição do negro é muito grande, nos chega até, os historiadores ressaltam sempre nisso, de que Benjamin não foi o primeiro Palhaço negro do Brasil, mas Benjamin traz esse, essa dignidade, esse destaque do negro no circo brasileiro, não só Benjamin de Oliveira, mas como também Dudu das Neves [Eduardo das Neves], o Diamante Negro né, tem toda... Alias, é atribuir com esses Palhaços né, uma das, uma das criações próprias do circo brasileiro, que é o Palhaço cantor, tocador de violão. Eu tô falando disso porque você me pergunta né, da influência do negro no espetáculo circense, de certo é muito grande, além desta influência que ficou mais notória, graças até aos estudos realizados por historiadores, pesquisadores como Tinhorão [José Ramos Tinhorão], Ermínia Silva, a contribuição desses Palhaços cantores talvez dê uma relevância maior, mas se você for, for caminhar, por exemplo, nós estamos aqui com a Amercy Marrocos, que, aliás, o pai dela, o senhor Marrocos foi quem ensinou acrobacia pra muitos circenses, que também eram negros, de certo a influência é muito grande, estudos precisam ser feitos pra isso ser comprovado, ao mesmo tempo é, é, eu, por exemplo, que frequentei a primeira escola de circo no Brasil, eu tive, eu pude perceber que o preconceito era grande também né, o preconceito era muito grande em relação ao negro né, eu me lembro, eu tive professores e era difícil quando chegava uma pessoa negra, era... Ali tinha o seu Juscelino Savalla, o tio e mestre do Carequinha [George Savalla Gomes], ele sempre recebeu os capoeiristas com muito carinho, mas sempre também quis distinguir, a acrobacia do circo e a capoeira, e realmente eles têm diferenças. Como eu disse pra vocês, eu não tenho tanto conhecimento...
Daise: Maravilha, maravilha.
Mariana: Porque a gente imagina né, pra época a minha avó, Palhaço, negra, então a gente tá tentando entender esse contexto que ela viveu né, como foi isso né, tentando transpor, se hoje já é complicado...
Verônica: Não, mas de certo né, qual é o nome da tua mãe?
Daise: Minha mãe chamava Maria Eliza, e o Palhaço era Xamego.
Verônica: Maria Eliza.
Daise: Maria Eliza.
Verônica: É uma, é uma forte né, é uma das grandes né, por ser mulher, por ser negra, e por ter, ter pego essa profissão que sempre foi atribuído aos homens né, eu não sei, eu gosto muito do nome, o nome é muito, é muito interessante, muito forte né? Eu, eu chamo a atenção, eu gosto muito, eu tenho muito carinho pelas mulheres Palhaças que hoje estão mostrando né, o seu lugar, a sua dramaturgia que é muito difícil, que a dramaturgia do Palhaço foi escrita pra homens né, e há quem diga que a mulher pra fazer rir só sendo velha e feia por que... (Risos) há quem diga, porque eu também, eu não sei se estou de acordo porque eu conheço Palhaças lindas e que me fazem rir, eu respeito, admiro; ao mesmo tempo lá no fundo de mim eu acho que o Palhaço, o Palhaço é, ele não, eu compreendo os antigos, eu acho que o Palhaço não tem sexo né, não tem gênero. Não sei se você tá me entendendo, ao mesmo tempo em que eu tenho grande respeito, e grande admiração pelo movimento das mulheres Palhaças, eu às vezes questiono... Nossa, é que teve essa grande Palhaça, como que é? Da França, Annie [Violette] Fratellini, que é herdeira de uma tradição, dos Fratellinis...
Mariana: A gente vai ter que retomar, vai ter eu vou cortar, a gente retoma.
Verônica: (Concorda com um movimento de cabeça).
Daise: Ela se apresentou...
Mariana: Verônica Tamaoki, take três. (Claquete). Ação.
Daise: Tem...
Verônica: Só pra fechar...
Daise: Vai retomar a coisa do negro e da mulher, do gênero.
Verônica: Só pra fechar que eu tava falando da, dessa, da Annie Fratellini, que é uma Palhaça mulher, veio de uma grande tradição francesa, dos irmãos Fratellinis, que ela, ela, ela se assumir, ela diz que Palhaço não tem gênero, que Palhaço não tem sexo, mas acredito que nesse período que atua o Xamego, a Xamego, de certo é um Palhaço né?
Daise: Era um Palhaço.
Verônica: Era um Palhaço né?
Daise: Agora a gente quer, por favor, que você fale alguma coisa sobre esses cinco anos deste Centro de Memória do Circo, que você tem estado à frente né, durante eu imagino um bom numero de anos, e que tá sendo hoje festejado né?
Verônica: Ahã.
Daise: Assim, o que se conseguiu para o artista, para o Palhaço, no caso, também pra Palhaça, até, durante esses cinco anos do Centro de Memória do Circo? Quais foram as lutas que você enfrentou e que foram vitoriosas, as que você ainda pretende lutar.
Verônica: O Centro de Memória do Circo nasceu com a missão de reunir, é pesquisar, difundir a história, a memória do circo brasileiro né? Deixa eu ver se eu consigo melhor. (Risos). O Centro de Memória do Circo, os objetivos, ele nasceu com os objetivos de reunir, pesquisar, preservar, conservar e difundir a história do circo brasileiro e... Bem difícil falar... (Risos).
Daise: Imagino.
Mariana: Muita coisa né?
Daise: Muita coisa né?
Mariana: Muita coisa né?
Verônica: Das coisas...
Daise: É, mas se você quiser...
Mariana: Uma grande conquista né, se a gente for pontuar, não sei se você acha mais fácil.
Verônica: Conquista é ter um lugar onde a, onde se possa né, reunir tudo, se reunir, de reunir, preservar e difundir a grande aventura do circo no Brasil. É, penso muito em vocês né, no trabalho que vocês estão fazendo, eu acho que o Centro de Memória do Circo, ele nasceu com essa, de preservar a memória do circo brasileiro e poder contar essa história, por isso eu penso em vocês, não do ponto de vista do circo como um objeto de estudo né, mas do circo enquanto protagonista, então... Vixe! Não tá saindo.
Daise: Tá ótimo, tá ótimo.
Verônica: Não, pra tentar te explicar o Centro de Memória e qual... Você me pergunta qual o ganho. O ganho é que essa aventura possa ser guardada o material, para que se possa contar essa história, eu vejo com muito carinho, por exemplo, o trabalho que vocês estão fazendo, muito carinho de contar a história dessa, dessa, dessa Palhaça negra que, que poderia desaparecer no meio do caminho e que vocês estão resgatando e estão mostrando esses heróis desconhecidos né? Me dá muito carinho porque eu vejo que é o mesmo movimento que eu tive ao pegar o Nerino, ao fazer o Centro de Memória que é contar essa história do ponto de vista do circo né? De, de, muito importante quando os índios começaram a sua história, quando o circo, e o Centro de Memória é muito pra isso né, não só pra mostrar hoje o que aconteceu, como também que gerações futuras possam se debruçar sobre essa história, pra isso nós, nós guardamos, conservamos fontes de pesquisa, principalmente geradas pelos próprios circenses, então bate muito com o objetivo final do Centro de Memória do Circo com o objetivo de vocês, contar a história do circo sob o ponto de vista do circo, não como objeto de estudo, mas como protagonista, então aqui o Centro de Memória do Circo, os protagonistas são os circenses, assim como Xamego é o protagonista né? É o santo do trabalho de vocês, por isso que eu chamo de um trabalho santo, não é? Um trabalho santo, e que há de revelar uma das facetas mais, mais bonitas da história, não só da nossa arte, da nossa cultura, mas do nosso país. É... Chega?
Daise: Nossa. Maravilha, muito obrigada, se tiver alguma coisa que você queira acrescentar, falar né?
Verônica: (Verônica começa a cantar). ‘O Xamego dá prazer, que Xamego bom... ’
Daise: (Risos). Ah ela lembrou. (Risos).
Mariana: Canta um pedacinho.
Daise: Pode cantar.
Verônica: (Verônica começa a cantar). ‘O Xamego dá prazer... ’
Mariana: (Mariana começa a cantar). ‘O Xamego faz sofrer, o Xamego às vezes dói, às vezes não. ’
Verônica: (Verônica começa a cantar). ‘O Xamego às vezes dói, às vezes não. Todo mundo quer saber, o que é o Xamego, ninguém sabe se ele é branco, se é mulato ou negro’. E é lindo porque ninguém sabe se ele é branco, ou mulato, ou negro, e ninguém sabe se é homem, se é mulher.
Daise: (Risos). (Daise começa a aplaudir).
Verônica: Viva Xamego! (Risos).
Daise: Desculpa. (Risos).
Verônica: Mas que Xamego bom!
Daise: (Risos). Não dá pra eu ficar parada. (Risos). Verônica, obrigada.
Verônica: Desculpa se eu não...
Daise: Meu Deus, você não sabe, olha isso, eu tô emocionada.
Verônica: De vocês, o que vocês precisarem da gente, de fotos, de pôsteres, se precisarem, eu tenho um carinho, uma simpatia, se você pudesse...

(Fim da entrevista).

  Leonardo Diniz


LEONARDO DINIZ

DIA 1 / CANON 60D 01

Daise: Leonardo, a gente tá aqui pra relembrar os tempos da nossa infância, da nossa juventude, adolescência, que eu vou te falar, não sei se você concorda, foram muito bons né? Leonardo: Muito bons.

Daise: Tempos bons; você concorda? Leonardo: Foram os anos dourados.

Daise: Os anos dourados nossos né? Leonardo: Verdade.

Daise: Então, você se lembra da minha mãe que era o Palhaço Xamego?

Leonardo: Xamego. (Leonardo fala simultaneamente à Daise).     

Daise: O que você lembra? Conta pra mim Leonardo.

Leonardo: O Palhaço Xamego, eu fiquei muito surpreso, depois quando já adolescente que nos reencontramos, e que ela era mãe de você e do Aristeu. Porque, por volta de mil novecentos e cinquenta e sete, eu ainda um infante, por volta dos onze anos, tocava num regional chamado Turma do Outro Planeta. Era um professor da admissão que tinha recrutado os três filhos e mais alguns alunos da escola pra formar uma bandinha, e a gente tocava, entre outras coisas, em circos. E eu fui tocar no circo, que se a minha memória não me trai, os seus pais eram sócios.

Daise: Que era o Circo Guarani, Leonardo?

Leonardo: Acho que era. Gran Circo Guarani, a gente foi tocar lá em Engenheiro Goulart.

Daise: Engenheiro Goulart, isso, lembrou.

Leonardo: (Sorri). Então, é, a gente até achava assim muito estranha a performance do Palhaço porque era uma coisa meio diferente, e só depois, alguns anos depois, adolescente, eu fui conhecer em pessoa, Xamego, que era sua mamãe. (Risos).

Daise: (Risos). E me fala uma coisa, e o Aristeu? Como foi que você conheceu, como é que se aproximou...

Leonardo: Então, neste mesmo ano de cinquenta e sete houve uma festividade da escola no Cine Cacique, lá no nosso morro da Guaiauna...

Daise: Exato.

Leonardo: E aí, eu fui lá com a tal banda da Turma do Outro Planeta tocar e entre os diversos números apresentados, estavam lá, a menina Daise que era a contorcionista, e o Aristeu que era sapateador.

Daise: (Risos).

Leonardo: Tô mentindo ou tô falando a verdade?

Daise: Tá falando a verdade.

Leonardo: A memória não me trai, né?

Daise: Não lhe trai, e ele saltava também.

Leonardo: Isso, também.

Daise: Lembra? Fazia o flip flap.

Leonardo: Até porque depois, já adultos, quando nós já tínhamos a nossa banda, ele ainda fez parte do corpo de dança da TV Excelsior, e eu me lembro de uma performance dele, na TV Excelsior, do, ai, aquela famosa ópera rock dos anos sessenta...

Daise: Hair, não era Hair?

Leonardo: Não, antes do Hair, antes do Hair, ai meu Deus como é que chamava? Bom, não tem a menor importância, a verdade é que, alguns poucos anos depois, tocando, eu tocava com Os Castores.

Daise: E você tocava qual instrumento?

Leonardo: Bateria, eu tocava bateria, e eu e o Quincas que era contrabaixista nos indispusemos com a banda e saímos. E uma bela tarde o Quincas me espera chegar do serviço em casa, todos nós trabalhávamos em adolescentes ainda né, falou assim ‘Léo’, alias Léo é mentira, naquele tempo o pessoal me chamava de Nardinho que eu era muito mais magro, e muito mais pequeno. ‘Nardinho, sabe aquele menino que toca guitarra por aí que a turma diz que é bom pra caramba, o Aristeu? E se eu trouxesse ele pra gente formar uma banda nova?’ ‘Ah, tudo bem, pode trazer aí né?’. O Aristeu já estava escondido lá no meu quartinho. (Risos). Lá em casa, o Quincas já tinha levado, e aí nós formamos o que foi a coisa mais gostosa da minha vida musical, que foram os Snakes que era realmente uma banda formidável.

Daise: E me diz uma coisa, você lembra de um... Eu vou falar da história do rock, vamos falar? Do, que você disse que a minha mãe preparou, que você no circo, apresentou, tocou rock, dançamos rock. Lembra que você me falou...

Leonardo: Eu me lembro até do acidente do seu pai.

Daise: Você lembra?

Leonardo: O mastro caiu sobre a perna dele.

Daise: Quebrou a perna.

Leonardo: Ele ficou afastado e passou lá no Amauri e deu o golpe no seu pai.

Daise: E que precisou sair e vender o circo.

Leonardo: É então.

Daise: Nós vamos falar disso também.

Leonardo: Deixa eu só dar uma... (Leonardo pega um lenço pra limpar o rosto).

Daise: Isso fica a vontade, mas você lembra dessa história que a minha mãe preparou pra gente dançar o rock? Foi pra Suzete que você falou isso?

Leonardo: Foi.

Daise: Ou pra mim? Você lembra disso também?

Leonardo: E falei pra você. Eu me lembro...

Daise: Podemos falar disso?

Leonardo: Podemos. A gente ficava ensaiando dançar o surf lá na sala da sua casa.

Daise: Exato, que era o rock do Bill Haley, era?

Leonardo: Não, não era do Bill Haley não, já era o trash, o rock dos anos sessenta, que era o [The] Trashmen, que era o Papa-Oom-Mow-Mow e o...

Daise: Esse que você falou né?

Leonardo: É. E o Surfin´Bird.

Daise: E nós chegamos a dançar no circo? Nós dançamos, nós fizemos o número no circo?

Leonardo: No circo eu não me lembro, mas eu lembro da gente ter dançado no salão, assim (Leonardo abre os braços e simula a dança). Tutututututu. (Risos).

Daise: (Risos). Então nós vamos falar do acidente do meu pai, e você vai falar dessa coisa do rock.

Leonardo: Tá bom querida.

Daise: E depois você fala alguma coisa que você queira, eu vou te perguntando, e aí a ultima eu vou dizer, ‘tem alguma lembrança que você queira contar pra gente?’, aí você fala o que você quiser.

Leonardo: Tá bom querida.

Daise: Daquela época, ou da sua vida, o que você achar interessante falar tá bom?

Leonardo: Tá bom.

Daise: Então Leonardo, um episódio aí que eu acho que você participou que parece ter sido a nossa experiência em um novo ritmo da época, (Risos). Eu queria que você contasse pra gente também, de uma dança, da música, como é que foi isso. Teve uma preparação né?

Leonardo: Eu já curtia uma amizade com o Aristeu, assim, sem ter a banda definitivamente organizada, a gente só ensaiava e tal, e uma tarde, provavelmente um sábado, nós fomos lá pra sua casa, e estávamos ouvindo lá alguma coisa, alguns discos e tal, e de repente apareceu uma coisa muito nova, que era o trash rock, um rock horrível, barulhento, uma música monocrótica, repetitiva, e era o [The] Trashmen, tocando uma coisa que o povo apelidou de, sei lá, surfing bird, apelidou o ritmo de surf, e a música era Surfin’ Bird, que já vinha na esteira de uma outra chamada Papa-Oom-Mow-Mow, e a brincadeira era a seguinte, era você dançar como se estivesse em cima de uma prancha de surf, só rebolando e mexendo os braços. (Leonardo abre os braços e mexe o quadril simulando a dança da época). E nós ficamos ensaiando uma tarde inteira, que era pra nos apresentarmos, não sei onde; eu acho que a gente acabou se apresentando num bar qualquer lá da vila. Mais foi muito interessante. (Risos). A gente ensaiar o surf... (Leonardo abre os braços e mexe o quadril simulando a dança da época). Olha! (Risos). Era uma delícia. (Risos).

Daise: Ai meu Deus, e me diz agora o que você também uma vez me falou né, agora pouco inclusive, que você lembra do episódio que levou a minha família a vender o circo.

Leonardo: O circo, então...

Daise: Que foi um acidente que aconteceu com o meu pai né?

Leonardo: Então, naquela passagem lá...

Daise: No circo né Leonardo?

Leonardo: No circo, isso, naquela passagem de mil novecentos e cinquenta e sete, quando eu conheci Xamego e até o seu papai, cujo nome na época eu não sabia, depois virou meu segundo pai...

Daise: Eurico.

Leonardo: Mas pra mim era o senhor Reis né? Não era Eurico Alves dos Reis, era seu Reis, pra mim era seu Reis, foi meu segundo pai, foi um, não sei se vocês sabem disso, Aristeu sabia disso, seu pai me ajudou muitíssimo, mas a apresentação do conjuntinho lá, da Turma do Outro Planeta, que era aqueles conjuntos bem regionais da época, sanfona, um violão, um cavaquinho, e dois ou três moleques no ritmo, eu era um deles, eu fazia maraca, afoxé e bongô, e tinha um pandeirista, e tinha um baterista, eram todos filhos do professor, mas foi tão interessante, o povo gostou muito, acho porque tinha muita criançada no conjunto, que o seu papai fechou lá um contrato com o professor Rocha, que era o acordeonista lá e o líder do conjunto né, líder nada, era o dono do conjunto, só ele ganhava. (Risos). Mas aí, a gente fechou lá uma temporada, era todo sábado e domingo, ou toda sexta e sábado, eu não me lembro exatamente, mas eu sei que eram duas vezes por semana, no fim da semana, mas na mudança do circo, de Engenheiro Goulart, acho que para Engenheiro Trindade, eram as estações próximas ali da Penha né, o mastro caí sobre o seu pai né? E teve uma fratura horrenda pra época né? Hoje com qualquer cirurgia e meia dúzia de pinos se corrigia. Naquele tempo não né? Seu papai passou quase um ano engessado, ou mais, sei lá, foi uma coisa terrível, depois, quando eu recobrei a amizade com a sua família, por conta do conjunto, dos Snakes, do Aristeu, que estas histórias voltaram todas a tona com o senhor seu pai né, que a gente vê o sofrimento que aquilo foi a ponto de eles terem que se desfazer do circo, até porque, lamentavelmente que Deus nos perdoe por isso, porque ele não está aqui pra se defender, o sócio do seu pai não foi muito honesto na época né? Essa história toda a gente conheceu e até conviveu um pouco os rescaldos dela na adolescência né? Mas foi isso...

Daise: E aí Leonardo mais alguma lembrança boa daqueles tempos? Porque me parece que a gente só tem lembrança boa, tirando esse episódio né?

Leonardo: Pois é, pois é Daise, não, com a banda, com o Aristeu a gente viveu momentos formidáveis até a virada de mil novecentos e sessenta e seis, pra sessenta e sete quando a gente desmontou os Snakes, eu e o Aristeu nos juntamos com um pessoal da Pompéia, que era a banda [The] Shadows, que tinha tocado conosco lá nos tempos de TV Excelsior, TV Tupi e formamos um novo grupo que chegou a receber um nome francês de Le Sauvage que acabou melancolicamente num programa da TV Globo, acho que o primeiro programa da TV Globo que era feito em cadeia São Paulo - Rio, nos sábados à noite, o programa do João Roberto [Esteves] Kelly. Foi uma desgraça. Porque nós éramos muito bons instrumentalmente, nós nos permitíamos cantar só quando fazíamos bailes ou shows, mas pra apresentações assim ao vivo e tal, a gente gostava da instrumentalização, e a produção do programa nos exigiu uma música cantada, e nós tínhamos até um cantor no grupo, nem me lembro o nome do menino lá, participou tão pouco tempo com a gente... E ensaiamos lá uma meia hora antes do programa entrar no ar e foi uma desgraceira total, até o prato da bateria desabou, eu não tinha apertado direito os parafusos, caiu tudo pelo chão, foi uma tranqueira. E quando nós voltamos pro estúdio da Vemba Promoções do Venâncio e Corumba, que eram amigos do senhor seu pai, que eram os nossos empresários na época, eu larguei tudo lá, nunca mais fui buscar os meus instrumentos, larguei tudo lá né? E aí o Aristeu começou a trabalhar de freelancer, depois a carreira dele você sabe melhor do que eu, foi Tremendões, foi Roberto [Carlos] e por aí a fora, mas uma coisa que eu queria lembrar antes de encerrarmos este nosso bate-papo, é que o verdadeiro Xamego, eu fui conhecer quando ele já não trabalhava mais, quando ele já cuidava dos filhos em casa, e recebia a gente com um carinho, com um café quente sempre que a gente estava lá, com um bolinho de fubá maravilhoso. Então, esse é o grande momento, é a grande lembrança que eu tenho da mamãe Xamego, dela nos receber na casa de vocês quando a gente ia lá pra ensaiar, ou pra discutir alguma coisa da banda. Do circo me sobra essa lembrança dos anos cinquenta, que eu fui lá tocar umas duas ou três vezes e convivi, mas o Palhaço travestido, sabe, eu só podia sentir o coração do Palhaço, eu nunca podia sentir o coração do ser humano, que eu fui sentir quando passei a conviver com vocês. Isso nos fez muito bem a todos, por isso que a gente tem lembranças boas até hoje.

Daise: Só chorando meu amigo, só chorando.

(Daise abraça Leonardo. Leonardo dá um beijo na testa de Daise).

Leonardo: Eu fico só grato, fico só grato.

(Daise chora no ombro de Leonardo).

Leonardo: Pra eu que só tenho a lembrança, lembrar das coisas pra mim me faz rejuvenescer, eu revivo. (Leonardo também se emociona). Obrigado. Vocês é que fizeram muito por mim.

Daise: Obrigada viu? Maravilha.

(Fim da entrevista).

 

Mariovaldo Del Bel 


MARIOVALDO DEL BEL

DIA 1 / CANON 60D 01


Daise: Mariovaldo, fala pra mim, eu me lembro de ter chegado lá, morar naquele bairro, na frente da sua casa, muito pequena. Do que que você se lembra?

Mariovaldo: Nossa, eu tenho muita lembrança de quando vocês chegaram... Pra mim era uma coisa assim diferente né, molecão ainda, e uma família circense, então, na época o seu irmão Aristeu era um atleta, pros dias de hoje era um grande atleta né, que praticava muito exercício, os teus pais, pessoas super simpáticas, assim, amigável, e a tua mãe então, e a tia Efigênia, eu não posso esquecer nunca. E na minha época marcou muito porque circo naquela época era uma coisa assim como um evento grande de hoje né, que os bairros, periferia, era assim, muito difícil, era parquinho e circo, então quando vocês chegaram, ser amigo de artistas de circo, era uma coisa muito importante pra gente né? E vocês muito receptivos, assim, muito bom de se lidar... Eu lembro que eu ia muito na tua casa, acho que todo dia eu entrava na tua casa né, e teu pai era muito bom de conversa, o seu Eurico, nossa, quanto a gente conversava. Tua mãe, a dona Efigênia... Histórias que elas contavam do circo, do que viveram, do que participaram né, então é uma coisa que nunca mais eu vou esquecer, foi uma coisa assim, uma fase muito boa da minha vida. E a gente não esquece até hoje.

Daise: E você sabia que a minha mãe era Palhaço?

Mariovaldo: Então, na época, com as nossas conversas, ela se identificou, que fazia papel de Palhaça e tudo, e eu cheguei a vê-la uma vez vestida de Palhaço.

Daise: Como foi?

Mariovaldo: Eu não me recordo, aí foi uma surpresa porque eu não a reconhecia né, eu lembro que ela era de estatura baixinha né, mas assim, toda aquela roupa, aí eu fiquei meio assim na hora e não reconheci aí ela brincou comigo, aí eu identifiquei por causa da voz, mas ela totalmente transformada, bem diferente né? E foi a única vez que eu a vi né, vestida.

Daise: E aí, o episódio lá do... Porque a minha mãe amestrava animais né? Ela amestrava animais, amestrava gatos, cachorros e tal, não sei se ela chegou a te contar, mas se ela não contou você ficou sabendo que ela amestrava um animal diferente.

Mariovaldo: Eu lembro, eu lembro que eu conheci cachorrinho que ela ensinou, e o que mais gravou, que eu nunca esqueci, que foi a única e a primeira vez que eu vi uma galinha, era uma galinha garnizé se eu não me engano, e ela mandava a galinha subir na mesa, a galinha subia, ela mandava a galinha fazer alguma coisa, a galinha fazia... Então isso aí, até hoje, quando eu lembro dela, eu lembro da galinha, não tem jeito. Foi assim, muito forte a recordação né?

Daise: E me diz uma coisa, e a sua amizade com o Aristeu, como é que foi?

Mariovaldo: Nossa! Bom, pouca gente talvez saiba que o primeiro dia que o Aristeu pegou um violão e falou, ‘vamos aprender violão?’ e eu falei, ‘vamos’. Se eu não me engano o violão que ele pegou, acho que era do seu Didi. Pegou emprestado e começamos, ele tinha uns livros lá e começamos a tocar, ele tocava né, aí acho que depois de uns dez dias eu já desisti, falei ‘olha, isso aí não é pra mim não, eu não tenho ouvido pra música’. E ele, pelo bom ouvido, e boa vontade, e acho que empolgação, e determinação, ele chegou aonde chegou, né? Ser um grande músico. Então, é um orgulho pra gente também, mas foi um grande esforço dele, porque eu não me lembro de ter sabido que ele frequentou alguma escola, foi tudo assim, ele estudando, e ele praticando, e ele treinando, e ele ensaiando, e toca em barzinho, e toca em boate, e toca não sei aonde, até chegar aonde chegou, né?

Daise: Mariovaldo, você conta pra gente como foi sua amizade com o Aristeu todo esse tempo, desde que a gente era criança, adultos, agora homens de meia idade...

Mariovaldo: Responsáveis.

Daise: Responsáveis, e também sobre esses encontros que vocês fazem que relembra todo aquele tempo.

Mariovaldo: O Aristeu foi um amigo, desde a época que vocês mudaram pra próximo da minha casa né, e era uma amizade que só cresceu, e houve uma fase que a gente ficou sem se ver, porque a própria profissão dele exigia muita viagem, mas ainda mantínhamos algum contato, assim esporadicamente né, alguns encontros no bairro onde vocês moraram, e era sempre muito alegre, muito festivo, todo mundo queria ver, matar a saudade né, e agora recente a gente tem se visto mais, porque ele está mais calmo, então a gente tem se reencontrado, e tem se visto mais. E é uma amizade que todos os amigos daquela época têm uma grande estima né? E quando ele participa desses nossos encontros, que já faz vinte e cinco anos que a gente se reúne, então é um prazer maior ainda né, que ele vem participa, e o pessoal revê, mata a saudade, assim como hoje o Leonardo esteve junto né, então, o Quincas... Tocaram juntos né, então é uma recordação muito grande né? E o mais importante que eu acho é que é uma amizade que houve, e que existe entre todos os nossos amigos, e que não existe interesse, porque um é isso ou aquilo, ou tem isso ou aquilo. Então, é tão boa a época que nós vivemos que a gente chama dos anos dourados né, então, é com muita alegria que eu falo dele né, e da nossa turma toda né, é uma coisa muito boa né?

Daise: Obrigada amigo.

Mariovaldo: Tinha que demorar mais né?

Daise: Vai dar então, a gente vai marcar, você marca lá perto da sua casa, nós vamos lá...

Mariovaldo: Vamos.

Daise: O que você for lembrando, você fala e a gente volta.

Mariovaldo: Tá, eu vou tentar até fazer um, um rascunho de alguma coisa.

Daise: Isso, isso, aí fica mais fácil pra você. Obrigada.

Mariovaldo: O que é isso!

Daise: Nossa! Noite maravilhosa essa né? Graças a Deus né?

(Fim da entrevista).

 

Julineto dos Santos  

JULINETO JOSÉ DOS SANTOS 

DIA 4 / CANON 60D 01


Mariana: Senhor Neto eu vou pedir só pro senhor se apresentar antes de começar, você pode falar seu nome e tal, tá bom?

Julineto: Tá bom.

Mariana: Pode falar, fala pra minha mãe, tá bom? Vai lá.

Julineto: Fala com dona Daise né?

Mariana: Isso pode falar.

Daise: Se apresenta pra mim.

Julineto: (Julineto fica em pé). Tudo bem dona Daise, meu nome é Julineto José dos Santos.

Mariana: Só sentado, só sentado.

Julineto: Só sentado.

Mariana: Pode falar.

Julineto: Posso? Meu nome é Julineto José dos Santos.

Daise: O senhor trabalha aqui há quanto tempo?

Julineto: Vinte anos.

Daise: Vinte anos?

Mariana: Aí o senhor fala assim, ‘eu trabalho aqui há vinte anos’.

Julineto: Eu trabalho aqui...

Thyago: Espera sempre ela terminar de falar...

Julineto: Ah tá, tá, tá, pra não dar a conversa dos dois. Certo.

Daise: O senhor trabalha aqui há quanto tempo?

Julineto: Há vinte anos.

Daise: Eu trabalho aqui...

Julineto: Ah tá! Eu trabalho aqui há vinte anos.

Daise: E aí, o senhor, quais são as funções que o senhor já exerceu aqui durante esses vinte anos?

Julineto: Eu...

Daise: Como é que o senhor trabalhava, fazendo o quê? Quando o senhor chegou, depois de um tempo mudou pra que, e depois, hoje em dia o que o senhor faz? O senhor começou como?

Julineto: Eu comecei como faxina, aí eu fui ganhando no cargo uma confiança do condomínio e eu fui pra portaria, e cheguei no topo máximo que é a zeladoria.

Daise: O senhor hoje em dia é o zelador do prédio?

Julineto: Sim, sim senhora.

Daise: Hã, me diz uma coisa seu Neto, o senhor lembra quando o senhor viu a minha mãe, a dona Eliza pela primeira vez?

Julineto: Lembro.

Daise: Como foi?

Julineto: Foi interessante.

Daise: O que o senhor achou? Conta pra nós.

Julineto: Eu achei interessante, porque ela era uma pessoa muito alegre, assim, divertida, e carinhosa com todo mundo.

Daise: Naquela época ela tava bem fisicamente né, seu Neto?

Julineto: Sim senhora.

Mariana: Eu vou pedir só pro senhor falar o discurso completo. Então ‘quando eu conheci a dona Eliza... ’, aí o senhor fala. Desde o começo.

Thyago: Repetir quando ela fala assim, ‘ah ela tava bem?’, o senhor fala, ‘é naquela época ela tava bem, eu via ela bem fisicamente’, dá uma desenvolvida assim, não responder só sim ou não.

Julineto: Ah tá, tá, tá.

Mariana: Tá bom? Então tá, pode falar.

Daise: Quando o senhor conheceu a minha mãe, o que o senhor achou dela, como é que ela era?

Julineto: Naquela época era sempre legal, uma pessoa muito querida.

Daise: Velhinha já?

Julineto: Se eu chamar de velha, a gente tá pecando, ela tava com uma idade boa.

Daise: E aí, conta pra nós se o senhor imaginava que ela era, tinha sido Palhaço na vida, já sabia você já sabia?

Julineto: Já, já sabia.

Daise: Já sabia que ela tinha sido Palhaço? Foi ela que contou?

Mariana: Peraí, peraí, o preciso só que o senhor fale... Se o senhor falar sim eu não vou ter a sua resposta, eu preciso que o senhor fale pra mim assim, ‘eu sabia que ela era Palhaço’, porque é a sua fala que vale pra mim, o que a minha mãe fala, não vai ter a minha mãe falando, então eu preciso que você diga a frase completa, então você fala, ‘eu conheci a dona Eliza quando ela...’, então, ‘eu já sabia que ela era Palhaço quando eu conheci’.

Julineto: Certo.

Mariana: Tá?

Thyago: Pode soltar, pode falar como se tivesse com os amigos.

Mariana: É, é pra nós.

Julineto: Ah eu tô meio preso, eu tô meio nervoso. (Risos).

Thyago: Não, relaxa.

Mariana: Não, mas se solta seu Neto, pelo amor de Deus, se solta, só estamos nós aqui, é tudo de casa né?

Thyago: Só tenta não responder, ‘ah, você lembra dela?’, ‘sim’.

Julineto: Não, não, aí não dá né? Eu tenho que citar que eu sabia que ela falou pra mim né, que era Palhaça né?

Mariana: É, é assim, o senhor já sabia que ela era Palhaça?

Julineto: Sabia.

Daise: Quem contou pro senhor? Quem foi?

Julineto: Ela própria.

Daise: Ela mesma?

Julineto: Dona Eliza, a própria.

Mariana: Como que foi?

Thyago: Aí você tem que desenvolver essa coisa...

Daise: Aí que o senhor tem que contar. ‘Eu já sabia por que ela me contou, e ela disse isso, isso e isso’, entendeu?

Julineto: Certo.

Thyago: Vamos lá.

Mariana: Pode?

Julineto: Posso continuar?

Mariana: Pode, pode, pode.

Julineto: Eu sabia por que ela me disse que trabalhou muitos anos no circo. Então ela foi uma pessoa que trabalhou muito tempo na profissão.

Thyago: Ela te contou algum caso, alguma coisa assim? O que ela já te contou?

Julineto: Ela contou, contou várias coisas, muito eu me esqueço, e alguma eu posso relembrar.

Mariana: O que você lembra assim da minha avó?

Julineto: Ah, eu lembro que ela falou pra mim que foi a primeira a trabalhar no circo no Brasil.

Mariana: Como Palhaça?

Julineto: Como Palhaça.

Mariana: Espera só um pouquinho gente, peraí. (Mariana dirige-se ao porteiro que esta trabalhando naquele momento). Porque aí também Gilmar, é quadro, aí tá pegando você. (Risos).

Gilmar: É.

Mariana: (Risos). Eu sei, eu sei, a gente parou bem na porta né?

Daise: Tem mais gente chegando.

Julineto: A senhora quer ir ali pra trás?

Mariana: Não, vamos tentar mais um pouquinho.

Daise: Vai ser rapidinho.

Julineto: É porque eu tô meio nervoso, tô muito...

Mariana: Não, mas não precisa, porque é só essa coisa, é só você se soltar mais, que nem as histórias que você me contou, que a gente conversou outro dia, é o mesmo jeito que você precisa me contar, só que contar a história, a história inteira.

Julineto: Narra uma pra eu lembrar assim mais ou menos como que é o perfil?

Mariana: Não sei, que história que você lembra dela? Que história que você lembra da minha avó? O que você lembra dela assim, o que te vem na cabeça?

Julineto: A história que eu lembro dela, assim, que eu conversava diariamente, sobre coisas da profissão dela, o que ela fazia, que ela dançava, brincava, corria, isso pode valer?

Mariana: Claro! Teve um dia, teve um dia, você lembra alguma coisa de um dia assim que aconteceu alguma coisa específica?

Julineto: Assim, especifica... Sobre a história dela?

Mariana: É.

Julineto: Olha, agora...

Daise: Não vem né?

Julineto: É agora me embaralhou foi todo.

Mariana: Mas alguma brincadeira que ela fazia com você sempre aqui.

Julineto: Sempre, sim, temos brincadeiras sim, nesse banquinho próprio.

Mariana: O que ela fazia nesse banquinho?

Julineto: Ela vinha pra cá, cantava a musiquinha, pegava batia na palma da mão, e o samba começava aqui. A gente brincava e dançava aqui, como se tivesse num teatro. (Risos). E era divertido; ela cantava de um lado e eu cantava do outro, eu tenho até minha musiquinha na cabeça.

Mariana: O que vocês cantavam?

Julineto: Era Martinho da Vila

Mariana: Ah é? E que música era?

Julineto: É devagar, é devagar, devagarinho.

Mariana: E como é que era?

Julineto: Era. Posso levantar?

Mariana: (Risos). Peraí.

Julineto: Não, não, vai na palma da mão mesmo né?

Mariana: Pode fazer uma na palma da mão e depois a gente faz...

Julineto: Era assim, eu puxava o sambinha e ela se movimentava lá e eu do lado de cá e começava o samba aqui mesmo.

Mariana: E como é que era? Canta aí pra gente.

Julineto: Canta um pedaço?

Mariana: Pode.

Julineto: A música é... (Julineto começa a cantar e bater na palma da mão) ‘É devagar, é devagar, é devagar, é devagar, devagarinho, é devagar... ’, aí ela pulava lá e eu pulava cá, e era aquela alegria. Aí ela sempre me botava lá em cima, ‘esse é animado’, e eu dizia ‘a senhora é mais, porque a alegria da senhora é que manda né?’. Porque ver uma pessoa a partir de sessenta anos com aquela disposição, é pra poucos, né? E o pique que ela tinha, eu não tinha no tempo, ela era uma pessoa muito divertida, então é aquela né? Muita saudade deixou, é só uma pena que eu não lembro todas...

Mariana: Não, não, mas isso, esses momentos com ela que a gente quer, que a gente quer, entendeu?

Julineto: Entendi.

Mariana: Pra gente essa fala sua já, já...

Julineto: E outra, todo dia tinha um sambinha aqui nessa portaria, justamente no lugar que eu tô sentado, ela sentava aqui, como eu tava trabalhando e eu não podia deixar o trabalho pra dançar, ou um ou outro né, mas de vez em quando eu dava uma pescadinha aqui e batia um sambinha.

Mariana: O que mais vocês cantavam?

Julineto: Era canto de roda, aquelas músicas, aquelas modas antigas né?

Mariana: Tipo qual?

Julineto: É... Me passou agora. (Risos).

Mariana: (Risos). Não, mas tudo bem, depois, depois a gente lembra. Você acha então que tinha uma coisa na minha avó, que dava pra perceber, pelo jeito dela, que ela era Palhaço? Que ela tinha sido Palhaço? Você percebe assim, é o que você disse, ‘pô uma senhora de sessenta anos, não dançava daquele jeito’.

Julineto: Não, não.

Mariana: Então tinha uma coisa que dá pra ver? O que você acha que tinha que dá pra ver que...

Julineto: Eu achava assim, duas coisas, primeiro eu acho que ela era uma pessoa que dançava legal, pela batida, samba, qualquer música que vinha o ritmo, ela pegava o ritmo. E outra, por gostar tanto de criança, ela passava aí na rua, as criançada adorava ela. Às vezes ela nem via as crianças, e as crianças lá do farol gritava, ‘tia Eliza! Tia Eliza!’ E ali era um show, e era fantástico, e aí eu percebi que a disposição dela mesmo estando aposentada, não caiu sempre tava em atividade. E como eu te falo né, hoje em dia pra gente ter um pique igual o que ela tinha, são poucos. Aí como eu já sabia que ela era Palhaço, no dia a dia eu fui pegando mais o conhecimento dela.

Mariana: Tem alguma outra história assim que você lembra, alguma coisa que ela fez que te marcou? Deixa só eu vir pra cá... Tem alguma coisa que te marcou assim, alguma situação, porque a minha avó, não é porque é minha avó não, mas era uma pessoa super generosa né? Ela era uma pessoa muito generosa né?

Julineto: Era.

Mariana: E tinha umas situações, umas coisas, eu tenho umas lembranças dela assim, de coisa que ela fazia pra ajudar as pessoas, tem alguma lembrança assim nesse sentido que você...

Julineto: Tenho, tenho sim.

Mariana: Me conta.

Julineto: A primeira vez que ela fez um bolo e trouxe pra mim, ‘esse bolo é seu, com todo amor e carinho’. Aquilo ali foi uma marcação pra mim, justamente no dia que eu estava fazendo plantão, aquele bolo me salvou o dia inteiro.

Mariana: Era bolo de quê?

Julineto: Se eu não me engano, era de chocolate com doce de coco.

Mariana: Ela cozinhava bem?

Julineto: Bem. Dez. Já almocei o prato que ela fez também. Justamente toda vez que eu tava fazendo plantão na portaria, ela me socorria com alguma coisa, e aquilo ali me marcou, me marcou tanto né? Como ela era querida! Porque hoje em dia, são poucas pessoas que ajudam né? Então aquilo ali, ficou marcado.

Mariana: E assim senhor Neto, o senhor viu, assim a minha avó quando ela já foi ficando mais velhinha, até a sua esposa, a gente é muito grato porque ela ajudou a cuidar da minha avó, como é que foi essa passagem? Como é que o senhor vê, como é que foi esse momento?

Julineto: É um momento crítico, porque quem viu ela nos últimos dias, e pra quem conheceu ela anteriormente, era duro né? Mas a vida é assim né? A minha esposa trabalhou com ela, era querida por ela, mesmo ela já meia fraquinha, mas a cabeça dela funcionava melhor do que a minha e a sua, e aquilo ali né, vai ficar marcado né? Não é porque você tá velho, que tá esquecido.

Mariana: Uma coisa que eu ia perguntar pro senhor, a gente acredita que a minha avó tenha sido a primeira Palhaça negra do Brasil né, e queria vê com o senhor essa coisa de preconceito mesmo né, porque a gente que é negro, a gente sabe como é que é né?

Julineto: Isso.

Mariana: Hoje em dia, até agora recente, tá saindo uma onda agora de o pessoal querer separar o Brasil do nordeste. Não sei o que...

Julineto: (Risos).

Mariana: O senhor acha, existe preconceito no Brasil seu Neto?

Julineto: Existe um pouquinho.

Mariana um pouquinho?                                                           

Julineto: Um pouquinho.

Mariana: Ainda hoje.

Julineto: Não em todos os locais, mas em alguns eu acho que tem.

Mariana: Tem né? Você já viveu alguma situação de preconceito?

Julineto: Eu não vivi, mas eu percebo pelo olhar...

Daise: A gente quer que o senhor fique a vontade...

Julineto: Mas aí o cara...

Daise: Não tem que acertar, o senhor é precioso pra nós porque o senhor viveu tudo isso. Ninguém pode contar aqui...

Julineto: É.

Daise: O senhor que tem que contar. O senhor só tem que ficar a vontade e ir falando...

Julineto: Pra não embaralhar tudo né?

Daise: É. A gente só dá um...

Julineto: Quanto mais falar melhor né? (Risos).

Mariana: É, mas é. É verdade, é verdade.

Julineto: (Gargalhada).

Daise: E aí, o que mais você queria?

Mariana: Não, acho que essa questão de preconceito que eu acho que era importante, as lembranças dele, a questão dela velhinha, eu acho que ele passou...

Daise: Então, o senhor disse que os seus filhos né, adoravam ela, as crianças adoravam, e ficavam aqui, e o que ela fazia com as crianças? Ela só conversava, brincava ou ela... Sei lá, fazia roda, batia palma, como é que era essa cena dela com as crianças?

Julineto: Eu vou falar pra senhora, na minha casa não era só os meus filhos, era nós todos. Quando a gente chegava aqui e encontrava ela era uma festa. Pra ela, pra ela era aquela alegria, e pra nós dobrava, porque ela contava história pros meus meninos, cantava roda, até arriscava jogar uma bolinha... E o que é que acontece? Ela dizia, ‘meu pique está fraco, mas a mente funciona’, mas isso que quando a bola rola é assim, né? Não precisa correr atrás da bola, a bola vai até o jogador, quando ele tem talento. E os meus moleques, a minha filha que já tá mocinha hoje, adorava.

Daise: Como é que ela falava quando ela chegava aqui e o senhor perguntava como é que ela tava, como é que ela falava? Repete de novo o que o senhor falava.

Julineto: Eu perguntava pra ela, ‘como tá?’, ela respondia, ‘cada dia mais jovem e mais bonita’, até que ela falava, tem um ditado que ela tratava todas as pessoas, velhos, novos, preto, azul, de bonitinha e bonitinho. É um ditado que a gente pegou ‘você é bonitinho, você é bonitinha’, se tivesse duas pessoas ela não elogiava um, eram os dois, bonitinha e bonitinho. Isso a gente lembra muito dela. O meu moleque quando via ela aqui em baixo, aquele dia era um dia de festa. Quando ela descia aqui pra baixo, até o dia passava rápido, quando eu tava aqui, eu ficava mais trocando ideia com ela do que trabalhando. (Risos).

Daise: (Risos).                                                              

Mariana: Você falou a coisa da bola... Minha avó jogava bola não jogava?

Julineto: Jogava, jogava. Ela se arriscou aqui nesse pedaço, deu uns quatro chutes, e eu era o goleiro.

Mariana: E fazia gol?                                                      

Julineto: Olha, fazia, fazia, fazia, ela batia muito forte, né? Batia forte... E outra coisa, ela não tinha esse negócio de ‘a idade tá chegando, eu tô ficando... ’ ela não, ela era sempre criança, jovem, jovem, e se eu não me engano ela fez aqui de cinco a seis gols só numa partida, esse dia foi artilheira do jogo. (Risos).

Mariana: Ela falava um negócio também, como é que era? Quando perguntava da idade dela, ela falava, ‘eu ainda danço... ’

Julineto: Falava.

Mariana: O que ela falava?

Julineto: Que ainda dança, e cantava, e cantava bem e dançava bem, aí ela falava, ‘pra eu cantar e dançar, você tem que puxar algum batuque aí, pra eu ver qual é o ritmo’. Aí, eu já tinha o dom qual que era, era aquele mesmo, e dançava bem, coisa que eu nem chegava próximo dela.

Mariana: Você chegou a ver minha avó fazendo malabares? Minha avó fazia.

Julineto: Cheguei já, cheguei a ver sim, fazia bem. Fui tentar me arriscar de fazer uma vez, foi um acidente. Ela fazia com a maior tranquilidade, e aquilo ali pra ela era como se fosse controlando uma pipa pra molecada de hoje em dia né? Pra você ver como que é, como que é a profissão de cada um né? Aquilo ali ela tava brincando, e eu não entendia, só ela tinha aquele dom de fazer aquilo.

Daise: Foram anos e anos no circo fazendo.

Julineto: Anos e anos, mas é o quê? Era a profissional que ela era, que ela era não, que ela é, ela saiu do meio da gente, mas continua junto com a gente, não é porque Jesus escolheu ela pra morar junto com ele, que ela está esquecida, jamais. Tá aí, tá aqui a mostra né, não sou eu que estou falando não, é a Mariana que tá relembrando. Essa é uma coisa que não pode deixar morrer né? Porque se a gente lembra do que é ruim, imagina do que é bom, aí que não sai do pensamento de nenhum de nós.

Daise: E aí, ela, infelizmente não está assim fisicamente perto da gente, mas tem alguma situação que o senhor se lembra dela, que até hoje o senhor lembra, ou mesmo quando ela já tava, porque foi ficando debilitada, não descia, já tava até bem fraquinha, o senhor lembra de alguma coisa que o senhor queira contar pra nós?

Julineto: Lembro quando ela não morava aqui, antes dela vir pra cá ela morava aqui do lado, não sei o dia da semana, era duas vezes ou era três, que ela vinha acompanhar o professor da Mariana tocando violão. Mariana era, era não, é uma artista né? Lembro muito. Então, aí eu lembro bastante, aí por enquanto, aí ela chegava, ficava aqui comigo, eu que pedia, ‘dona Eliza fica aqui pro tempo passar... ’, e sempre a gente trocando umas ideias, e ela contando só coisa boa.

Mariana: Tem alguma mensagem assim que você quer deixar assim sabe, se você pudesse, não sei se falar pra ela, ou alguma coisa que você queira que lembre dela, alguma coisa que seja importante, que você acha boa... Pra fechar assim...

Julineto: Tenho.

Mariana: Eu não sei se... Porque a minha avó tinha, pela idade, tinha essa coisa meio, não é ensinamento, mas eu aprendi muita coisa com ela né, de vida assim né, então não sei se tem alguma, algum, tipo um recado assim, tipo uma mensagem, uma coisa que você, que ela te falava que você gostaria de passar, não sei, alguma coisa...

Daise: Alguma coisa... Ou que as suas crianças né?

Julineto: Eu acho que a falta que a gente sente tanto dela, de ela não estar no meio da gente, porque ela aqui com a gente é só você, como é que se fala? Era só coisa boa que vinha da mente e do coração dela, e essas pessoas hoje estão isentas no nosso mundo né? Então a mensagem que eu tenho é que pena que ela não pode voltar pro nosso meio.

Mariana: Eu e minha avó, na feirinha da Pompéia, o pessoal vinha aqui me chamar, ‘chama porque a sua avó que abre a roda’.

Julineto: Lembro.                                       

Daise: Ela tomava a iniciativa né? Ela queria que todo mundo ficasse feliz...

Julineto: Quando ela chegava ali no meio, no primeiro quarteirão ali, todo mundo abria alas pra ela passar porque onde ela passava era alegria, não só aqui no condomínio, na rua, nas festas, que essa festa da Pompéia tem o quê? Quarenta anos, trinta anos...

Daise: Isso, todo ano tem.

Julineto: Aí quando ela passava lá nos palcos parava tudo, todo mundo conhecia ela, todo mundo, mesmo depois de parada, fora da profissão, era querida. Porque, uma pessoa que lá atrás fez muito sucesso né, e outra hoje em dia, quem tem fama, não morre né?

Mariana: Valeu! Obrigada. Quer fazer uma...

Daise: Ele fechou com chave de ouro.

Mariana: Eu acho que a gente tem    que terminar com o sambinha...

Julineto: É o sambinha foi embora. (Risos).

Mariana: Quer fazer um...

Julineto: É, vamos descer um sambinha aí pra acabar.

Daise: Se o Salim tivesse aqui com o surdo né seu Neto? Eu fico lá?

Mariana: Aí Neto, o que vocês cantavam então hein?        

Julineto: A gente cantava músicas de todos os sambas de alguns artistas que nós conhecemos Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, a gente cantava aquela música ‘deixa a vida me levar, vida leva eu’... ‘é devagar, devagarinho... ’ e outros, e outros, até eu chegava aqui e me arriscava a dar uma dançada com ela, mas não conseguia segurar o pique da dona Eliza, porque mesmo tendo menos idade, a gente não aguentava, ela sambava muito.

Mariana: Como é que era? Como é que era que rolava?

Julineto: Era um samba, quando eu puxava aqui (Julineto começa a bater na palma da mão) na palma da mão ela quebrava pra lá e pra cá, e aí eu fui virar o giro e não dava mais samba... Aí só ela, eu só batendo palma e cantando.

Mariana: Como é? Que música? Vamos fazer uma.

Julineto: (Julineto começa a cantar e bate na palma da mão). ‘Deixa a vida me levar, vida leva eu, deixa a vida me levar... ’ aí nem parava a música já mandava outra. (Julineto começa a cantar e bate na palma da mão). ‘É devagar, é devagar, é devagar, é devagar, devagarinho’ (Risos). E ela pedia mais, aí eu digo, ‘agora ferrou’, aí ela cantava a dela, e aí quem dançava sou eu agora, mas não aguentava, mas... Bela dançarina, coisa que nós, se juntar nós todos aqui não acompanhava o pique dela, e quando ela ia embora, a gente ficava com saudade, mas no outro dia ela tava junto com a gente e dizia ‘cadê o samba?’ e eu já mandava um sambinha...

Mariana: Tá bom. Valeu.

Daise: Muito bom. Até eu tô lembrando...

(Fim da entrevista).



 Zé Chico  


ZÉ FRANCISCO
DIA 8 / PANASONIC AG-AC160


Daise: Zé, como foi que você ficou sabendo que a minha mãe era o Palhaço Xamego? E como você reagiu? O que você achou? Descreve pra nós assim em detalhes.

Zé: A primeira notícia que eu tive foi pela Daise na faculdade, ela me contou que a mãe dela era Palhaço de circo, foi, tinha sido Palhaço de circo. Na verdade eu fiquei muito contente com a notícia, eu tinha muita vontade de conhecer. Quando eu vi dona Eliza eu falei, ‘ela tinha que ser Palhaço de circo, não tinha outra coisa’ Ela era, assim, a imagem da alegria, de fazer graça, ela dançava, ela brincava, não tinha quem ficasse quieto perto dela. E eu tenho muita lembrança dela, muita coisa boa, muita coisa engraçada. Até do dia que ela faleceu eu lembro que... Pronto. O Salim ligou pra mim, eu tava na clínica com a minha mãe, e ele só falou assim, ‘a vó foi embora’, e engraçado, eu não fiquei triste, eu só fiquei com saudade, não teve assim, foi um... Pronto, fiquei emocionado... Mas é isso mesmo. Ela era cheia de emoção, ela passava uma alegria pra todo mundo. É isso.

Daise: Quando você a conheceu, como é que foi? Ela... Foi na casa dela? Ela estava como? Você chegou a conversar com ela sobre essa coisa dela ter sido Palhaço?

Zé: Não, não. Eu não conversei com ela sobre isso, da primeira vez não. Eu acho que a primeira vez que eu vi dona Eliza foi numa feijoada na casa dela, acho que foi a primeira vez. Tava ela, tia Efigênia, tava muito gostoso, animado, tinha, tinha canto, a tia Efigênia tocou e é isso, foi a primeira vez, mas depois eu conversei com ela bastante, sobre, sobre Palhaço, sobre circo, fiz perguntas. Era um assunto que eu gostava muito.

Mariana: Tem alguma coisa que você lembra assim, você falou que tinha muita história engraçada, o que que tinha de história engraçada da minha avó?

Zé: Tem uma história engraçada dela que era assim, que eu tava na chácara nadando, e ela tava bem assim e ela falou ‘filho vai buscar a água pra vó’, e eu fui buscar água e trouxe pra ela, ela falou ‘essa barriga não te incomoda, não filho?’ (Risos). Eu acho essa história muito boa. Eu gostei muito disso. Tinha outras histórias engraçadas, agora eu não tô lembrado. Eu lembro quando ela me emprestou uma roupa pra eu ir numa festa de criança, e ela me ensinou a me maquiar, colocar a peruca e tudo mais, e aí o tanto de talento aqui escondido, né? Eu achei que se eu desse uma entrada triunfante no meio da sala as crianças iam gritar de alegria e tudo. Nossa! Não ficou criança sobre pedra ali. (Risos). Todo mundo correu e gritava de medo, né? (Risos). Eu acho que eu acabei com a festa né, mas depois eles foram acomodando assim e aí foram brincar comigo. Eu contei pra ela essa história.


Mariana: E o que que ela disse?

Zé: Ela riu. Ela deve ter pensado assim ‘o que que eu fui arrumar hein com as minhas roupas? Olha onde foi parar!’, mas talento é pra quem tem, ela tinha, eu não. (Risos). Pra isso não. (Risos).

Mariana: Zé conta pra gente a história desse quadro.

Zé: A história do quadro. Eu estava em um...

Mariana: Só cuidado, eu vou te pedir pra ficar um pouquinho mais pra lá porque aquele reflexo tá entrando...

Zé: Melhorou, melhorou?

Daise: Melhora pra mim, mais fácil pra eles.

Zé: Tá. Pode?

Mariana: Pode.

Zé: Tá. A história do quadro é assim, eu tava numa festa na casa da Daise e a gente começou a ver foto, e eu vi uma foto dela, fotografei com o meu celular e trouxe pra aula que eu faço pintura. E tentei fazer isso, o quadro dela.

Mariana: Que é esse quadro aí?

Zé: Que é esse quadro aí. E foi engraçado. Eu... Sempre eu pensava assim... Eu tinha medo de fazer um retrato, né? Tinha, sei lá, e eu fiz um, eu fiz um pacto com a dona Eliza, sabe assim? Eu parei em frente o coisa e pedi pra ela vim me ajudar ali, né? Eu levava uns, umas cinco aulas pra fazer qualquer quadro, qualquer coisa, eu fiz em uma aula esse quadro dela. (Risos). Acho que ela tava ali, sabe? Me ajudando.

Mariana: Como é que foi esse pacto? Você conversou com ela? Como é que foi?

Zé: Não, eu falei pra ela ficar aqui, já que ela era artista né, ‘fica aqui do meu lado que eu quero, preciso fazer bem parecido’, pra me ajudar. (Risos). E... Mas isso é uma brincadeira. Eu acho que foi bom.

Daise: Quando você falou com ela da coisa da festa, ela te emprestou a roupa que ela tinha Zé?

Zé: Então...

Daise: Ou foi só ela só te explicou como você tinha que...?

Zé: Não, eu não sei se tava com ela aquela roupa ou se tava com você Daise aquela roupa, eu não lembro. Mas parece que eu já tinha visto aquela roupa com o Salim uma vez. E aí eu pedi lá se eu podia usar e tal e ela me, ela deixou, acho que ela ficou contente que eu usei.

Daise: Como era a roupa?

Zé: Estampada, parece que assim de azul, com alguma coisa meio cinza e branca. A peruca carequinha em cima, né? E a maquiagem que ela me deu umas dicas assim, eu não lembro bem como ela falou, mas vendo pela foto assim dá pra lembrar. Eu não sei se eu fiz igualzinho naquele dia que eu assustei a criançada. (Risos).

Mariana: E que parte que era mais difícil do quadro assim? Tem uma parte mais complicada?

Zé: Os olhos.

Mariana: Por quê?

Zé: Ah, eu penso assim, olhar diz tudo, né? Não adianta você fazer tudo igualzinho se o olhar não tá, daquele jeitinho, né? Ela tinha uma carinha espetadinha, brejeirinha, carinhosa, né? É tudo isso.

Mariana: Que muita gente, a gente fala pela foto, né? Você vê que é homem, mas se olha pelo olhar você vê que é mulher.

Zé: Hum.

Mariana: Você acha isso?

Zé: Eu acho sim. Eu acho. (Zé olha para o quadro de que falam). É o sorriso, né? Eu não podia fazer gesto, desculpa.

Mariana: Sabe que essa coisa do olhar para o Palhaço é a coisa mais importante que tem né? Da relação com o outro, né?

Zé: É? Então, eu não sabia.

Daise: Deixa eu ver, a coisa da pintura, vocês já querem fazer?

Mariana: A gente vai fazer, acho que ele apontando né?

Daise: Ele apontando?

Mariana: Vamos cortar?

Thyago: O que você achar, quando você fez, o porquê, o que você sentia...

Daise: Vai lembrando, entendeu?

Zé: (Zé faz movimentos com a cabeça para relaxar o pescoço).

Daise: Gostoso, né?

Zé: Parece que eu tô nervoso.

Daise: Você pode até falar, que é uma técnica mesmo de carvão, porque você escolheu o carvão, sabe assim?

Mariana: Vamos lá. Zé Francisco take dois. Ai Zé não faz ainda.

Zé: Vai ter pergunta?

Daise: É Zé, fala pra nós, o quadro tá aí, já tá pronto. Como foi? Como é que foi? Por que é que foi? Como é que você decidiu que técnica você ia usar? Como é que você foi fazendo? Por onde você começou? Sabe, as suas escolhas como artista. Por que você acha que os olhos foram os mais difíceis?

Zé: Eu escolhi carvão pra imitar bastante a fotografia que eu tinha. Eu comecei o quadro, primeiro por aqui. (Zé aponta os enfeites desenhados no terno de Xamego). Por essa parte, pela roupa tudo. Fiz a cabeça, fiz tudo e aí eu fiz a boca. A boca não é fácil também. Tem um sorrisinho ali. Mas o último foram os olhos. Os olhos tinha que mostrar que era uma mulher. Por que podia ter uma porção de coisa ali que ia ficar uma dúvida, mas tinha que ter essa doçura, essa coisa assim, aquele olharzinho. Outra coisa que eu achei que fica bem assim é essa caída aqui assim do ombro, bem feminino, não é uma coisa assim de um homem. E foi isso. O mais difícil mesmo foi esse olhar pra fazer. Mas não foi tanto, por que eu conhecia. (Risos). Foi mais... Eu lembrei bastante. Eu conhecia né? Então foi não foi tão difícil. É isso.

Mariana: Ai, vocês vão me socar, não tava gravando.

Daise: Não saiu nada?

Thyago: Não gravou?

Mariana: Não gravei.

Daise: Que bom, aí o Zé...

Zé: O quê?

Daise: Tinham mulheres que mandavam bilhetinhos pra ela.

Zé: (Risos).

Mariana: É verdade. Pra minha mãe, davam pra minha mãe.

Zé: Sério? Tem um mosquitinho chato aqui.

Mariana: Zé Francisco take três.

Zé: Porque que eu escolhi, já pode, já?

Daise: Já pode.

Zé: Porque eu que eu escolhi o carvão pra fazer? Por que eu tinha uma foto pequena, eu queria fazer o mais parecido possível. Então não queria cores. E eu comecei por aqui assim. (Zé aponta os enfeites desenhados no terno de Xamego).  A parte mais fácil, claro, a roupa. O fundo foi depois, mas a cabeça, a boca. A boca foi um pouco trabalhoso por que tinha o sorriso feminino, mas o mais difícil mesmo foi o olhar, o olhar não adianta, tem jeito que homem olha, tem jeito que mulher olha. Então tinha que ter essa doçura, essa coisa da mulher. Foi difícil, mas eu conheci dona Eliza, então eu lembrava bastante do jeitinho de olhar e tal. E foi isso.

Mariana: Você acha que então essa questão do feminino, tanto do quadro como, é a figura da minha vó como Palhaço tava no sorriso, tava escondido no sorriso e no olhar?

Zé: O ombro também assim né, aquele jeitinho mais miudinho dela. E tava sim. A meiguice né, do olhar e tal, sempre teve. É só.

Daise: Que delicia.

Zé: Gravou né? (Risos).

Mariana: Gravei. (Risos).

Zé: Pode por a mão? Claro né, que eu vou ter que mexer.

Daise: Tenta lembrar passo a passo e vai falando. Zé conta pra nós passo a passo como é que foi que a minha mãe te ensinou a se pintar como o Palhaço Xamego?

Zé: Primeiro ela me mostrou uma foto dela, né? E aí ela foi me ensinado. (Zé começa a se maquiar em frente a um espelho). Ela falou primeiro você tem que encher tudo de branco em volta da boca, pra parecer o que ele fazia, como era o Xamego. Então em volta da boca toda, e depois é contornado com um traço preto. Só que graças a Deus a dona Eliza não tinha cavanhaque e onde vocês estão vendo um cavanhaque leia-se boca vermelha. Então não tinha isso. Aqui também tinha branco... E embaixo do olho. Tinha muito branco na maquiagem que ela ensinou.

(Breve silêncio).

Mariana: Um pouquinho pra esquerda. Aí.

Zé: Melhor?

Mariana: Um pouquinho mais. Aí.

(Silêncio).

Zé: (Zé deixa o pó branco de lado, pega um lápis preto e começa a contornar a boca).

Mariana: Se ele ficar um pouquinho mais te atrapalha Thy? Pode ficar um pouquinho mais pra esquerda?

Zé: Mas aí eu não vejo espelho

Mariana: Ah tá! Então eu vou ter que mexer.

Zé: Aqui no nariz tinha uma bolota. Eu não lembro se era preto, se era vermelho. E pelo o que a Daise me contava, tinha mesmo uma bolotinha que ela colocava. (Zé pinta o restante do nariz com o lápis preto).  

(Silêncio).

Zé: A sobrancelha era um toquinho que saía aqui em cima. (Zé pinta um triângulo sobre a sobrancelha com o lápis preto).  

(Silêncio).                   

Zé: (Risos). Não vai dar pra mostrar bem o jeito da boca que ela ensinou, por causa do cavanhaque. Mas era uma bocona!

Mariana: Ela te ensinou a maquiagem por que, Zé?

Zé: Por que eu ia naquela festa.

Mariana: Que festa?

Zé: Na festa de criança de um ano, que eu fui pra alegrar a festa, e eu amedrontei todo mundo. (Risos). As crianças se assustaram.

Mariana: Aí foi isso? Você saiu todo pronto, todo vestido?

Zé: Não, eu me arrumei lá. Eu me tranquei num quarto e apareci, de repente. Era vontade só de ser Palhaço, mas...

Mariana: Foi um dia de Xamego?

Zé: Foi um dia de Xamego. (Risos). Hum.

(Breve silêncio).

Zé: E no olho tinha alguma coisa.

Mariana: O olho é uma parte importante, Zé?

Zé: Muito. Muito importante. Acho que o olho é fundamental né? Sumiu meu lápis preto hein, que tá aqui. Ela usava assim, um risquinho só em cima do olho.

(Breve silêncio).

Mariana: Porque que olho é importante, Zé?

Zé: Nossa! Acho que ele encara né? (Risos). Encara quem tá lá fora.

Daise: Ela te ensinou alguma palavra, algum gesto, alguma coisa?

Zé: Não. Não me ensinou não. Isso não. É isso.

Daise: E a peruca?

Zé: Peruca eu usei também. A peruca era carequinha aqui e caía assim, tinha que pôr bem justinha.

Daise: E tinha o cabelinho do lado?

Zé: Tinha o cabelinho do lado. Parece que eu tô parecendo, o Xamego. Oh lá! Até o olhar. Tá bom?

Mariana: Só coloca o rosto no espelho ali, pra eu pegar bem o seu rosto.

(Breve silêncio).

Mariana: Tem uma coisa da minha avó assim, que você queria contar assim, alguma coisa?

Zé: Ah não. Agora não. Já contei bastante. (Risos). A gente tem uma saudade boa dela, né? Saudade boa. Só saudade. Da alegria. Tô com a cara dela, eu tô achando. Engraçado né? Faz a maquiagem, fica lembrando assim. Acho que é essa sobrancelha meio pensativa assim. Até que o cavanhaque não estragou tanto. (Risos). Tá branco também. (Risos). Tá bom assim? (Zé retoca alguns pontos da maquiagem com o lápis preto).  

(Silêncio).

Zé: O bocão mesmo do Palhaço. Palhaço não adianta rir, né? O olho fica triste, né? Do mesmo jeito. (Risos).

Mariana: Aqui deu doze.

Thyago: Parou?

(Fim da entrevista).

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